Cowboys & criaturas azuis

Enquanto a comédia política se desembaraça como pode e como sabe, o País não tem resolvida a questão da pandemia, nem da economia, nem dos testes, nem das vacinas.

Portugal é o melhor País da Europa no ranking covid. Para aqueles que criticaram o confinamento, as restrições à normalidade, os custos económicos, as desigualdades, o atraso geracional nas escolas, os dias de culpa, a miséria dos infelizes, podem agora esconder-se por detrás das palavras para viver o mundo de um romance encenado num palco às escuras. O Mundo Real é o reflexo de um Mundo Fechado que se transforma no outro lado do espelho. Não há engano, nem há poder, capaz de resolver a complexidade do factor humano.

Todo este tempo tem sido um confronto entre o mundo redondo das ideologias e o mundo plano da pandemia. No mundo redondo das ideologias é o automatismo do pensamento formatado em que as prepotências disfarçadas de sentimentalismo descobrem na alma dos trabalhadores confinados os mistérios da opressão. No mundo plano da pandemia é a presença invariável da incerteza que não se coíbe de massacrar corpos e vidas com a espontaneidade da Natureza. A Natureza não conhece a economia ou a moral, apenas a sobrevivência.

O primeiro-ministro não está interessado nestes dilemas, mas a sua postura régia no Conselho Europeu transmite a imagem de um soberano da Europa, de um dominador da doença, a grande e boa arrogância nacional bem capaz de entrar no coração dos europeus sem pedir licença. A inspiração do Primeiro-Ministro é de compreensão lenta e funciona a “conta-gotas”, mas a nova atitude do Governo é o reflexo de uma perestroika pandémica, de uma visão em que a glasnost progressista revela a situação do País num quadro colorido em registo de playstation – o jogador passa a linha para a zona amarela ou vermelha e regressa ao confinamento; o jogador fica com um bónus de munições na zona verde e tem via verde para o futuro. É a pandemia no algoritmo dos números. É sempre confortável para a política quando a tecnocracia e a burocracia anulam o factor humano.

O Presidente da República repete declarações de independência com a regularidade de um relógio parado e sempre certo de quinze em quinze dias. Pois que haja sacrifício, pois que tenham esperança, pois que os dias futuros trazem o eco dos Amanhãs que Cantam. Em Estado de Emergência é a normalidade de um automóvel que passeia em círculo fechado e onde os portugueses são tratados como personagens estáticas saídas de um filme inglês dos anos 50 – cada vez que o automóvel passa tiram o chapéu e murmuram “Com certeza e adeus Senhor Presidente”. Nos intervalos da Constituição, não se consegue perceber onde fica o factor humano.

Enquanto a comédia política se desembaraça como pode e como sabe, o País não tem resolvida a questão da pandemia, nem da economia, nem dos testes, nem das vacinas. Talvez haja vacinas quando o Banco Central Europeu começar a imprimir as doses necessárias como fez com os Euros na Crise da Dívida Soberana. No entanto, há uma leveza no ar que aponta para os dias perfeitos em que se respira sem receio das pandemias e de outros elementos patogénicos. “A sirene do nevoeiro não precisa da opinião favorável do nevoeiro”. Pois que se mantenham as sirenes.

A propósito de qualquer coisa ou de uma leitura incerta, ocorre-me que a pandemia desperta um conflito entre o mito do Avatar e o mito da Grande Fronteira.

No mito do Avatar, no Mundo das Criaturas Azuis, a Natureza é invadida por um exército de selvagens que pretende explorar violentamente os recursos naturais para satisfação dos desejos e dos caprichos e do lucro ao serviço do Progresso e da Grande Ordem Mundial. O confronto entre os Selvagens Humanos e a violação e destruição dos limites da Natureza Pura é o prognóstico de todas as catástrofes, desde o surgimento de novos vírus com potencial pandémico até ao colapso das Alterações Climáticas.

No Mito da Grande Fronteira, no Mundo do Homem Civilizado, a Natureza é vista como o território por excelência para a afirmação e expansão do Potencial Humano, a Natureza como território hostil, inóspito, inumano, a concretização real de todas as ameaças. O confronto entre a Civilização Humana e a zona de exclusão de uma Natureza Negra é o prognóstico de todo o Progresso, desde a construção de uma Utopia da Abundância até ao controle da Natureza Maligna dominada e colocada ao serviço da Prosperidade da Humanidade. O drama político associado a esta descrição é que o Mundo e o Homem funcionam simultaneamente das duas maneiras, não existe uma ideia de Paraíso sem um conceito de Inferno.

O Mito do Avatar traz a pandemia. O Mito da Grande Fronteira traz a vacina. Nas salas assépticas digitalizadas do Conselho Europeu, nas proclamações libertadoras do Presidente da República, não existe a noção das Criaturas Azuis e sobra o hábito da segurança de um Mundo Normal, criado pela exuberância da Civilização Humana, construído pela Grande Aventura do Explorador, celebrado vezes sem conta na Épica dos Descobrimentos e na Identidade Nacional. Neste estado de confusão moral sobre o factor humano, neste momento da pandemia, somos todos Criaturas Azuis e Cowboys no limite de um Destino Manifesto.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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