Não há direito

  • Pedro Barosa
  • 18 Fevereiro 2020

Leia aqui o artigo de opinião "Não há direito" do sócio contratado da Abreu Advogados, Pedro Barosa.

As linhas que se seguem não se prendem com nenhum processo que esteja na ordem do dia, nem a qualquer questão polémica dele decorrente, daí porventura não serem tão excitantes. Ao invés de dar aqui “murros na mesa” sobre uma qualquer injustiça que vemos acontecer neste ou naquele processo, opto por abordar pequenos aspetos mais transversais que, para quem anda pelos tribunais, se tornam um verdadeiro problema.

Embora cada vez menos, a advocacia tende ainda a ser vista pela sociedade como uma profissão nobre, em especial a advocacia de Tribunal, a qual, não integrando atualmente uma vertente tão perfumada do direito – não temos “closings” –, ajuda ainda a manter alguns dos seus clássicos costumes. Será porventura por isso que os advogados são acusados de terem egos tão inflamados, imputação que, em boa verdade, muitas vezes não deve ser desmentida. Encontramos, contudo, no panorama judiciário, pessoas perante quem, mesmo esses advogados, fazem questão de se curvar, com uma aparente veneração típica da Grécia antiga: os Juízes.

E compreende-se que assim seja, não apenas por serem titulares de órgãos de soberania, mas também porque é aos Juízes a quem cabe, seja em primeira instância, seja em sede de recurso, a decisão de tudo aquilo por que nos batemos em cada processo. Essa é também a explicação que justifica não haver nenhum advogado com bom senso que não entre numa sala de Tribunal sem a séria preocupação em ser imensamente cordial, respeitador e agradável com os Juízes, nada disso o impedindo, naturalmente, de fazer de seguida o seu trabalho livre e autonomamente, de desempenhar o seu melhor papel em representação do seu Cliente e de, sendo necessário, manifestar discordância perante os Juízes no decurso da audiência. E essa imensa postura reverencial perante os Juízes é também extensível a todos os sujeitos processuais, testemunhas e peritos.

O inverso naturalmente não acontece, nem aliás se compreenderia.

Existem, porém, direitos mínimos que muitos Magistrados não deveriam beliscar, em concreto, no universo do processo penal, único do qual me atrevo a falar. Refiro-me a pequenas práticas que, na minha modesta convicção, atentam diretamente contra alguns direitos dos advogados, dos seus constituintes e até de pessoas exteriores aos mandatos.

Por uma questão lógica – e cronológica – abordarei aqui apenas três aspetos que vejo ocorrer com preocupante frequência na fase de julgamento, relativos a três momentos distintos da audiência: ao momento do agendamento (inicio), da continuação (meio) e da prolação da decisão (fim).

A respeito do agendamento da audiência:

Como compreender que um Tribunal agende três ou quatro audiências de julgamento para uma mesma manhã ou para a mesma hora?

Várias são as respostas possíveis, admitindo-se que a mais atendível possa ser a de que muitas audiências são agendadas apenas para a leitura de uma sentença ou para a inquirição de uma ou duas testemunhas. Isto é, prevendo essa situação, os Juízes calendarizam, à cautela, várias diligências em distintos processos para, desse modo, irem dando vazão aos trabalhos, sem que corram o risco de ter momentos vazios ou intervalos inúteis. Numa outra vertente, agendada uma audiência para a inquirição de duas testemunhas, se elas por hipótese não comparecerem, o Tribunal tem outras audiências já agendadas para a mesma hora, podendo, assim, arrancar logo para outro processo sem sequer haver necessidade de, nesse ínterim, se levantarem da cadeira para recolher aos gabinetes.

Até se compreenderia essa justificação (comum), não fosse o facto de, na generalidade das vezes em que o mesmo Tribunal agenda várias diligências para a mesma ocasião, dezenas de pessoas terem de ficar horas fora da sala de audiências, à espera para serem chamadas, desde as testemunhas aos advogados dos vários processos. Ou seja, para que um (ou três) Juízes não tenha(m) intervalos desnecessários durante uma manhã ou tarde – podendo assim despachar os seus outros processos – a vida de dezenas de pessoas congela! As testemunhas ausentam-se dos seus empregos porque são legalmente obrigadas a comparecer em Tribunal; as vítimas, ou os arguidos, também ali por evidente obrigação, arrastam-se durante horas nos corredores do edifício do tribunal na ansiedade que chegue a vez do seu processo. E, para agravar as coisas, têm ainda a infelicidade de, algumas vezes, atento o chamado custo de oportunidade, terem de pagar aos advogados por aquele (inútil, mas necessário) tempo despendido.

Ainda a propósito do início das sessões de julgamento, também nunca entendi porque é que, quando um advogado está atrasado para um julgamento, tem geralmente a preocupação de contactar o Tribunal a avisar, justificando-se e pedindo encarecidamente que os Magistrados esperem por ele. Já o inverso, que é tão mais comum, nunca vi acontecer, a não ser uma justificação para a ata da audiência. E não se trata aqui de se achar que os advogados estão no mesmo patamar que os Juízes e que terão o idêntico direito de obter satisfações. Mas, entre outros motivos relacionados com consideração, o que causa alguma admiração é que, pelos vistos, o nosso tempo será, então, muito menos valioso que o de alguns Magistrados.

Passemos à prática seguinte, desta feita, relativa à continuação da audiência:

Em processo penal, as notificações enviadas aos advogados dos sujeitos processuais com a primeira data da audiência de julgamento têm, invariavelmente, o seguinte texto: “Fica notificado, na qualidade de Mandatário/Defensor de (…) de que foi designado o dia (…) às (…) para a realização da audiência de julgamento nos autos acima indicados. Em caso de adiamento, nos termos do disposto do art.º 312.º, n.º 2 do C. P. Penal, fica desde já designado o dia (…), do qual fica também notificado”.

Dali retiram os advogados destinatários duas informações relevantes: a de que no dia x terão julgamento no âmbito daquele processo (tomando imediatamente nota daquela data na agenda) e a de que, em caso de aquela primeira sessão vir a ser adiada, a audiência irá, então, iniciar-se no dia y.

Ora, se essas informações resultam absolutamente claras – para o destinatário leitor e à luz de qualquer modesto dicionário de língua portuguesa – por que razão alguns Juízes entendem que, terminada a primeira sessão de julgamento (que efetivamente aconteceu), a segunda sessão deverá obrigatoriamente realizar-se na data que foi anteriormente agendada para o caso de adiamento? É que, muitos Magistrados assumem que essas datas devem ser agendadas logo previamente pelos advogados como correspondendo ao dia para a realização da segunda sessão de julgamento (isto é, em rigor, para a sua continuação) não aceitando muitas vezes – após informarem os advogados na sala de audiências e no final da primeira sessão, de que a segunda irá acontecer naquela data – que o advogado não a tenha antes logo agendado, ou que, pura e simplesmente, tenha outra diligência marcada para esse dia.

“Adiamento” será o ato de passar para um momento futuro aquilo que estava previsto acontecer no presente e, seja por que motivo for, não ocorreu. E já que nos detemos neste aspeto, quais são então os motivos que, de acordo com a informação prestada ao advogado nos despachos em apreço, devem motivar esse hipotético adiamento? Apenas e só os previstos no (também citado naquelas notificações) “art.º 312.º, n.º 2 do C. P. Penal”, que estabelece que no despacho que designa dia para a audiência “é igualmente designada data para realização da audiência em caso de adiamento nos termos do n.º 1 do artigo 333.º”, ou seja, no caso de o arguido, regularmente notificado, não estar presente na hora designada para a audiência de julgamento e de o Tribunal considerar que a sua presença é indispensável desde o início da audiência.

Trata-se de um não raro hábito de alguns Magistrados que sempre tive dificuldade em perceber.

O terceiro problema que destaco prende-se já com a prolação da decisão e com o recurso.

Tratando-se de uma sentença, o prazo para interposição de recurso conta-se, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, “do respetivo depósito na secretaria”. Ora, quantas não são as vezes em que uma sentença é lida aos sujeitos processuais na sala de audiências, depositada na secretaria nesse dia – ou até no dia seguinte – e os advogados só a ela têm acesso, um, dois ou três dias depois?

É o que acontece nos nossos Tribunais, mais vezes do que o desejado, não se podendo aceitar que mesmo um só dia do prazo seja retirado aos advogados para recorrer de uma decisão que, primeiramente, terão de conhecer na íntegra. Em especial, quando lhes cabe ainda a tarefa de, para a elaboração do recurso e em função da fundamentação aduzida na sentença, confrontá-la com as gravações dos depoimentos que ainda terão de ouvir e eventualmente transcrever.

É certo que o ato de depósito da sentença caberá diretamente aos Oficiais de Justiça, sendo também consabido que muitas vezes os Juízes se apercebem, ao proceder à leitura na sala de audiências, que o texto da decisão que redigiram contém alguns lapsos de escrita que deverão ainda ter retificados. No entanto, não raras vezes acontece virem os advogados depois a constatar, pela posterior consulta no Citius, que a sentença já foi objeto de “depósito” no dia da sua leitura pelo Tribunal mas que o documento ainda não está informaticamente acessível, perdendo-se dias de prazo para a sua análise e, em função da posição assumida no processo, para a preparação do recurso.

Chamem-lhe preciosismos, mas estas coisas fazem verdadeira mossa, a nós advogados, e a todos os que têm contacto com a justiça. Aquela que vamos tentando servir.

*Pedro Barosa é sócio contratado da Abreu Advogados.

  • Pedro Barosa
  • Sócio contratado da Abreu Advogados

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