Contratação pública suspensa: o que acontece às propostas apresentadas?

Esta suspensão abrange quer os prazos dos procedimentos em curso quer os dos que venham a ser lançados durante a vigência desta Lei.

A suspensão dos procedimentos de contratação pública é uma das medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e pela doença Covid-19 decididas pela Assembleia da República, sob proposta do Governo, vertidas na Lei n.º 1-A/2020, de 20 de março (referimo-nos aqui, e ao longo de todo este artigo, à contratação pública não abrangida pelo regime excecional aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março).

Na verdade, nos termos do artigo 7.º, n.º 6, alínea c), da Lei n.º 1-A/2020, em conjugação com o n.º 1 dessa mesma disposição, estão suspensos, desde o passado dia 12 de março, os prazos administrativos que corram a favor de particulares.

Ora, tendo presente esta norma, não se vê como possam considerar-se não suspensos os procedimentos de contratação pública, uma vez que a tramitação destes procedimentos pressupõe uma série de prazos que o Código dos Contratos Públicos (CCP) concede (ou admite que as entidades adjudicantes concedam) aos operadores económicos (por ex., os prazos para apresentação de propostas, para o exercício do direito de audiência prévia ou para a apresentação de documentos de habilitação).

É verdade que a expressão “prazos administrativos que corram a favor de particulares” se presta a equívocos, por ser inédita no nosso ordenamento. Mas a razão de ser da norma e, aliás, de todo o diploma, parece ser a de acautelar situações de impossibilidade ou dificuldade dos particulares no exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus ónus e deveres, bem como a promoção do isolamento social. Nesta linha, as empresas foram instadas a adotar, se possível, o teletrabalho, com todas as dificuldades inerentes e com o necessário tempo de adaptação a uma nova realidade.

Sensível a este contexto, o legislador, numa ótica de proteção dos particulares, determinou a suspensão de todos os prazos que a estes coubesse observar. Por que razão haveria de excluir os interessados no âmbito de procedimentos pré-contratuais desta proteção?

Deste modo, embora não desconheçamos as posições em sentido contrário, só podemos concluir, quer do ponto de vista literal quer do teleológico, que a Lei n.º 1-A/2020 determina a suspensão dos prazos previstos no CCP para a adoção de quaisquer condutas por parte dos operadores económicos.

Esta suspensão abrange quer os prazos dos procedimentos em curso quer os dos que venham a ser lançados durante a vigência desta Lei.

E isso equivale, na prática, à suspensão dos procedimentos de contratação pública, uma vez que, suspensos os prazos dos procedimentos, não podem estes seguir o seu curso.

Temos consciência do impacto desta interpretação na atividade contratual das entidades adjudicantes. Mas é esse o claro efeito desta Lei, que, surgindo num contexto de emergência, acabou eventualmente por ir mais longe do que o desejado ou necessário.

Teria sido possível enveredar por outra via, porventura conferindo às entidades adjudicantes o poder de, caso a caso, e verificados determinados pressupostos (por ex., procedimentos tendentes à celebração de contratos que se destinem a suprir determinadas necessidades essenciais ou relevantes), levantarem a suspensão legal, mediante decisão fundamentada. É que além dos contratos abrangidos pelo regime excecional consagrado no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, outros podem afigurar-se necessários ou muito convenientes, mesmo no atual contexto.

Mas não foi essa a solução legal adotada. Perante ela, surgem algumas dúvidas, que procuramos agora responder, oferecendo também apontamentos para uma oportuna revisão deste regime.

A primeira questão que se coloca é esta: podem os operadores económicos dar o seu acordo ao levantamento da suspensão nos procedimentos que se encontram em curso?

A nosso ver, embora isso não decorra do enunciado literal da norma, a resposta é afirmativa.

A suspensão foi estabelecida para proteção dos particulares e estes podem, querendo, dela prescindir. Foi essa aliás a opção do ordenamento jurídico espanhol.

É claro que esse acordo será mais fácil de obter em procedimentos de ajuste direto, mas não há qualquer razão para que não possa ter lugar em qualquer outro tipo procedimental, conquanto se obtenha o acordo de todos os interessados.

Esta válvula de escape não deixa de colocar uma dificuldade: no limite, os operadores económicos podem obstar ao seu levantamento, não por razões de impossibilidade ou dificuldade de participação, mas por mera estratégia comercial, ficando as entidades adjudicantes desprotegidas em tal cenário. Também por isso se justificaria que as entidades adjudicantes pudessem ter algum nível de discricionariedade na hora de decidir levantar a suspensão dos prazos, desde que, como dissemos, verificados determinados pressupostos enunciados na lei.

A segunda questão é esta: e quanto aos procedimentos a lançar no futuro, pode haver acordo dos operadores económicos para o levantamento da suspensão?

Com exceção do ajuste direto e da consulta prévia, em que o universo de potenciais interessados é definido pela própria entidade adjudicante, não vemos como possa este acordo ter lugar nos procedimentos que dependam da publicação de um anúncio (concurso público, concurso limitado por prévia qualificação, procedimento de negociação e diálogo concorrencial).

É que nestes procedimentos não é possível conhecer de antemão o universo de potenciais interessados a quem pedir esse acordo. E tal acordo não pode presumir-se da apresentação de propostas no procedimento, como se de acto ficto se tratasse. Com efeito, sempre teriam ficado de fora, desprotegidos, os operadores económicos que, em virtude do Estado de Emergência, se veem impossibilitados ou em dificuldades de participar. Se esta Lei os quer proteger, admitir tal hipótese seria dar às entidades adjudicantes a possibilidade de fintar o propósito do legislador.

A terceira questão a que importa dar resposta é esta: a suspensão dos prazos também abrange o prazo da obrigação de manutenção das propostas?

Em nosso entender, não.

O prazo da obrigação de manutenção das propostas, previsto no artigo 65.º do CCP, é estabelecido no interesse dos operadores económicos, permitindo que estes se desvinculem validamente das propostas apresentadas após o decurso de um determinado lapso temporal.

É uma medida que acautela a normal evolução das circunstâncias que pode ocorrer no decurso de um procedimento pré-contratual e que pode determinar a perda do interesse em contratar, ou em contratar nas condições anunciadas na proposta, por parte dos operadores económicos.

Por isso, não faria sentido, tendo em conta a ratio da Lei n.º 1-A/2020, obrigar os operadores económicos a ficarem amarrados às propostas apresentadas quando, mais do que nunca, os pressupostos nos quais basearam a sua elaboração podem ter sofrido uma drástica alteração, de extensão ainda incerta. Suspender este prazo seria prolongá-lo, desprotegendo-os em vez de os proteger.

E isto traz-nos à questão seguinte: devem os operadores económicos continuar vinculados às propostas que apresentaram nos procedimentos em curso?

É claro que, continuando a correr o prazo da obrigação de manutenção das propostas, como defendemos, os operadores económicos ficam à partida protegidos, podendo, após o seu termo, retirar as suas propostas, se tiverem perdido interesse em contratar nos termos inicialmente apresentados e por conta da alteração brutal de circunstâncias.

Mas a verdade é que há, pelo menos, duas situações em que esse prazo não é suficiente para salvaguardar a sua posição. Por um lado, pode acontecer que os procedimentos retomem o curso ainda na pendência do prazo da obrigação de manutenção das propostas e, aí, os operadores continuam vinculados a elas. Por outro lado, este prazo não abrange a fase que medeia entre o ato de adjudicação e a celebração do contrato: ou seja, os operadores que tenham visto a suas propostas serem adjudicadas, mas que ainda não tenham celebrado o respetivo contrato, não têm forma de desistir da contratação sem incorrerem numa contraordenação prevista no CCP (v. artigo 457.º, alíneas b) e c)).

O que fazer nestas circunstâncias de desproteção? A Lei nada diz a este respeito.

E é pena que o não faça, porque este pode vir a ser um dos maiores dramas enfrentados pelos operadores económicos, sujeitos hoje a um contexto radicalmente distinto daquele que existia quando elaboraram as suas propostas.

Podem hoje, e nos próximos tempos, os operadores económicos garantir o cumprimento dos prazos, preços e demais condições a que se comprometeram, quando a economia parou, as cadeias de distribuição e de produção sofreram alterações e as condições financeiras das empresas se modificaram por motivos que lhes são alheios? E o que acontece se esses operadores ficarem impossibilitados, a título definitivo, de executar as prestações a que se comprometeram? Poderão ser sancionados pela não outorga do contrato, como decorre da aplicação do regime previsto no CCP (v. artigos 456.º a 458.º)?

Ao nada dizer, a Lei n.º 1-A/2020 falha na proteção dos operadores económicos, e logo onde estes mais carecem de apoio.

É que não há no CCP qualquer regra aplicável à alteração das circunstância na fase pré-contratual, salvo no que se refere às entidades adjudicantes, que estão autorizadas a revogar a decisão de contratar, nos termos do artigo 79.º, n.º 1, alínea d), e n.º 4 e do artigo 80.º do CCP. Com efeito, este Código trata apenas da alteração das circunstâncias na fase da execução do contrato.

Claro que, na ausência de um quadro normativo específico, será possível invocar, mesmo na fase pré-contratual, os princípios gerais de direito (em particular o da boa fé) e a cláusula geral rebus sic stantibus, com vista à identificação de uma solução para cada caso. No entanto, a ausência de um enquadramento legal suficientemente claro pode dar azo a respostas díspares e, no limite, desajustadas por parte das entidades adjudicantes, com grande potencial de litigiosidade.

No passado, este tema suscitou controvérsia, tendo o Tribunal de Contas adotado um entendimento conservador quanto à possibilidade de modificação de propostas por alteração das circunstâncias.

Sucede que estamos em Estado de Emergência, num contexto tão radicalmente distinto, que não pode senão esperar-se que a Lei, em futura revisão, venha responder a estas questões.

Assim, em concreto, seria importante dar resposta às seguintes situações: (a) impossibilidade definitiva de execução da prestação a que o operador económico se comprometeu na proposta (por ex., porque os fornecedores ou prestadores dos quais dependia essa prestação entraram em situação de insolvência, sendo insubstituíveis), e (b) dificuldade ou custo acrescido na execução da prestação a que o operador económico se vinculou na proposta (por ex., por aumento exponencial dos preços ou dos prazos de entrega que os seus fornecedores praticam).

Para fazer face a estas situações, podem ser equacionadas algumas soluções, a introduzir por via legislativa.

Uma delas passa pela criação de uma regra segundo a qual, com a notificação da adjudicação ou da data para outorga do contrato, consoante o caso, a entidade adjudicante pergunta ao adjudicatário se pretende manter a sua proposta. Se a resposta for negativa, a adjudicação caduca, devendo ser adjudicada a proposta ordenada em lugar subsequente, aplicando-se, sucessivamente, a mesma regra.

É claro que, em tal cenário, a entidade adjudicante – e reflexamente o interesse público que esta visa satisfazer – fica potencialmente mais desprotegida, podendo ver-se confrontada com a retirada de todas as propostas, acabando com um procedimento deserto.

Mas este é um falso problema. Se o adjudicatário for forçado a celebrar um contrato que não tem condições de executar ou cujo cumprimento o coloca numa situação economicamente desastrosa, o problema da alteração das circunstâncias será apenas transferido para o momento da execução do contrato. Para usar uma imagem, será “empurrar o problema com a barriga”.

Uma vez celebrado o contrato, o operador económico já poderá acionar os institutos jurídicos ao seu dispor, como o da alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, que poderá dar lugar à atribuição de uma compensação financeira segundo a equidade (artigo 314.º, n.º 2, do CCP), ou o da força maior.

Só que esta situação repugna ao sistema jurídico, já que obriga à celebração de um contrato que se destina irremediavelmente, e logo à nascença, a ser modificado ou, no limite, incumprido.

Uma segunda solução passaria pela criação de uma regra que permitisse aos operadores económicos modificarem, se assim quiserem, as suas propostas já depois de decorrido o respetivo prazo de apresentação, permitindo-lhes acomodar nas condições contratuais (designadamente de preço e de prazo) a maior onerosidade que passaram a enfrentar na execução das suas prestações.

Esta solução levanta menores questões no caso de as propostas ainda não terem sido disponibilizadas aos outros concorrentes, não sendo assim suscetível de lesar o princípio da concorrência. Já mais dúvidas, e robustas, se colocam no caso de as propostas já serem do conhecimento de todos, o que seria um abalo no princípio da concorrência, com o qual temos dificuldade em conviver mesmo neste contexto de emergência.

Pelo contrário, já não nos parece que estas duas soluções devam valer para os procedimentos que venham a ser lançados no futuro, já que nestes os operadores económicos elaborarão as suas propostas conhecendo o atual contexto excecional.

O que é certo é que a Lei devia dar resposta a esta problemática, e esperamos que o venha a fazer, trazendo alguma segurança e uniformidade interpretativa, sob pena de desproteger os operadores económicos naqueles casos em que os procedimentos retomem o seu curso antes de esgotado o prazo da obrigação de manutenção das propostas ou em que a proposta já foi adjudicada mas o contrato ainda não foi celebrado.

Com efeito, segurança e uniformidade são essenciais num contexto excecional, na medida em que, com fundamento na excecionalidade, interpretações e entendimentos muito díspares podem surgir – o que não é desejável.

Num contexto de emergência, não há situações ou soluções ótimas, que encaixem na perfeição no regime instituído. E por isso é essencial que, sobre essas soluções, se suscite um debate que possa levar ao seu aperfeiçoamento. Foi o que procurámos fazer.

*Adolfo Mesquita Nunes e Débora Melo Fernandes são advogados da Gama Glória.

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