Há dinheiro e plano. O que pode correr mal? Quase tudo, como sempre

Se nos últimos 35 anos também houve dinheiro da União Europeia e os resultados não foram famosos e se vamos continuar a fazer tudo na mesma o que nos leva a pensar que desta vez será diferente?

O dinheiro vem a caminho e até já temos um plano estratégico para o aplicar. Portanto, o que é que pode correr mal? É simples: o que pode correr mal é que tudo continue a correr como os últimos 35 anos, com um sublinhado especial para os últimos 20 anos. Ou seja, que nada mude e tudo continue como dantes.

E os sintomas que apresentamos apontam para esse diagnóstico: o importante é que venham os dinheiros de Bruxelas e depois logo se vê.

Vai ser uma “pipa de massa”, cerca de 19 milhões de euros por dia ao longo de sete anos. Uma cornucópia arrancada a ferros numa daquelas dramáticas maratonas em que a Europa é sempre salva. A União Europeia já terá sido salva desta forma umas 23 vezes das últimas duas em que esteve realmente em perigo.

E, não por acaso, as ameaças e salvações da União Europeia têm sempre a ver com dinheiro, muito dinheiro. Não houve este dramatismo nos momentos mais críticos da crise dos migrantes e refugiados, nas violações às boas práticas democráticas que vão aparecendo aqui e ali em Estados membros, com Hungria e Polónia à cabeça, nem sequer na inoperância comum que se viu na resposta sanitária à pandemia.

Não é dessas solidariedades que se fala quando se fala de solidariedade europeia.

O drama foi agora, como já tinha sido na reunião do Eurogrupo de onde saiu a primeira resposta orçamental à crise – aquele de Abril que acabou com aplausos e tudo. E manifesta-se de uma forma muito simples e pragmática: os países recebedores líquidos do orçamento comunitário querem receber o máximo possível e os países pagadores líquidos do orçamento comunitário querem pagar o menos possível.

À volta destas duas posições há as respectivas narrativas, sobretudo para consumo interno das opiniões públicas.

E nada como um inimigo externo para arregimentar tropas e cerrar fileiras. Nós, com os restantes países do Sul, somos a ameaça dos do Norte porque somos gastadores e maus gastadores. E eles, os do Norte, os “frugais”, são a nossa ameaça porque são ricos insensíveis e desconhecem o que é a solidariedade.

Aliás, é curioso constatar como o nosso “inimigo” mudou. Mas, como mandam as tais boas regras da arregimentação interna – os dirigentes do futebol utilizam o truque todos os dias — tem sempre que haver um inimigo muito bem definido.

Há 10 anos, em plena crise das dívidas e do resgate que nos livrou da bancarrota, era “a Merkel”. A chanceler alemã entretanto passou para a ser dos bons – a simplificação à “western” dá sempre jeito – e hoje, faltando em Haia um líder com o protagonismo dela, são “os holandeses”. Que, note-se, tudo fazem e dizem para merecer e alimentar a fama e passear a sua arrogância.

Os protagonistas vão mudando mas a coreografia é sempre a mesma, como se viu. E neste velho enredo há bons e válidos argumentos de ambos os lados. Por um lado, os fundos europeus existem para financiar as políticas europeias e as prioridades do mercado único, definidas de acordo com as regras em vigor na União. São essas regras – decididas muitas vezes por consenso – que ditam quem recebe o quê e para quê e quem paga o quê.

Também é verdade que, como em tudo, uns países e regiões conseguem tirar mais partido do contexto do que outros.

O argumento que agora está na moda, e que foi usado inclusivamente por António Costa num gráfico que partilhou no Twiter, é que há países que ganham mais com o mercado único do que outros. E que esses devem pagar, ou pagar mais, em função dessa vantagem.

Sem surpresa, os países que tiram essa vantagem são aqueles que têm economias mais competitivas, mais produtivas e com produtos e serviços com melhor relação preço-qualidade que as pessoas um pouco por todo o mundo preferem comprar.

Isto é assim desde que há comércio externo e é tanto mais assim quando menores forem as regras ou barreiras administrativas que lhes são colocadas. E o mercado único europeu foi feito para isso mesmo, reduzir os obstáculos ao livre comércio e livre circulação entre as economias que o integram.

No meio destas discussões e debates muitas vezes entrincheirados, contaminados de preconceitos e numa lógica de claque “nós contra eles”, o que é lamentável é que internamente não haja vontade nem tempo para fazer e responder a algumas perguntas básicas.

A primeira pode ser mesmo: tirámos o devido partido dos fundos comunitários que já recebemos desde a adesão?

Fala-se agora do montante inédito que vai chegar nos próximos sete anos. Mas não será muito diferente do que aconteceu nos últimos 34 anos.

Nos próximos sete anos, Portugal vai receber a fundo perdido 45,1 mil milhões de euros (29,8 mil milhões referentes ao Quadro Financeiro Plurianual, vulgo o pacote de fundos europeus correntes, e mais 15,3 mil milhões do Plano de Recuperação Europeu por causa da epidemia).

São cerca de 21,2% do PIB (uso o montante do produto referente a 2019 comunicado pelo INE a Bruxelas em Março). É o equivalente a 3% do PIB todos os anos.

Acontece que desde a adesão Portugal recebeu o equivalente a uma média de 2,5% do PIB todos os anos, de acordo com as contas do Banco de Portugal.

A cornucópia que agora nos enche de esperança, o resultado “irrepetível”, a oportunidade que “não volta a haver nos próximos anos”, como disse o Presidente da República, afinal já anda por aí há umas décadas com uma dimensão aproximada.

Claro que muita coisa se fez e melhorou: estradas, equipamentos sociais, escolas e universidades, hospitais, apoios à agricultura (umas vezes para arrancar e outras para plantar) e às pescas (umas vezes para diminuir frota e outras para a aumentar), modernização das indústrias, investigação e desenvolvimento, formação profissional e por aí fora.

O dinheiro foi aplicado. A questão é se o foi de forma a dar ao país o retorno económico e social que devia. Os resultados a que chegámos insinuam que não (mas já lá vamos) mas também ninguém parece interessado em tirar isso a limpo.

E isso leva-nos a outra questão: se não temos o bom hábito de fazer avaliação de políticas e dos seus resultados como sabemos que não estamos a repetir erros e a derreter dinheiro com pouco retorno?

Assim de repente e de memória, das análises estratégicas de maior fôlego, recordo-me do trabalho encomendado a Michael Porter nos anos 90, dos contributos de Ernâni Lopes e da SaeR sobre a economia do mar pela mesma década ou dos vários trabalhos liderados por José Manuel Félix Ribeiro pedidos e entregues a vários governos.

Não é por falta de ideias, propostas e pensamento que as coisas não funcionam. É porque o planeamento é fraco ou inexistente, a execução é errática e a avaliação intercalar e posterior é desprezada.

Um exemplo caricato: neste momento em que é apresentado o contributo de António Costa Silva para a próxima década estamos a meio da década de que falava a “Agenda para a Década” apresentada pelo actual primeiro-ministro em 2015. Qual é que vale a partir de agora? E que avaliação intermédia se fez da “agenda” inicial para se perceber o que foi cumprido ou não, o que deve ser continuado e o que deve ser revisto, o que merece ser levado até ao fim e o que deve ser abandonado? Alguém viu por aí alguma avaliação que permita tirar conclusões? Ou é tudo a olhómetro, como habitualmente?

E isto leva-nos a uma nova questão: se nos últimos 35 anos também houve dinheiro e os resultados não foram famosos e se vamos continuar a fazer tudo na mesma o que nos leva a pensar que desta vez será diferente?

Vamos antes ver o que nos aconteceu num indicador relevante: a produção por cada pessoa. Esta evolução do PIB per capital entre 1992 (não há dados comparáveis para os países do ex-Bloco de Leste anteriores a esse ano) e 2019 é elucidativa.

Vamos esquecer o caso da Irlanda, onde o Produto Nacional Bruto é mais relevante do que o tradicional PIB.

Quatro países que em 1992 não sabiam o que era economia de mercado nem sequer democracia, têm hoje uma produção por habitante superior à portuguesa. E todos eles apresentam uma evolução muito mais rápida do que Portugal que, nesta matéria, se pode dizer que marcou passo nestas quase três décadas. Passar de uma média de 69,3% da referência UE15 para 72,5% é ter ficado parado.

Pior do que nós, nesta selecção de países (desenvolvidos com dimensão próxima da nossa e países da coesão), só mesmo a Grécia. Mas nós não somos a Grécia, lembram-se?

Portanto, desde a adesão já recebemos o equivalente a 2,5% do PIB todos os anos o que me parece que não nos dá grande moral para falar de falta de solidariedade. Houve dinheiro mas não houve resultados assinaláveis na convergência do rendimento médio.

O que nos devia fazer reflectir sobre o nosso próprio trabalho de casa, sobre o que temos feito de certo e de errado com o dinheiro dos nossos próprios impostos e com o que nos chega de outros países.

Claro que é sempre mais fácil reclamar e apontar adversários e obstáculos externos para disfarçar as nossas insuficiências. Mas isso não nos levará a um destino digno.

Sim, a Holanda atrai empresas com impostos mais baixos. E a Irlanda também. Podemos fazer o mesmo, se quisermos, porque as regras são iguais para todos. Mas preferimos negociar benefícios fiscais caso a caso, para empresas estrangeiras ou portuguesas. É uma opção.

No nosso caso, preferimos atrair não residentes, sobretudo reformados, com benefícios que também merecem o protesto de outros países da União. Mais uma opção.

Só mais um dado que nos devia dar que pensar: no gráfico apresentado pelo primeiro-ministro sobre os países que mais beneficiam com o mercado único há seis países dos tais que em 1992 não sabiam o que era economia de mercado nem democracia — e que, na maioria, só aderiram à União em 2004 — que já tiram mais benefícios da adesão à União do que Portugal.

Porque é que não tiramos também mais partido do mercado único e, num momento de loucura, ambicionamos até passar para o clube dos contribuinte líquidos, o que significaria que éramos mais ricos?

Provavelmente porque não temos tomado as decisões certas. Mas é sempre mais fácil dizer que o campo está inclinado a nosso desfavor.

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