Gestão de Riscos Core: Pilar de Estabilidade num Mundo Volátil

  • Helena Chaves Anjos
  • 16 Junho 2025

A importância da gestão da liquidez e dos ativos-passivos é dissecada por Helena Chaves Anjos que também identifica as preocupações que a Autoridade de Supervisão expressa na sua comunicação.

Numa era marcada por transformações geopolíticas, ajustamentos monetários e desafios de sustentabilidade, o setor segurador é chamado a reforçar as suas práticas de gestão de risco com novos instrumentos e abordagens e, sobretudo, com uma nova vigilância. A recente recomendação da autoridade de supervisão de seguros e dos fundos de pensões (ASF), do dia 13 de maio de 20251, relativa à gestão de liquidez e ativos-passivos, enquadra-se neste imperativo, constituindo um sinal claro da transição para um modelo de governação preventiva, assente nos princípios fundamentais da supervisão orientadora de riscos.

O setor segurador, pela natureza da sua atividade, assume riscos e gere compromissos de médio e longo prazos, estando exposto a ciclos económicos prolongados, contudo, enfrentando condições financeiras de maior volatilidade no curto prazo. A maturidade dos passivos, o comportamento dos clientes e as incertezas nos mercados de capitais tornam a gestão da liquidez, bem como o desalinhamento entre ativos e passivos, riscos latentes e potencialmente sistémicos. Neste contexto, o reforço da estrutura de governação, práticas de gestão de risco, métodos quantitativos e qualitativos, e transparência da informação, antecipada e reportada, são elementos absolutamente necessários ao bom governo dos riscos financeiros.

Os dois eixos de um mesmo risco sistémico

Assegurar a coerência entre os fluxos financeiros dos ativos e passivos é um exercício crítico para a estabilidade do negócio das empresas de seguros e para a estabilidade financeira do setor em termos agregados. A prática da gestão dinâmica dos riscos entre ativos-passivos bem estruturada — com políticas escritas, métricas de tolerância, cenários de risco e instrumentos de mitigação — permite antecipar desequilíbrios e prevenir ajustamentos críticos, ao longo da vigência dos produtos em carteira, com especial relevância nos períodos de maior pressão financeira. De igual modo, a gestão ativa da liquidez, com análises segmentadas e planos de contingência testados, no caso de eventos extremos e comportamentos massivos, dos agentes ou mercados, protege as empresas de ruturas financeiras que comprometem a sua capacidade de cumprir obrigações contratuais.

Neste quadro, a Recomendação ASF n.º 3/2025 traduz exigências já presentes na Norma Regulamentar n.º 4/2022-R e no regulamento europeu n.º 2015/35, mas clarifica aspetos-chave quanto à segmentação por linha de negócio, testes de esforço incorporados na autoavaliação do risco e solvência, coerência metodológica entre gestão de capital e risco de liquidez. Enfatizando a importância da divulgação pública — Relatório sobre a Solvência e a Situação Financeira (SFCR, Solvency and Financial Condition Report) — como instrumento disciplinador do mercado, conferindo transparência à estratégia e práticas de gestão no setor.

Princípios-chave da governação e supervisão

Para melhor compreender o espírito destas recomendações, é útil regressar aos fundamentos dos princípios core da supervisão internacional da IAIS (International Association of Insurance Supervisors) — Associação Internacional dos Supervisores de Seguros — os Insurance Core Principles (ICPs). Estes princípios constituem o elemento central do enquadramento regulatório internacional do setor segurador e são hoje amplamente utilizados como referência tanto pela autoridade nacional bem como pelas congéneres homólogas no contexto europeu e global.

No que respeita ao princípio do sistema de gestão de riscos é estabelecido que todas as seguradoras devem dispor de processos eficazes, abrangentes e ajustados ao seu perfil de risco (ICP 8). Tal implica não apenas a existência de políticas e limites, mas também mecanismos de escalada de informação — canais internos que permitam sinalizar, a tempo, situações de deterioração — e uma real capacidade de resposta. Ou seja, a gestão de risco não se resume a monitorizar indicadores; é também sobre ativar decisões, com agilidade, quando as condições o exigem.

Por sua vez o princípio relativo aos requisitos de capital determina que o capital das seguradoras deve refletir adequadamente o seu perfil de risco (ICP 17). O capital deve ser sensível ao risco, ter capacidade de absorver perdas e permitir à autoridade supervisora intervir, de forma proporcional, sempre que se detete uma erosão da solvência. Este princípio articula-se diretamente com as exigências de ALM, já que uma má gestão de ativos e passivos pode rapidamente transformar-se num problema de capital.

Por fim os princípios referentes à governança e à divulgação pública são igualmente críticos (ICP 7 e ICP 20, respetivamente). O primeiro reforça a responsabilidade do órgão de administração em assegurar uma cultura de risco saudável, com funções-chave devidamente independentes. O segundo exige que a informação prestada aos stakeholders — incluindo o público — seja fiável, compreensível e útil para avaliar a situação da empresa. Isto inclui, naturalmente, a gestão de liquidez e de ativos-passivos.

A supervisão e o escalonar da decisão

Ao integrar estes e outros princípios no seu modelo de atuação, a Autoridade aproxima-se progressivamente de uma lógica de supervisão baseada no risco, prospetiva e preventiva. O foco está não apenas no cumprimento formal, mas na capacidade das empresas anteciparem cenários adversos e de se reorganizarem antecipadamente em tempo útil. Aqui os mecanismos de escalada de informação ganham uma especial relevância. Escalonar a informação crítica de risco para tomada de decisão informada e atempada implica muito mais do que alertas automáticos, assentes mecanismo de aprovação e reporte, mas uma visão integrada e sistémica capaz de articular as várias dimensões e riscos no espaço e no tempo de acordo com cenários futuros.

Nesse sentido os modelos de governo com canais de comunicação eficazes entre as várias funções e níveis da organização, em que um sinal de alarme no nível técnico possa ser rapidamente compreendido, avaliado e transformado em decisão ao nível da gestão de topo, são vitais ao sistema de governação de riscos. Tal implica, também, uma cultura organizacional que valorize a transparência interna e o reporte honesto de desvios. Por outro lado, a capacidade de resposta é o reflexo da maturidade dos modelos e planeamento da gestão de riscos. Um plano bem desenhado e estruturado deve assentar em métricas especificas, monitorização regular, avaliação de desvios, e ações corretivas predefinidas, de acordo com define prazos estabelecidos, ações e responsabilidades. Um plano eficaz deve ser testado, ajustado e incorporado nos processos de decisão das ações e reações de gestão. Este modelo amplamente testado e adotado, no âmbito dos riscos macroeconómico, no exercício de teste de esforços, aplica-se quer à liquidez quer à gestão dos ativos passivos, para reequilíbrio das carteiras ou à reavaliação de estratégias de cobertura.

A autoavaliação e supervisão proporcional

O exercício de autoavaliação de risco e solvência surge, neste contexto, como instrumento de charneira, permitindo às empresas de seguros avaliarem o seu perfil de risco em função da sua própria estratégia, indo além dos requisitos mínimos regulamentares. Este exercício deve incorporar os testes de esforço referidos na recomendação agora emitida, incluindo cenários de stress sobre liquidez, choques de taxas de juro ou desvios na maturidade dos fluxos. A supervisão proporcional — outro pilar dos princípios core — garante que estas exigências são ajustadas à dimensão, natureza e complexidade das empresas. Não se trata de impor o mesmo a todos, mas de assegurar que cada entidade tem o que precisa para proteger os seus tomadores e sustentar a sua viabilidade. A autoridade tem procurado articular essa proporcionalidade com uma crescente exigência qualitativa, sobretudo em relação à governança e ao controlo interno.

A transparência e sustentabilidade futura

A transparência ganha uma dimensão estratégica (ICP 20), não apenas como dever de reporte, mas como ferramenta de disciplina do mercado. A informação pública obriga à coerência entre discurso e prática e favorece a comparação entre empresas. Mais recentemente, as exigências de divulgação têm sido alargadas aos riscos de sustentabilidade, com impacto direto na gestão de portefólios, na política de subscrição e na comunicação com investidores. Neste sentido, a governação dos riscos ambientais, sociais e de governação — e em particular dos riscos climáticos — constitui o próximo desafio do setor. Mas tal como na liquidez ou na gestão dos ativos – passivos, o problema não é apenas identificar o risco: é saber como o integrar nas decisões e, sobretudo, como comunicar internamente quando os limiares definidos forem ultrapassados.

Um setor preparado e resiliente

Esta recomendação, agora detalhada, com base nos princípios core da supervisão internacional, vem reforçar os requisitos do sistema de governação de riscos chave do setor nacional, sendo um convite à maturidade institucional na governação e supervisão de riscos macroeconómicos. Exigindo que as empresas de seguros nacionais tenham a capacidade não só de cumprir regras, mas de conhecerem em profundidade o seu perfil de riscos, anteciparem cenários futuros e de se reorganizarem perante um contexto adverso. Os princípios core fornecem um quadro de referência para esta evolução. Contudo será a qualidade das práticas internas — desde a cultura e modelos de risco à eficácia dos mecanismos de escalada de informação e tomada de decisão — que determinará o sucesso das empresas, no contexto atual de maior volatilidade.

É tempo de cada entidade do setor segurador rever os seus mecanismos de comunicação e resposta. Estão definidos os níveis de alerta para os vários patamares de riscos? Existe um comité formal para avaliar os desvios significativos entre cenários? Estão os planos de contingência testados e atualizados? A capacidade de resposta começa por aqui — por saber quando escalar, a quem escalar e com que grau de decisão, informação e precisão. Só assim se constrói um setor verdadeiramente resiliente, ao serviço dos seus compromissos e da confiança pública, para maior estabilidade e sustentabilidade financeira futura.

1 Recomendações ASF n.º 3/2025, de 13 Maio, publicada dia 20 de maio de 2025

  • Helena Chaves Anjos
  • Economista e Mestre em Finanças. Especialista em gestão de risco nos seguros

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