Cem euros a um cêntimo

O Orçamento baixa agora ao Parlamento. No grande bazar da política nacional vai começar o leilão anual da nação.

O Orçamento não é um golpe de estado. O Orçamento não é um retrato do país das maravilhas. O Orçamento não é um exercício de contabilidade criativa. O Orçamento em Portugal é o pequeno grande momento em que a política tem vergonha de ser política. Reduzido a um documento técnico, o Orçamento pensa que pode ser uma espécie de horóscopo de um país desconhecido. O Orçamento tem a lógica de um Pavilhão de Portugal feito, por dentro, de madeira pintada a vermelho e verde em homenagem à República para consumo nacional. O Orçamento tem a lógica de um Pavilhão de Portugal feito, por fora, de aço inox e vidro laminado em homenagem à vigilância da Europa. No global, o Orçamento tem a estética de uma estufa modernista nascida de uma ruína política elevada ao arranha-céus da economia. O rating da República reconhece e Portugal continua na vanguarda da Europa.

O Orçamento não tem política porque não tem pessoas reais nem portugueses ideais. O Orçamento é como a biografia de um homem ilustre contada com base nas receitas, despesas e fluxos financeiros. À sombra das finanças todos os indivíduos são iguais e todos os impostos são legais. Mas se os portugueses fossem apenas células de uma folha de cálculo, o país seria um lugar extravagante, o país seria uma colónia penal com contribuições obrigatórias e com benefícios baseados na conformidade contributiva. O Orçamento não contabiliza o valor dos portugueses e por isso é um baile de máscaras em honra do Ministério.

O Orçamento podia ser o projecto para um condomínio público capaz de alojar milhões de portugueses, com muitos andares e parque de estacionamento subterrâneo, condomínio a ser construído de norte a sul como uma ponte apoiada nos limites de Portugal e suportado pelas colunas de um templo clássico. O Novo Portugal construído sobre o Velho Portugal. Parece uma divagação extravagante, mas é apenas a simbologia do Orçamento transformada em projecto político com visão e ambição a tocar o delírio. No Portugal cinzento é por vezes necessária a coragem do delírio para transformar a realidade. Mas não. O Orçamento é o episódio anual de uma ficção que pretende substituir a realidade.

Assim, e para não fugir à norma, o Orçamento é uma torre cilíndrica cujos planos estão codificados em números que apenas os especialistas conseguem entender. As leituras são monótonas, as interpretações são repetitivas, as projecções são obscuras, os objectivos são classificados. Se todas as reflexões sobre o Orçamento fossem transformadas em livro teríamos toda uma enciclopédia que poderia ser designada por História Trágico-Marítima de um país feito de bom papel e de más políticas. A torre cilíndrica do Orçamento por vezes afunda-se no mar da dívida, do oportunismo, da miséria moral, da pobreza honrada, da riqueza sem causa, na lógica de um país que se serve dos portugueses em vez de servir os portugueses. O Orçamento não tem alma, mas repete com uma regularidade secular a arquitectura das nuvens quando desafia a gravidade.

Há duas ideias políticas que o Orçamento insiste em ignorar com a superioridade de uma ciência superior – a ideia da estagnação e a ideia da transformação. A estagnação é uma espécie de pesadelo da eternidade, a concepção de uma ordem fixa no conjunto das relações humanas. O mito da estagnação é o sonho de todas as tiranias. A transformação é a capacidade de perceber que nada nem ninguém mantém a sua forma, nem o indivíduo nem a sociedade. O mito da transformação é o princípio do progresso. O Orçamento pratica estruturalmente a estagnação com a ignorância própria das mentes brilhantes que não fazem brilhar o país em direcção ao progresso. A grande ironia é que o Orçamento é político sem ter consciência da política. Talvez este detalhe explique que o político com mais sucesso em Portugal se tenha legitimado e eternizado no poder com a ideia de uma “Ditadura das Finanças”.

O Orçamento baixa agora ao Parlamento. No grande bazar da política nacional vai começar o leilão anual da nação. O documento original vai ser discutido, dissecado, debatido, laminado, tudo em infinitas películas de demagogia, tudo em doses vocais de indignação calculada, tudo em função dos interesses próprios dos partidos e da suposta estabilidade da República. O cálculo do Regime é a estratégia política da aritmética elementar – Comprar por cem, vender por mil. O drama vai ser grande, o conflito vai ser violento, os argumentos vão voar durante um mês no círculo fechado de uma câmara de eco. Todos estão em desacordo, todos concordam em discordar, todos acabam por votar um documento que ninguém conhece. A República está salva por mais um ano. E em triunfo, o Orçamento nunca sobe ao Parlamento.

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