Melhorias de rating positivas, mas ocultam problemas
As melhorias de notação são positivas face à melhoria em vários indicadores, mas escondem problemas estruturais e poderão não ser sustentáveis, sobretudo caso se materializem alguns riscos.
Nos últimos meses, duas das principais agências de notação financeira voltaram a melhorar a avaliação do risco da dívida soberana portuguesa. Isso torna o país menos vulnerável à volatilidade dos mercados internacionais de dívida pública e pode traduzir-se em menores custos de financiamento para o Estado, para a banca, e até para as famílias e as empresas.
Ainda assim, honestamente, não vejo razões para grandes celebrações. As agências olham sobretudo para o curto prazo — e, em parte, para o médio prazo — porque é esse o horizonte que mais interessa aos investidores nos mercados de dívida. Valorizam assim fatores conjunturais e deixam na sombra os problemas estruturais de longo prazo, essenciais para a sustentabilidade dos indicadores analisados. A celebração do governo português parece ignorar esta realidade e exagerar o seu papel no processo. Acresce que a história está cheia de situações em que os acontecimentos rapidamente ultrapassam os ratings, que são um ‘selo’ com ‘validade’ de seis meses, atendendo à periodicidade habitual das revisões.
Passemos, então, à análise do processo por detrás dessas avaliações.
O que efetivamente justificou as melhorias de notação recentes
- 29 de agosto (S&P): elevação da notação de “A” para “A+”, com base na descida esperada do rácio da dívida pública no PIB nos anos 2025-2028, ainda que a um ritmo menor. A agência valorizou também o crescimento económico moderado (embora em abrandamento no período 2027-2028) e alguma resiliência esperada face às tarifas de Trump, destacando o papel do turismo no amortecimento desse choque. Contudo, reduziu as perspetivas de “positivas” para “estáveis”.
- 15 de setembro (Fitch): subida do rating de “A-“ para “A”, realçando também a redução do rácio da dívida pública, mas acrescentando, nesse domínio, a posição orçamental equilibrada e a existência de fatores de resistência à volatilidade dos mercados (reservas de caixa sólidas, perfil de taxa fixa). Quanto à economia, valorizou o crescimento atual acima da área euro e a melhoria das contas externas. Também aqui, as perspetivas baixaram de “positivas” para “estáveis”.Em suma, a S&P valorizou mais a resiliência económica conjuntural, enquanto a Fitch destacou sobretudo a disciplina orçamental.
O porquê deste diagnóstico ser enganador
O crescimento acima da média da economia portuguesa e a resiliência referida assentam em fatores temporários:
- PRR (Programa de Recuperação e Resiliência): termina em 2026.
- Turismo: já dá sinais de abrandamento e continua a ser um setor volátil e de baixa produtividade. A forte dependência da economia deste setor revela uma reduzida sofisticação e complexidade que penalizam o perfil de especialização, a produtividade e o nível de vida de Portugal, conduzindo ainda à emigração de jovens portugueses qualificados em busca de maiores salários e oportunidades lá fora, o que penaliza a natalidade e exigirá mais imigração no futuro.
Acresce que a dimensão relativa do PRR em Portugal é das maiores da UE. Isso explica-se pela contração relativamente mais acentuada do PIB durante a pandemia, reflexo do peso muito acima da média da União Europeia (UE) do setor do turismo, que foi o mais afetado. O reverso da medalha é que o fim do PRR em 2026 terá, previsivelmente, um impacto relativamente maior em Portugal.
Por outro lado, a guerra na Ucrânia penalizou sobretudo os países vizinhos da UE e acabou por beneficiar Portugal na atração de turistas por ser visto como um destino bonito e seguro, longe do conflito. O desejável fim da guerra pode causar algum desvio de turistas de Portugal, terminado esse efeito.
Mesmo com estes ventos favoráveis — que deixarão de ‘soprar’ num futuro próximo, por serem temporários —, crescemos apenas ligeiramente acima da média da UE. Isso é insuficiente para melhorar a nossa posição relativa no nível de vida, pois há países mais dinâmicos quer abaixo de Portugal (podendo ultrapassar-nos) quer acima (impedindo que os superemos) nesse indicador.
Um estudo da Faculdade de Economia do Porto (FEP) mostra que Portugal teria de crescer, em média, 1,4 pontos percentuais acima da UE a partir de 2022 para entrar na metade de países com maior nível de vida da UE em 2033 — algo que exige reformas estruturais profundas. O estudo salienta ainda que usar como referencial mínimo de crescimento a área euro, mais estagnada que a UE, é ainda menos ambicioso.
A própria Comissão Europeia confirma este diagnóstico: no Ageing Report 2024, projeta uma queda abrupta do crescimento potencial português a partir de 2027, implicando um ritmo de apenas 1% ao ano, em média, na década até 2033, valor igual à tendência desde 1999 e abaixo da média da UE (1,5%). Ou seja, o que parece dinamismo da economia portuguesa (absoluto e relativo) nestes últimos anos é, em larga medida, reflexo de estímulos temporários e efeitos de recuperação após a crise pandémica.
O papel limitado do governo na melhoria dos ratings
O atual crescimento económico resulta sobretudo da execução do PRR e do turismo. O papel do governo tem sido, sobretudo, executar o PRR (implicando reprogramações) e ainda está por demonstrar que será possível concluir tudo em 2026 e evitar uma perda de fundos. Não existem, por ora, reformas estruturais decisivas em curso — haverá algum dia? — capazes de elevar o potencial de crescimento; e esse facto não pesa na avaliação das agências de notação financeira, mais focada no curto prazo, como referido.
Na redução da dívida, o governo prosseguiu uma trajetória já iniciada antes, mas com um ritmo menor devido ao aumento da despesa corrente, nomeadamente com a revisão de carreiras da função pública para pacificar setores-chave. É preciso salientar que nem tudo correu bem nessa trajetória recente:
Boa parte da consolidação orçamental nos últimos anos deveu-se à subexecução do investimento público (pelos governos PS, sobretudo, mas também pelos mais recentes da AD), parcialmente compensada pelos fundos da UE, mas com impactos negativos na qualidade dos serviços públicos.
- A inflação ajudou a reduzir rapidamente o rácio da dívida, o que permitiu acelerar a consolidação, mas à custa da perda de poder de compra (afetando sobretudo as famílias mais vulneráveis), que poderia ter sido atenuada na altura em troca de um excedente orçamental um pouco menor.
- Portugal tinha, até há poucos anos, o segundo rácio de dívida mais alto da UE, pelo que a margem de descida deste indicador era elevada em termos relativos.
Assim, em ambas as frentes, o mérito do Governo é, no melhor dos casos, limitado. Por isso, a celebração oficial soa desproporcionada quando o comunicado de 12 de setembro do governo, em reação à decisão da agência Fitch, afirma que:
“Esta decisão é mais uma conquista para Portugal e o reconhecimento do trabalho que está a ser feito pelo Governo, pelas famílias e empresas, no sentido de promover o crescimento da economia, garantir o equilíbrio das contas públicas e a redução sustentada da dívida pública“.
A Fitch assinala que Portugal é dos países que mais conseguiu reduzir a dívida pública, entre aqueles que são analisados, mantendo uma política orçamental prudente e um crescimento robusto.
A agência destaca que o país tem registado melhor desempenho orçamental do que os seus pares, alinhando com o Governo num excedente orçamental para este ano (…). A redução do endividamento externo e as perspetivas para a economia portuguesa, com um crescimento superior à média da Zona Euro em 2026 e 2027, são também salientados de forma positiva”.
Faltou referir que a melhoria das contas externas referida pela Fitch se deve também, em boa medida, ao dinamismo do turismo.
Será preciso estar atento não apenas ao impacto nas exportações e contas externas da desaceleração em curso nesse setor, mas também ao efeito das tarifas de Trump sobre a indústria nacional — as falências recentes no setor têxtil poderão já parcialmente refletir esse choque, ainda que careçam de confirmação. Em todo o caso, estão certamente ligadas à perda de competitividade da indústria portuguesa, o que está longe de merecer celebração: é, isso sim, motivo de grande preocupação.
Posição de Portugal nos juros bem melhor do que nos ratings e no rácio da dívida pública
Ratings. As melhorias recentes afastam Portugal do grupo de países periféricos com maior risco e que estiveram em foco no contexto da crise de dívidas soberanas que levou ao nosso doloroso (mas bem-sucedido) programa de ajustamento 2011-2014. Mais de uma década depois, encontramo-nos hoje entre os países da UE com ratings intermédios, incluindo as notações de “A+” da S&P e “A” da Fitch. Já não estamos no fundo da tabela, mas continuamos longe do topo, onde se situam os países centrais do euro com ratings AA e AAA, e as perspetivas são de estabilização no patamar intermédio atual, como referido.
Dívida pública. Em 2024, Portugal registou um rácio de 94,9% do PIB, o 6º mais elevado da UE, ainda bem acima da média de 81,0% na UE e 87,4% na área euro (Eurostat). Ficámos atrás apenas de Grécia (153,6%), Itália (135,3%), França (113,0%), Bélgica (107,7%) e Espanha (101,8%).
Custos de financiamento. Na taxa de juro implícita a 10 anos, Portugal registou em agosto um valor médio de 3,12%, o que nos coloca na 16ª posição da UE (média de 3,49%) e ligeiramente abaixo da área euro (média de 3,13%).
Ou seja, o nosso posicionamento nos custos de financiamento é bastante melhor do que sucede no nível de rating e, sobretudo, no rácio da dívida pública. Não é de excluir que as agências tenham procurado reduzir este desfasamento, embora se espere rigor e independência na análise.
A rápida descida do rácio da dívida desde a pandemia — mas em boa medida graças à inflação e à contenção do investimento público — impressionou os mercados e, por arrasto, as agências. Mas isso não muda o essencial: Portugal continua mais endividado do que a grande maioria dos países da UE.
Riscos que não desapareceram
Se a melhoria dos ratings nos aproximou da linha da frente, há vários riscos que podem inverter rapidamente o percurso:
- Baixo crescimento potencial: sem reformas, Portugal crescerá apenas 1% ao ano na década até 2033 (Ageing Report 2024) e isso começará a ser visível nos próximos anos.
- Dependência do turismo: choques externos ou novas crises sanitárias podem cortar de imediato a principal fonte de receitas e de saldo externo.
- Crise do eixo franco-alemão e guerra reduzem a procura e os fundos europeus: as crises em França e na Alemanha, agravadas pela pressão dos gastos com a guerra na Ucrânia, além de reduzirem a procura por exportações em dois dos principais mercados de Portugal, podem reduzir ainda mais os fundos europeus para Portugal na negociação em curso do Orçamento da UE (Quadro Financeiro Plurianual 2028-2034) — tal poderá ter um forte impacto futuro dada a elevada dependência do nosso país desses apoios, que deve ser reduzida como venho a alertar.
- Fragmentação política interna pode pressionar o Orçamento de Estado: o atual quadro parlamentar tripartido pode aumentar a pressão para mais aumentos de despesa permanente e baixas de imposto não sustentáveis, ou mesmo dificultar a reforma do Estado em curso, que para já se está a focar na desburocratização, o que é positivo, mas faltam outros vetores importantes que tenho apontado (como a reforma da administração territorial do Estado e repensar funções).
- Mercado imobiliário e desigualdade social: as pressões na habitação comprimem o rendimento disponível, limitando o consumo e agravando clivagens sociais.
- Risco financeiro internacional: uma subida das taxas de juro globais (face ao protecionismo e aos problemas orçamentais na França e Reino Unido) pode descarrilar a trajetória da dívida nacional, ainda elevada face ao PIB e sensível a choques de confiança, apesar dos progressos recentes.
Conclusão e propostas
Os upgrades de rating são uma boa notícia: Portugal ganhou credibilidade e reduziu vulnerabilidades. Mas a leitura correta deve ser prudente, pois continuamos acima da média da UE no rácio de dívida pública; estamos no meio da tabela dos ratings; e o crescimento depende de fatores conjunturais e apoios da UE.
O verdadeiro risco é transformar progresso conjuntural em propaganda política. “Ventos de feição” — juros baixos face à posição no rácio da dívida, turismo em alta ou fundos europeus em pico — melhoram indicadores por algum tempo, mas não alteram a capacidade produtiva da economia. Confundir essa maré com mudança estrutural é um erro grave: conduz a decisões de gasto fáceis, adia reformas difíceis e cria expectativas que, quando o ciclo virar, se desmoronam e corroem a confiança pública.
Mudança estrutural vê-se noutras métricas: produtividade total dos fatores a crescer sustentadamente; investimento privado orientado para o setor dos bens transacionáveis internacionalmente (e serviços conexos) e tecnologia; complexidade e sofisticação das exportações a subir; I&D e patentes em trajetória ascendente e geradoras de valor económico (como mais exportações de bens de alta tecnologia e serviços intensivos em conhecimento); capital humano a melhorar e a ser mais usado na economia nacional — o formado cá e o que vem de fora (competências e retenção/atração de talento); concorrência efetiva, reduzindo estruturalmente os custos das empresas e cidadãos (e.g., energia, telecomunicações, banca, logística, retalho); e melhoria dos serviços públicos às empresas (e.g., licenciamento, justiça económica) e cidadãos (e.g., Saúde, Educação, Justiça).
De forma conexa, também se mede pela qualidade do emprego (e.g., salários reais medianos e médios mais altos; mais emprego qualificado; maior duração média dos contratos, reduzindo a precaridade, que afeta os jovens em particular), pela convergência regional e pela resiliência a choques externos sem recurso a estímulos ad-hoc.
Três testes simples ajudam a separar o trigo do joio:
- Os ganhos observados mantêm-se por 3–5 anos, mesmo quando o ciclo internacional piora?
- Os benefícios espalham-se para além de um ou dois setores-estrela (e.g., turismo), abrangendo indústria e serviços transacionáveis de elevado valor acrescentado e produtividade, bem como um conjunto muito significativo de PME?
O saldo orçamental e a balança corrente não pioram significativamente após o fim de ‘ventos favoráveis’? - A comunicação pública deve refletir esta distinção. Celebrar sem critério converte-se em ruído; fixar um “scorecard estrutural” — e.g., produtividade, investimento, exportações complexas, I&D, custos de contexto e coesão territorial — disciplina a política, ancora expectativas e protege o país quando a maré baixar. Sem isto, a propaganda de hoje é a desilusão de amanhã.
O desafio atual é claro: deve aproveitar-se a folga para adotar reformas que aumentem a produtividade e o potencial de crescimento económico do país com base, cada vez mais, em recursos endógenos, reduzindo a dependência de fundos da UE e aumentando a resiliência da economia a choques externos.
Em suma, as melhorias de notação são positivas e merecidas face à melhoria em vários indicadores, mas escondem problemas estruturais e poderão não ser sustentáveis, sobretudo caso se materializem alguns dos riscos referidos. Só reformas estruturais podem garantir que Portugal não volta ao círculo vicioso da estagnação económica, deterioração orçamental e vulnerabilidade financeira.
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