Carlos Costa contra Carlos Costa (e a ironia da ADSE)

O governador deve mesmo explicações aos deputados. Não para salvar a sua pele, mas para garantir a independência futura do banco central.

Veja bem o que disse Carlos Costa, o governador, em Maio de 2016, sobre o que se passou na banca nos anos antes da crise:

“Havia um ambiente de euforia, de subestimação de risco, de maximização da distribuição de dividendos (…). Nos tempos em que se deviam ter acautelado, enfraqueceram-se as instituições”.

Tinha razão, certo?

Veja bem o que dizia ainda Carlos Costa, poucos meses depois, sobre os erros dos bancos nos chamados “anos Constâncio”:

“A estrutura acionista dos bancos potenciou fenómenos como a concessão de crédito para financiar a compra de ações [como aconteceu no BCP]. Depois, o financiamento para a aquisição de participações noutras empresas; a subestimação do risco (“isto não foi depois de 2011, foi antes de 2011”); o financiamento à construção e obras públicas; a “bondade” na concessão de crédito sem real avaliação; e a exposição a empresas expostas ao ciclo económico.”

Também tinha razão, certo?

O azar é que, antes de chegar a governador, Carlos Costa foi administrador da CGD. E agora descobriu-se que, quando foi administrador da CGD, esteve presente em quatro reuniões do Conselho Alargado de Crédito, que deu luz verde a alguns empréstimos de alto risco.

Alto risco, sim, porque segundo a auditoria à Caixa que agora conhecemos, deram 177 milhões de euros em prejuízos ao banco público, mais de metade do investimento feito pela Caixa.

Quer saber que tipo de empréstimos era?

  • Para a compra de ações de outras empresas;
  • Para financiar o setor da construção e obras públicas.

Tudo isto com subestimação de risco e sem real avaliação do crédito concedido.

Azar dele? Não, azar nosso.

2.
A notícia da revista Sábado, que relevou as atas das reuniões, é honesta ao dizer que nelas não constam votos contra, mas que essa era a política da altura: os administradores podiam divergir, mas concordavam em não mostrar divergências internas, para preservar a instituição. Os partidos não podem criticar isso, porque fazem o mesmo (e quando não o fazem, sabemos bem o que acontece).

A notícia da Sábado é, também, honesta o suficiente para nos explicar que Carlos Costa não tinha o pelouro do crédito, mas o da internacionalização da Caixa (que na verdade também não correu bem, mas aí não Carlos Costa não teve culpa).

Mas acontece que nem assim Carlos Costa, o governador, soube reagir às notícias sobre Carlos Costa, o administrador da Caixa.

Primeiro, não respondeu à Sábado sobre se podia, enquanto governador, tomar decisões sobre a Caixa (onde foi administrador); depois, mandou um comunicado dizendo que se afastava de decisões sobre a Caixa; por fim, acrescentou que essa decisão tinha sido tomada em novembro, numa reunião da administração do Banco de Portugal, sabendo nós que o comunicado oficial dessa reunião nada dizia sobre um assunto tão sensível.

Em cima disto, sabemos como o Banco de Portugal resistiu a divulgar a auditoria pedida pelo Governo. Em cima disso, sabemos – por essa auditoria – que a administração onde Carlos Costa esteve é apontada como uma das mais ruinosas para as contas do banco público.

3.
Em nome da verdade, convém também pôr todos os pratos na balança.

  • Já sabíamos há muito que Carlos Costa tinha sido administrador da Caixa naquele período mau;
  • Carlos Costa estava longe de ser o principal responsável por tais créditos;
  • O prejuízo de 177 milhões de euros, relativo às decisões em que Carlos Costa esteve presente, representa cerca de 15% do problema encontrado pela auditoria;
  • E ainda nem se deu oportunidade a Carlos Costa de explicar que posições tomou, ou não tomou, naquelas reuniões na CGD.

Pedir ou sugerir a demissão do governador do Banco de Portugal (como fizeram Bloco, PSD e PS), já e nestas circunstâncias, é no mínimo uma distração política – para não dizer uma irresponsabilidade, tendo em conta que o Banco de Portugal não é um órgão político, muito menos uma instituição nacional – hoje, como prova o caso da Letónia, ele responde sobretudo perante o BCE (gostemos ou não).

Mas a verdade é que, face ao exposto e precisamente pelas circunstâncias europeias, Carlos Costa deve uma palavra aos deputados.

Não para preservar o seu mandato, que está a acabar. Mas para preservar a verdade do seu diagnóstico sobre a crise bancária, que tanto dinheiro nos custou a todos. E para preservar a independência futura do Banco de Portugal face ao poder político, única maneira de nos proteger (o possível) de prejuízos futuros – como aqueles que estamos a discutir na Caixa.

Por uma vez, Carlos Costa, o governador, vai mesmo ter que explicar o que disse, fez e não fez Carlos Costa, o administrador. Qualquer complacência com a sua anterior equipa de administração, qualquer diplomacia quanto ao que sabemos que se passou na Caixa, trará um dano irreparável à instituição que dirige. E vai torná-la ainda mais suscetível às tentações políticas já muito visíveis para que, a ele, Carlos Costa, se siga um puro mandato político.

Se tiver dúvidas, lembre-se do que aconteceu no BPI já nesta legislatura (correu bem, podia não ter corrido). Ou no Montepio. Se lhe sobrarem dúvidas, reveja o projeto em curso para mudar a supervisão – e ampliar os poderes do Governo ou do Parlamento para mandar e desmandar em mais este regulador. Só é diferente do que está a acontecer em Itália, na América, porque é mais discreto. Mas nós sabemos bem como os políticos adorariam ter sob controlo um regulador com tanto poder.

P.S. Carlos Costa esteve longe de ser um governador sem falhas. Mas também não foi um governador permeável a jogos políticos – num tempo muito mais difícil do que tiveram os seus antecessores. Não serve para uma distinção, mas já vimos bem pior.

P.S2. A prova de que há, neste momento, muitas manobras partidárias em torno do governador são as notícias que se seguiram sobre Elisa Ferreira, a sua vice-governadora e provável sucessora. Esta já nem é uma guerra sobre Carlos Costa, é sobre a sua sucessão.

P.S3. Irónico como, no meio de tudo isto, é o BCE quem faz de barreira à política doméstica e tem a última palavra. Pena que a união bancária não se complete, para termos – nós contribuintes – toda a vantagem que ela nos poderia dar.

P.S4. Por tudo isto, mostra-se mesmo fundamental o reforço da independência estatutária do Banco de Portugal – sim, porque não pela nomeação partilhada com o Presidente. Por tudo isto, torna-se fundamental a prestação de contas do governador perante o Parlamento, desde logo com uma audiência prévia à sua posse. A falta de transparência do banco central é uma arma que rapidamente pode acabar com a sua independência.

ADSE: o feitiço contra o feiticeiro

O Governo abriu guerra aos privados da saúde. E diz que a saída da CUF e Luz Saúde da ADSE não representa um problema, porque aqueles hospitais podem ser substituídos pelo da Cruz Vermelha, pelos das Misericórdias e pelo hospital das Forças Armadas.

Mas não.

A Cruz Vermelha já veio avisar que tem prejuízos com as atuais tabelas da ADSE;

As Misericórdias não só têm os seus hospitais longe de Lisboa – Benavente e Entroncamento, como o Governo deixou em banho-maria o protocolo de há um ano, para estender uma parceria a várias unidades no Centro e Norte, em Anadia, Fafe, Povoa de Lanhoso e Lousada.

E quanto ao Hospital das Forças Armadas, está em falência técnica – deve 69 milhões aos grupos privados da saúde – e foi acusado pelo Tribunal de Contas de má gestão – depois de terem sido descobertas faturas de cirurgias que não existiram, ou casos de doentes operados e internados ao mesmo tempo em hospitais diferentes.

O facto é que o SNS não tem capacidade para acorrer a tudo e precisa do setor privado. A verdade é que, sem ele, a ADSE pode perder o desconto de muitos milhares de funcionários públicos, assim como o SNS perderia capacidade de resposta para as muitas milhares de cirurgias que o SNS não consegue fazer a tempo e horas. Não é concorrência, é mesmo dependência.

Assim sendo, como é que o Governo parte para um braço-de-ferro sem ter qualquer rede?

Sobre isto, só nos resta um sorriso: o de vermos a CGTP ou o Bloco a pedir gentilmente que as partes se sentem à mesa, para os funcionários públicos não deixarem de poder ir à CUF ou à Luz. Ironias da vida política.

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