Mitos e falácias sobre a progressividade fiscal (II)

Em nome da justiça social, da mobilidade social e do respeito pelo trabalho, fica uma proposta: Introduzir uma taxa única de 15% para todos os portugueses que ganham menos do que um deputado.

Na primeira parte deste artigo sobre os mitos e falácias na progressividade fiscal, tentou-se desmistificar três ideias sobre o IRS:

  1. A progressividade do IRS como é desenhada actualmente não se destina a fazer com que os ricos paguem mais porque não se destina a taxar a riqueza nem os rendimentos que decorrem da riqueza.
  2. Também não se destina a salários milionários que apenas pagam uma taxa ligeiramente superior à taxa marginal de quem ganha pouco mais de 2 mil euros líquidos.
  3. O IRS não é pago apenas pelo trabalhador, mas por todos aqueles que beneficiam da relação de trabalho. Isto é especialmente verdade no caso em que o trabalhador tem mais poder negocial (porque tem alternativas, poder dentro da empresa, possibilidade de emigrar), o que geralmente acontece precisamente nos salários mais altos.

Toda esta discussão surgiu em resposta à ideia de uma taxa única (ou simplificação dos actuais escalões) que será o foco deste artigo, no qual tentaremos desmistificar mais algumas questões.

1. O custo da introdução de uma taxa única não é incomportável

A principal questão que se coloca a propósito da taxa única é quanto é que custará e onde se poderá cortar para compensar esse custo. Os consultores da Deloitte fizeram uma análise em que concluíram que a redução da receita fiscal seria entre 3 e 3,5 mil milhões de euros.

Os cálculos foram muito simples: Pegaram nos rendimentos actuais e em vez de aplicar as taxas de hoje, aplicaram a taxa única e concluíram que essa seria a perda de receita fiscal. Isto seria verdade se assumíssemos uma premissa: A de que os portugueses, que iriam efectivamente ficar com mais 3 a 3,5 mil milhões de euros no bolso, iriam levantar essas quantias ao multibanco e colocar as notas diretamente na lareira.

Como muitos portugueses não têm lareira e quase todos que têm preferem outro tipo de combustível, parece-me seguro assumir que a premissa está errada. Na realidade, com as nossas baixas taxas de poupança, o mais provável era que os portugueses fossem gastar boa parte daquele dinheiro, gerando um conjunto de outras receitas fiscais do IVA ao IRC sobre o lucro das empresas, até ao IRS dos trabalhadores contratados pelas empresas.

Mesmo que uma parte importante fosse poupada (a taxa de poupança entre os beneficiários desta descida é maior do que a taxa de poupança média), seria poupança que faz muita falta a um país com grande escassez de capital, fortemente endividado e a caminho do inverno demográfico. A poupança depositada em bancos portugueses poderia ser uma pequena bolha de oxigénio que permitiria a esses bancos ter mais disponibilidade para emprestar às empresas e particulares, aumentando o investimento, o stock de capital e, portanto, os salários.

Apenas com os efeitos de curto prazo, e dado o peso das receitas do Estado na economia, seria fácil assumir que 1/3 das receitas fiscais perdidas diretamente voltariam imediatamente aos cofres do estado sob a forma de outros impostos. Isto baixaria o efeito imediato de 3-3,5 mil milhões para cerca de 2 mil milhões (impacto que, aliás, está incluído na proposta original da Iniciativa Liberal desde Setembro de 2019, mas felizmente as pessoas parecem ter coisas mais interessantes para fazer na vida do que ler sobre aquilo que comentam).

Mas estes seriam apenas os efeitos imediatos e mais fáceis de calcular. Haveria efeitos de segunda ordem que poderiam ser também bastante importantes, especialmente a médio prazo. Uma taxa de IRS única reduziria o custo de aumentos salariais nos escalões intermédios, permitindo que houvesse mais aumentos salariais e melhor retenção de talento no país.

Ao mesmo tempo eliminaria um conjunto de ineficiências que ocorrem em algumas empresas em que os empregados são compensados com benefícios não salariais que, por não serem tributados, ficam mais baratos às empresas, mesmo que para o trabalhador fosse melhor receber diretamente o valor em causa (carros de empresa, ajudas de custo, viagens, …).

Haveria ainda menos incentivos a esquemas de fuga ao fisco, especialmente nos níveis de rendimento mais elevados com maior capacidade de aceder a mecanismos de optimização fiscal, o que alargaria a base contributiva. Um bom exemplo disso foi o que aconteceu entre 2012 e 2014 depois do enorme aumento de impostos de Vítor Gaspar. Entre 2012 e 2014, apesar de o último escalão de IRS ter uma taxa marginal de 54%, os rendimentos superiores a 250 mil euros passaram a pagar menos cerca de 20% de IRS.

Ou seja, numa visão conservadora o efeito directo de curto prazo rondaria os 2 mil milhões de euros (cerca de 1% do PIB) de perda de receita. Os efeitos de segunda ordem, embora pudessem fazer-se sentir logo no imediato, seriam mais claros no longo prazo e poderiam reduzir bastante este valor, levá-lo a zero ou até resultar num efeito positivo nas receitas fiscais.

O leitor mais desconfiado poderá dizer, com razão, que estes cálculos dependem muito de pressupostos difíceis de antecipar. Podia estar aqui a discutir os reais efeitos no total da receita fiscal, ter um discurso chato de multiplicadores e equilíbrios de curto como de longo prazo, mas o resultado final do cálculo dependeria sempre de pressupostos discutíveis. Felizmente já houve outros países a fazer uma reforma fiscal semelhante. O que aconteceu lá pode-nos dar uma boa indicação do que aconteceria por cá. Trazemos hoje quatro exemplos de países que introduziram esta política:

  • República Checa -> passou de um regime progressivo para taxa única de 15% em 2008, tendo depois introduzido uma segunda taxa de 22% em 2013;
  • Hungria -> introduziu uma taxa única de 16% em 2011, tendo reduzido essa taxa para 15% em 2016;
  • Lituânia -> transitou de um regime progressivo para taxa única de 15% em 2009, tendo introduzido uma sobretaxa sobre determinados tipos de rendimento de 5% extra em 2019;
  • Eslováquia -> introduziu uma taxa única de 19% em 2004, tendo depois introduzido uma segunda taxa de 25% em 2013;
  • Poderíamos ainda trazer a Estónia, que passou de um regime progressivo para taxa única de 26% em 1994, tendo sido reduzida até 20% onde se mantém hoje, mas que por falta de dados anteriores a 1994 não foi possível comparar o antes e depois.

Qual foi então a evolução da receita de IRS nestes quatro países após a introdução da taxa única? O primeiro gráfico analisa a variação relativa da receita em relação ao ano anterior à adopção da flat tax e compara-a com a evolução no mesmo período da receita portuguesa:

Tirando a Eslováquia, o primeiro ano de introdução da taxa única resultou numa queda de receitas de IRS, tal como se esperaria.

No caso da Eslováquia, a reforma não foi só no IRS, foi também no IVA e no IRC o que poderá ter causado externalidades positivas no IRS que compensaram logo ali os efeitos negativos na receita da diminuição da taxa.

No caso da Lituânia, a introdução da taxa única coincidiu com a crise financeira internacional que afectou de forma agressiva a Lituânia (o PIB caiu cerca de 14% em 2009) o que terá contribuído para a queda da receita ser maior. Certo é que nos quatro países, após o impacto inicial, as receitas recomeçaram a subir a bom ritmo.

No caso da República Checa e da Eslováquia cresceram mesmo mais do que as receitas de IRS. Note-se a diferença: num caso estabeleceu-se uma taxa única e no outro aumentaram-se todas as taxas no famoso “enorme aumento de impostos” em 2013, mas foi naqueles dois países que baixaram para uma taxa única que a receita de IRS mais cresceu. Em termos de receitas de IRS, a comparação é mista: temos casos em que a receita depois recuperou e superou o crescimento da portuguesa e casos em que mesmo recuperando cresceu menos do que a portuguesa no mesmo período de tempo.

No entanto, aquilo que importa realmente perceber é a evolução das receitas fiscais totais porque a introdução de uma taxa única pode ter efeitos positivos nas receitas fiscais de outros impostos como mencionado acima. Em baixo, podemos ver o que aconteceu.

Todos os países tiveram um crescimento das receitas fiscais no longo prazo superiores a Portugal, mesmo a Lituânia que fez o corte mais agressivo de todos. Mas mais relevante do que isto é que no curto prazo, exceptuando a Lituânia, nenhum país perdeu receitas fiscais no ano em que introduziu a taxa única.

Ou seja, o crescimento económico (alimentado também pela reforma fiscal) mais do que superou o efeito da queda das taxas. Ou seja, a perda de receita fiscal no curto prazo não é uma inevitabilidade e se estes exemplos demonstram alguma coisa é que a médio longo prazo a receita fiscal até aumentaria por via do crescimento económico.

2. Uma reforma fiscal amiga do crescimento não iria depauperar os serviços públicos. Pelo contrário, só uma economia forte é capaz de garantir bons serviços públicos

Uma outra crítica habitual a uma reforma fiscal em Portugal é isso colocar em causa a educação e saúde públicas. O que os críticos esquecem aqui é que há duas partes no cálculo da receita fiscal: a carga fiscal e o tamanho da economia sobre o qual recai essa carga fiscal.

Com uma economia pequena e estagnada, mesmo com uma carga fiscal elevada, será complicado fornecer bons serviços públicos. Mas nada melhor para perceber isso do que olhar para o que aconteceu na despesa pública em educação e saúde (per capita) nos países onde foi introduzida uma taxa única. Podemos ver essa evolução nos gráficos abaixo.

O que podemos ver nos gráficos é que, apesar de uma estagnação na despesa pública nos dois primeiros anos após a introdução da taxa única, as despesas públicas em saúde cresceram de forma constante depois disso e, em todos os casos, a despesa pública em saúde cresceu mais nestes países do que em Portugal (que subiu a carga fiscal sobre o trabalho).

Repetindo: Todos os países que introduziram a taxa única aumentaram mais a despesa em saúde pública do que Portugal. Na educação, excepto no caso da Lituânia, o cenário foi semelhante: Um regime fiscal mais competitivo cria economias mais fortes, e com uma economia mais forte consegue-se investir mais em serviços públicos de qualidade.

3. Sim, a desigualdade pode ser um problema no curto prazo, mas menos do que se poderia pensar

Outra das questões que se coloca, que é acima de tudo uma questão política, é se a introdução da taxa iria aumentar a desigualdade. Devido aos mecanismos explicados na primeira parte do artigo, seria improvável que a taxa única tivesse efeitos relevantes no longo prazo.

No entanto, dado que os salários brutos são fixos, a introdução de uma taxa única iria efetivamente gerar desigualdade de distribuição de rendimentos no curto prazo. Mas seria esse aumento relevante e consistente no tempo? Mais uma vez, olhar para o que aconteceu nos países que lançaram uma taxa única pode ser importante. Em baixo podemos ver o indicador de desigualdade de rendimentos (índice de Gini) dos quatro países (cada linha começa no ano anterior à introdução da taxa única).

Com excepção da República Checa, todos os países tiveram um aumento imediato na desigualdade de rendimentos após a introdução da taxa única, como seria de esperar. Mas esse aumento não foi grande e diluiu-se rapidamente. No caso da República Checa e Eslováquia, a desigualdade é hoje mais baixa do que quando a taxa foi introduzida (ambos os países introduziram depois uma segunda taxa, um pouco maior, para rendimentos mais elevados).

Uma última nota: todos estes países, incluindo a Estónia, cresceram muito mais que Portugal desde a introdução das taxas únicas. Todos eles, quando introduziram a taxa única, eram mais pobres, com piores serviços públicos e salários mais baixos do que Portugal. Todos já nos ultrapassaram em termos de Rendimento per capita (PPP) e continuam a crescer mais e a melhorar a qualidade dos serviços públicos.

Em resumo, o lançamento de taxas únicas de IRS não retirou e não depauperou os sistemas de saúde e educação. Pelo contrário, contribuiu para o crescimento económico que permite que hoje esses países possam oferecer salários mais altos e serviços públicos de melhor qualidade.

Em todos estes países, depois da introdução da taxa única os salários médios cresceram mais do que em Portugal, algo que não deveria surpreender. Afinal, o Estado Português lança taxas sobre o açúcar para diminuir o seu consumo, impostos sobre o combustível para se poluir menos e impostos sobre o tabaco para desincentivar o fumo, pelo que não deveria surpreender que o efeito de ter impostos sobre aumentos salariais seja o de manter salários baixos.

Sempre que se fala da taxa única ou de uma reforma fiscal semelhante, surge sempre a mesma pergunta: Quanto custa e onde teremos que cortar para o pagar. Olhando para os exemplos de aplicação de taxas únicas na União Europeia, se calhar a pergunta deveria ser outra: Quanto custa ao país manter este sistema fiscal inimigo do trabalho e onde é que temos cortado para o manter? Onde é que aceitaremos continuar a cortar até decidirmos que é tempo de fazer uma reforma fiscal a sério que promova o crescimento? Quão melhor podia estar a nossa economia, quão mais altos poderiam ser os salários e quantos mais recursos poderíamos dedicar à saúde e educação com um sistema fiscal mais amigo do crescimento económico?

A questão da desigualdade a curto prazo falada acima não pode, no entanto, ser ignorada. Um dos motivos pelo qual esta reforma seria politicamente complicada é que não faltaria, como não tem faltado, menções aos “salários milionários”, apesar de o peso dos salários milionários na liquidação de IRS ser mínimo (a não ser, como também vimos por aí, que alguém classifique salários de 3 mil euros líquidos como milionários).

Para que isso não coloque em causa o consenso necessário para uma reforma fiscal dos rendimentos do trabalho, propomos uma alternativa que, certamente, todos os partidos que respeitam os rendimentos do trabalho, mas não querem favorecer os “milionários”, aceitarão. Propomos uma taxa única de IRS para todos os trabalhadores que ganham menos do que um deputado (vencimento ilíquido de 3.624,41 euros/mês), mantendo tudo igual daí para cima. Porquê estabelecer este limite? Porque nenhum deputado de nenhum partido, da esquerda à direita, dirá que tem um salário milionário pelo que é um bom ponto de referência para obter consenso político.

A esmagadora maioria dos trabalhadores portugueses ganha menos do que um deputado e se uma empresa quiser aumentar o seu salário para ficar mais próximo do salário de um deputado tem que entregar entre metade e dois terços desse aumento ao Estado.

Em nome da justiça social, em nome da mobilidade social, em nome do respeito pelo trabalho, fica aqui o desafio aos deputados de todos os partidos: Introduzir uma taxa única de 15% para todos os portugueses que ganham menos do que vocês. As restantes taxas, as tais que recaem sobre os “salários milionários” podem ficar iguais. Vamos a isto?

  • Pedro Schuller
  • Engenheiro Industrial

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