Centeno, o Houdini orçamental que se libertou dos coletes de forças

É verdade que nada de estrutural foi mudado na despesa do Estado. Mas sejamos pragmáticos: depois de tantas décadas ia ser um governo socialista com o apoio do BE e do PCP a fazê-lo?

Esta segunda-feira Mário Centeno deixa de ser ministro das Finanças. É das saídas mais pré-anunciadas de que há memória na política portuguesa. Há um ano que o assunto estava regularmente em cima da mesa e chegou mesmo a ser um dos temas que animaram a campanha eleitoral das legislativas.

É provável que tenha sido o mandato no Eurogrupo, ainda por terminar, a “obrigar” Centeno a integrar este segundo governo de António Costa – mas isto não passa de especulação.

Não é justo, por isso, associar esta saída à crise que aí está. Esta desenhou-se subitamente nos últimos meses e tem uma origem que nada tem a ver com condições económicas ou orçamentais.

Então e Centeno foi um bom ou mau ministro das Finanças? Nos últimos dias lemos e ouvimos uma coisa e o seu contrário, como é habitual nestas coisas. A avaliação é essencialmente política e temos factos e argumentos sólidos que defendem as duas perspectivas sem envergonhar ninguém.

A minha avaliação é que Mário Centeno foi um bom ministro das Finanças e parte do contexto em que exerceu o mandato e, sobretudo, das expectativas que havia em 2015, quando chegou ao posto.

Há quatro anos e tal fui dos que recearam o pior.

O país estava ainda em convalescença de prognóstico reservado depois do programa duríssimo que garantiu o financiamento externo para evitar a bancarrota.

O défice (sem medidas extraordinárias) tinha sido já trazido para próximo dos 3% – tinha sido de 11,4% em 2010, é preciso recordar – e o acesso a financiamento de mercado já existia a taxas de juro suportáveis. A economia crescia há quase dois anos mas ainda abaixo de uns míseros 2%. A dívida estava acima dos 120% do PIB e sem perspectivas de cair.

O doente tinha sobrevivido mas a debilidade ainda fazia temer uma recaída séria. Qualquer passo em falso e a tragédia portuguesa repetia-se.

Foi neste contexto que o PS definiu as grandes linhas políticas com que se apresentou a eleições e depois formou governo.

Primeiro, com um discurso entusiasmado com uma certa ruptura com a Europa e as suas regras, que via no Syriza inicial a luz que iluminava um caminho que deveria passar pela reforma do Tratado Orçamental, pela reestruturação das dívidas e pela contestação aos limites do défice e regras de finanças públicas. Era preciso dar mais prioridade ao crescimento e menos exigente na redução do défice, era o que se defendia.

Depois, prometendo tudo sem dizer como ia conseguir recursos para conseguir a quadratura do círculo. A devolução de rendimentos ia ser acelerada, a carga fiscal ia baixar, o investimento público ia disparar, os recursos para os serviços públicos iam ser reforçados. E, claro, no fim disto tudo ainda haveria o rigor orçamental que todos os governantes desde D. Afonso Henriques apregoam.

Por fim, após as eleições percebeu-se que a sobrevivência do governo estava dependente do apoio parlamentar do PCP e do Bloco de Esquerda, que valorizam tanto o equilíbrio orçamental e políticas públicas financeiramente responsáveis como o perú gosta do Natal.

O quadro era este, devidamente suportado pelo trabalho prévio de 12 economistas liderados por Centeno onde as contas, no papel, batiam todas certo.

Mas sabemos todos duas coisas.

A primeira é que o Excel aguenta tudo o que lá queiramos colocar. Basta que as fórmulas não estejam engatadas para nos fazer passar vergonhas e toda a gente pode salvar o mundo numa folha de cálculo.

A segunda coisa que sabemos muito bem é a que a nossa história recente já nos mostrou várias vezes: quando a equação das promessas e do impacto financeiro das medidas tomadas é de resolução impossível, a variável de ajustamento tem sido sempre o défice, a dívida e por três vezes em 30 e poucos anos o socorro de entidades externas.

Como é que Mário Centeno, economista sólido recém chegado à política, sem o “peso político” que os analistas gostam de sublinhar ia resolver isto? Como iria libertar-se deste colete de forças contraditórias?

Os primeiros sinais não foram tranquilizadores. O Orçamento de 2015 tentou esticar a corda e fazer um teste a Bruxelas. Mas o esboço voltou para trás com o pedido de medidas adicionais que cumprissem o défice acordado. E assim se fez em Lisboa, num episódio que não voltaria a repetir-se na legislatura.

Aliás, a mudança foi rápida e muito ampla. O aluno que tinha prometido desafiar o sistema e virar a secretária rapidamente se tornou um dos mais zelosos cumpridores. Ao ponto de Mário Centeno chegar a presidente do Eurogrupo.

Sabemos agora qual foi o truque do Houdini das finanças públicas para se libertar dos coletes de forças. Contabilisticamente, cortou no investimento público, aumentou a carga fiscal com mais impostos sobre o consumo e património e ao longo de cada ano cativava e só libertava a despesa para os serviços públicos que fosse compatível com a última linha do Excel – a linha do saldo final global.

À medida que os bons resultados iam aparecendo a credibilidade do país aumentava, as taxas de juro iam caindo e isso deva mais margem de manobra à execução orçamental num ciclo virtuoso que depois levava a mais descidas de juros ainda.

Politicamente, o truque foi negociar com os parceiros da governação a aprovação de orçamentos que já sabia à partida não ia cumprir em duas variáveis importantes: investimento e despesa corrente para alguns serviços.

E isto correu tão bem que o défice foi ficando sucessivamente abaixo das metas fixadas, coisa rara em Portugal.

E foi de tal forma e tão popular que acabaram todos a jurar que gostam de “contas certas” desde pequeninos e afinal já ninguém gosta de défices e muito menos de restruturações da dívida.

Pode argumentar-se: “assim também eu”. Mas a verdade é que dá trabalho e até agora ainda ninguém o tinha feito. O primeiro orçamento com contas equilibradas da democracia foi o do ano passado – na verdade até com um ligeiro excedente.

Para quem defende há muitos anos, como é o meu caso, que uma das prioridades dos governos a fase positiva do ciclo económico é gastarem apenas o que cobram, sem deixar facturas incomportáveis para as gerações futuras, isto é um marco importante.

E é por isso que, contra as expectativas iniciais, Mário Centeno foi um bom ministro das Finanças. Nesta conjuntura política e ideológica dificilmente haveria outro que fizesse melhor.

Este é o copo meio cheio que valorizo.

Depois há o copo meio vazio e também se ouve argumentar: “teve uma conjuntura óptima, podia ter resolvido problemas e o que fez foi apenas surfar uma onda”.

Também é verdade. Nada de estrutural foi mudado na estrutura e despesa do Estado – apesar do travão que Centeno colocou na reposição do tempo de carreira dos professores, que seria uma bomba relógio a prazo.

Temos hoje os mesmos problemas estruturais que tínhamos há cinco anos, que não haja ilusões. O que se fez foi obrigar alguém com excesso de peso a vestir umas calças dois números abaixo para parecer melhor num encontro romântico. Ao mínimo gesto mais ousado vai tudo rebentar pelas costuras, pelo fecho e pelos botões.

Mas também já estou vacinado contra isso. Ao longo das últimas décadas já se pediram e prometeram tantas reformas do Estado, já se fizeram tantos estudos, e “papers”, e “think tanks” e grupos de trabalho, e seminários que já acredito mais no fim da fome no mundo do que na reforma do Estado português.

E sejamos pragmáticos: depois de tantas décadas ia ser um governo socialista com o apoio do BE e do PCP a fazer a reforma do Estado e a racionalizar a despesa pública?

Vamos ser realistas. Já bastou que Centeno, com esta composição de apoio parlamentar, tenha conseguido executar de forma muito próxima a trajetória do défice que o governo PSD/CDS tinha previsto até 2019.

É verdade. O governo socialista cumpriu e até superou as metas do défice que o governo anterior tinha deixado de herança no Programa de Estabilidade e Crescimento 2015-19, as tais que eram um produto da austeridade e da obsessão pelo défice.

Afinal acelerou, e não abrandou, a descida nominal do défice.

E, ironia das ironias, nesse documento previa-se, pela primeira vez, um excedente orçamental de 0,2% em 2019.

Precisamente o valor alcançado por Mário Centeno e que lhe garante um lugar na história.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Centeno, o Houdini orçamental que se libertou dos coletes de forças

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião