O desfio da jurisdição disciplinar

  • Isabel Menéres Campos
  • 10 Maio 2022

As regras de deontologia têm, evidentemente, de ser apreensíveis por todos aqueles que escolhem entregar a sua vida a este exercício nobre. E têm de ser efectivamente aplicadas.

Escrevia o meu Avô, João Menéres Campos, nos anos 60, num artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados, que nós os advogados “actuamos, sujeitos sempre, et pour cause, à mais dura das críticas, à mais implacável das devassas, olhados e observados pelo público que aponta com o dedo, ou simplesmente arquiva para mais tarde, os nossos deslizes, analisando, fria e cinicamente, o nosso comportamento, quer como homens, quer como cidadãos, quer como profissionais”. Temos, pois, “uma profissão que, pelo seu próprio conteúdo e finalidade, que é o de um contacto humano permanentemente polémico, nos impõe uma constante autofiscalização, a observância rigorosa de uma irrepreensível linha de conduta, e uma aberta, clara e inequívoca, colaboração na defesa dos valores morais e sociais que valha realmente a pena defender”. Estas duas proposições sintetizam a ideia da deontologia profissional do advogado.

As regras deontológicas não são simples deveres morais: nasceram da praxe, sendo a sua origem consuetudinária e não estadual. São objecto de uma recepção social, facilmente verificáveis e sindicáveis e o meio profissional recebe-as a título de costume, acompanhando a técnica da profissão. Todavia, não se esgotam no monólogo ético, porque a sua aplicação deve obedecer a um mínimo de precisão e segurança e, por essa razão, essas praxes têm de ser convertidas em leis formais.

No caso particular do exercício de profissões reguladas, como é o caso dos advogados, a deontologia profissional reúne o conjunto de regras, maioritariamente de conteúdo ético, que regulam a actividade, estabelecendo standards de conduta, não só na relação com o cliente, mas também em relação aos demais sujeitos com que o profissional se relaciona. Há uma forte componente de bem público, que se visa proteger, tendo o processo disciplinar uma função garantística num Estado de Direito, revelada pela consagração constitucional de imunidades próprias da profissão, e pela natureza, atribuições e competências da Ordem dos Advogados. Acresce que o exercício da profissão de advogado se traduz numa obrigação de meios, estando advogado e cliente numa relação assimétrica. As regras deontológicas têm em vista o reequilíbrio dessa assimetria, pois a complexidade técnica da profissão não permite que o destinatário do serviço possa aferir a violação da legis artis. Daí que essa avaliação dos advogados tenha de ser feita pelos seus pares, pois só estes estão em condições de ajuizar se a conduta menos correcta de um colega deve ou não ser sancionada disciplinarmente.

O advogado está, portanto, sujeito a um conjunto de deveres que, além do mais, requerem uma independência absoluta, isenta de pressão, onde se alicerça a fides, isto é, a confiança, essencial ao livre exercício da advocacia.

Os órgãos disciplinares da Ordem dos Advogados – Conselhos de Deontologia e Conselho Superior – têm, pois, esta subida missão de proteger estes valores. Espinhosa porque implica fiscalizar e apreciar a conduta dos seus pares e porque requer um elevado padrão ético e de enorme complexidade técnica nessa apreciação, pelo que há que ter presente o enquadramento dogmático da deontologia profissional. Tratando-se de direito sancionatório, subordina-se ao princípio da legalidade, ou seja, só a lei formal pode estabelecer sanções, pelo que as condutas sancionáveis devem ser específicas e determinadas. Por isso, ainda que o nosso Estatuto da Ordem dos Advogados preveja algumas normas de conteúdo aberto (como o dever de urbanidade ou de não advogar contra o direito), esta indeterminação requer que se concilie a regra deontológica com o princípio da legalidade.

É sob a alçada do Estatuto, que data de 2015, que os órgãos da Ordem desenvolvem a sua tarefa judicativa, não se olvidando que existem outros diplomas avulsos que contêm regras relevantes em matéria disciplinar, como, por exemplo, a lei de prevenção e combate ao branqueamento de capitais. A inexistente conciliação entre o Estatuto e os diplomas avulsos faz perder de vista a cosmovisão essencial numa matéria tão sensível, abalando, portanto, a segurança jurídica.

A deontologia não se esgota, porém, na matéria substantivamente estatutária, requerendo também a aplicação de regras procedimentais e essas, com efeito, precisam de reflexão. Uma eventual reforma deste direito adjectivo deveria materializar-se na definição de um novo modelo de processo caracterizado por princípios de estrita legalidade, transparência, simplicidade e celeridade, não perdendo de vista a sua função garantística e pública. A especial qualificação do universo dos destinatários da acção disciplinar, por definição e formação, conhecedores dos seus direitos e das suas garantias de defesa, consente a consagração de uma tramitação mais simples, em função da natureza da infracção. Haverá umas que justificariam uma tramitação sumária e abreviada, como é o caso das declarações à imprensa ou a falsificação de documentos. Haverá outras, como a apreciação dos deveres de zelo e diligência, o conflito de interesses ou as questões de retenção de valores, que requerem uma tramitação mais complexa. É também importante rever a matéria das provas (reforçar que cumpre aos intervenientes trazer para o processo), o processo de inidoneidade para o exercício da profissão, a notificação a advogados, que deve ser exclusivamente por via electrónica para o endereço profissional (pois se até os tribunais nos notificam apenas electronicamente); ou a limitação da oficiosidade dos órgãos de deontologia na instauração da acção disciplinar aos casos de conhecimento de infracções que lesem interesses indisponíveis da Ordem.

Muitas matérias que nos preocupam em matéria disciplinar. A abundância de processos relacionados com falsificações de documentos perpetradas pelos próprios advogados, a morosidade dos processos (em parte devida à complexidade repetitiva da acção disciplinar), a impunidade de certas infracções, como é o caso das entrevistas e conferências de imprensa de colegas sobre casos concretos numa clara violação estatutária, a inexequibilidade das sanções aplicadas e a recorribilidade das decisões dos órgãos da Ordem para o tribunal administrativo, são alguns dos exemplos.

As regras de deontologia têm, evidentemente, de ser apreensíveis por todos aqueles que escolhem entregar a sua vida a este exercício nobre. E têm de ser efectivamente aplicadas.

Mais uma vez parafraseando o meu Avô, em matéria disciplinar, “neste espírito de mútua compreensão e respeito, não há – que não pode haver – desencontro que oponha os novos aos velhos, a geração que chega àquelas que já preparam, e tristemente, as malas para partir… conservando a nossa profissão, a mais bela e a mais independente de todas, sa noblesse et sa grandeur”.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

  • Isabel Menéres Campos
  • Advogada, professora auxiliar na Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica e vice-presidente do Conselho de Deontologia do Porto da Ordem dos Advogados

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