
Em mar de piranhas, jacaré nada de costas (II)
A falta de imaginação da inteligência artificial, um museu fora da caixa, um pavilhão para lembrar Julião Sarmento e a vingança que, para variar, se serve fria ChatGPT e falta de imaginação.
Um artigo do escritor Thomas McMullan refletia, no ‘FTWeekend’ desta semana, sobre o número crescente de pessoas que utilizam o ChatGPT para expressarem as suas emoções. Não se trata já da elaboração de monótonas propostas comerciais ou de inofensivos convites para a festa de Natal. Muitas pessoas transferem para a inteligência artificial o poder de gerar o seu estilo e entregam-lhe a missão de personalizar a sua relação com os outros, seja através de uma carta a um ente querido ou de uma nota dirigida à sua hierarquia ou a um acionista da sua empresa.
O que é assustador neste processo, além de todas as questões éticas que daqui decorrem, é a demissão de pensar pela própria cabeça e de expressar os próprios sentimentos, perdendo, como refere um professor de ética, citado no artigo, ‘a capacidade de articular os seus desejos e de falar sem a assistência da tecnologia’. E, no limite, a prossecução de uma ideia delirante que assenta na crença de que a inteligência artificial pode substituir a imaginação dos humanos. Estima-se que em maio deste ano, 800 milhões de pessoas usaram o ChatGPT semanalmente.
Acredito que esta nova forma, contemporânea e tecnológica, de facilitismo libertará muitas pessoas desses fardos insuportáveis que são os de enfrentar uma página em branco ou de pensar e sentir em excesso, tornando-as mais disponíveis para atividades essenciais do nosso tempo como sejam o exercício da frivolidade e da mundanidade. Ninguém questiona que a inteligência artificial pode ser um motor de inovação e uma ferramenta ao serviço das pessoas. Na arte, por exemplo, há experiências surpreendentes e desafiadoras de artistas que a utilizam nos seus trabalhos. Deveria, porém, fazer-nos pensar quando uma das suas óbvias consequências é a de gerar seres humanos preguiçosos e muito menos interessantes.
O Financial Times foi fundado em Londres em 1888. Mais de 2 milhões de pessoas lêem-no diariamente em todo o mundo. Ao sábado, tem um magnífico suplemento sobre Arte e Cultura.
Um museu fora da caixa e dos circuitos habituais
Na freguesia rural de Santa Catarina da Fonte do Bispo, a mais pobre e mais idosa do Algarve, está prestes a inaugurar o espaço físico do Museu Zero, um centro de artes dedicado à arte digital. Há mais de sete anos que esta instituição sem fins lucrativos desenvolve uma atividade fértil e intensa no Algarve, organizando exposições e espetáculos de música eletrónica, fazendo mediação cultural com mais de 17 mil alunos em 40 escolas da região, e recebendo artistas nacionais e internacionais em residências artísticas. O projecto nasceu da cabeça de um dos homens mais inteligentes que tive o privilégio de conhecer, Paulo Teixeira Pinto, que tem sido ao longo da sua vida muitas coisas diferentes: jurista, banqueiro, apaixonado pela arte, pela poesia e pela filosofia. O Museu Zero ocupa uma parte do edifício da Cooperativa Agrícola de Santa Catarina da Fonte do Bispo, que foi reabilitada para o efeito. A cooperativa continua, no entanto, a desenvolver a sua atividade de produção de azeite, aguardentes e licores. Paulo Teixeira Pinto fala de uma associação virtuosa e inesperada entre a Cultura e a Agricultura que permite trazer para uma freguesia vulnerável e rural um espaço de pensamento e criação artística. O Museu Zero, ao contrário do número que lhe dá o nome, não é neutro. E é mesmo um excelente exemplo para quem acredita na Cultura como fator de inspiração e transformação da sociedade.
Santa Catarina da Fonte do Bispo é uma pequena freguesia (119 km quadrados), com cerca de 1500 habitantes e é considerada uma Área de Baixa Densidade. É, no entanto, a freguesia do país com o nome mais longo.
Para lembrar Julião Sarmento
Julião Sarmento foi um homem generoso, um colecionador de outros artistas, e um dos grandes artistas portugueses contemporâneos. A inauguração do Pavilhão com o seu nome juntou, num momento de grande emoção e alegria, artistas, galeristas, colecionadores e muitos amigos. Não é muito comum no mundo artístico, encontrar um nome tão consensual entre os seus pares. O pavilhão reforça o eixo cultural de Belém e é um projeto belíssimo do arquiteto João Luis Carrilho da Graça. A curadoria da primeira exposição, com obras da coleção do artista, é da diretora do novo espaço, Isabel Carlos. E é ela quem promete que o pavilhão será ‘um porto de abrigo e de encontro entre criadores e comunidade’. Nos próximos meses, estão previstas conversas com João Luís Carrilho da Graça, Pedro Falcão, Clara Ferreira Alves e Alexandre Melo que partilharão as suas memórias do artista. Ora, aqui está o propósito de tudo isto: lembrar Julião Sarmento, através das obras de arte que colecionou, das afinidades eletivas que cultivou, e do artista ímpar que é.
O Pavilhão Julião Sarmento está aberto de quarta-feira a terça-feira das 11h às 19h. Encerra à segunda-feira. O pavilhão tem entrada gratuita até domingo, 8 de junho.
Uma chatice
Isto não é sobre política: é sobre a vida e a natureza humana. Um ex-líder regressa para atacar outro ex-líder que não lhe manifestou empatia e solidariedade republicana num momento de aflição com a Justiça. Outro ex-líder reaparece para menorizar outro ex-líder que se candidatou a líder e manifestar apoio ao seu adversário nessa disputa. Este mesmo ex-líder aproveitou ainda o seu tempo de antena para apoucar outro ex-líder, de quem foi apoiante e colaborador no passado, por se perder no comentário avulso e conjuntural no exercício das funções a que também se candidata o futuro líder de que agora é mandatário. Pela amostra apensa, a vida dos ex-líderes é tensa, ociosa e cheia de ressentimentos. Ter sido líder, ao contrário do que supunha, nem sempre eleva o espírito. Pelo contrário, deixa mazelas e uma azia persistente. Uma chatice.
Já Karl Kraus, dramaturgo e jornalista austríaco do início do século XX, famoso pelos seus cortantes aforismos tinha escrito que ‘a vingança é uma fonte de satisfação tão grande que muitos se vingariam mesmo que não tivessem sido ofendidos’.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Em mar de piranhas, jacaré nada de costas (II)
{{ noCommentsLabel }}