O Ferrari fiscal e o Trabant social

O Estado que mantém os serviços da Segurança Social a funcionar como se estivéssemos em meados do século XX soube, nas duas últimas décadas e meia, trazer a Administração Tributária para a vanguarda.

Sabia-se desde o início que a eficácia dos apoios do Estado à actividade económica nesta crise estaria muito dependente de dois factores relacionados: as condições e carga burocrática das candidaturas às várias linhas de apoio e a rapidez com que o dinheiro chegasse às contas das empresas.

O objectivo declarado e bem identificado era evitar o encerramento definitivo de empresas viáveis pela obrigatoriedade de paragem nestas semanas e o consequente aumento do desemprego. Quanto maiores forem estes mais lenta e difícil será a retoma, prolongando no tempo a crise e os seus custos económicos e sociais.

O que sabemos hoje é que, apesar de todos termos a consciência declarada da importância dessa celeridade, as promessas não se transformaram em realidade.

Dos apoios ao financiamento ao lay-off, os pedidos de papelada multiplicam-se, os atrasos sucedem-se e as fragilidades dos organismos públicos tornam-se ainda mais evidentes.

Valha-nos a honestidade de Pedro Siza Vieira que admitiu sem reservas os atrasos nos pagamentos do lay-off.

Esperar que os procedimentos ordinários, já de si carregados de passos e pedidos absurdos, iriam servir em tempos extraordinários é ingénuo.

No fundo, temos Portugal a ser Portugal. E tudo começa na eterna desconfiança de tudo e de todos. Essa desconfiança começa num Estado que tem por hábito pedir certidões de nascimento, por exemplo, a cidadãos que estão visivelmente nascidos – tanto que até estão muitas vezes sentados em frente da pessoa que lhe está a pedir para provarem que nasceram – e devidamente munidos de Cartão de Cidadão válido.

Todos desconfiam de todos. Na dúvida, achamos sempre que o vizinho, o vendedor, o comprador, o cidadão e o contribuinte vão fazer uma aldrabice e dar um golpe.

E por vezes têm razão porque esta desconfiança, que tem no Estado o principal patrono e uma legião de seguidores em todo o país, tem uma irmã gémea: a tentação para a aldrabice e para a golpada. Como estas ficam muita vezes impunes isso acaba por ser um incentivo à sua repetição e daí a ilusão de que a coisa se resolve com mais uma burocracia, mais um comprovativo, mais um papel.

Ainda não é desta que fazemos a transicção para o sistema oposto: confiança e crédito dados às declarações dos candidatos, posterior fiscalização aleatória e penalizações muito pesadas e efectivamente aplicadas aos que tivessem tentado enganar os serviços e, através destes, os contribuintes.

Em vez disso, continuamos presos a tiques salazaristas, tratando cada cidadão como um mentecapto que precisa do controlo e tutela do Estado para tudo, obrigando-o a vergar à burocracia e à supremacia que ela confere aos pequenos poderes que têm capacidade para “deferir”, “indeferir”, adiar ou pedir mais papelada.

A esta incapacidade ou falta de vontade em fazer a mudança juntou-se um erro: atribuir o essencial das tarefas burocráticas aquele que será hoje o serviço mais inoperante, bloqueado e caduco do Estado entre os que servem milhões de cidadãos: a Segurança Social.

Quem lida com a Segurança Social – e para ter de o fazer basta ser trabalhador independente ou ter uma micro empresa com três ou quatro trabalhadores – sabe o calvário que é ter alguma questão para resolver nesses serviços. Tudo é de difícil contacto, demorado, burocrático e pouco claro.

Mas pode esperar-se outra coisa de um serviço que tem 264 formulários diferentes que os cidadãos são convidados a imprimir, preencher e enviar para resolver os seus problemas?

É evidente que a Segurança Social já antes da epidemia era um caos funcional, incapaz de cumprir a sua mais básica função de fazer os cálculos e pagamentos das primeiras pensões, que chegam a demorar 10 meses, deixando muitos beneficiários em situação de fragilidade económica. Isto no sector do Estado que está na primeira linha do combate à pobreza.

Tinha de ser assim? Não, não tinha. É sempre assim no Estado? Não, não é.
É que o mesmo Estado que mantém os serviços da Segurança Social em meados do século XX soube nas duas últimas décadas e meia trazer a administração tributária para a vanguarda do século XXI.

Para trás ficou a velhinha máquina fiscal, esburacada e caduca, que permitia que empresários e presidentes de clube de futebol que ostentavam riqueza viessem para os jornais gabar-se impunemente que declaravam apenas o salário mínimo na folha de IRS.

A máquina fiscal é hoje bem oleada e com recurso a tecnologias de optimização muito avançadas. E tanto é assim que hoje as críticas são pela fiscalização por excesso e não por defeito.

A Autoridade Tributária é hoje a estrutura pública que melhor conhece os contribuintes – pessoas ou empresas – e tem capacidade para cruzar informação, contactar com eles e automatizar processos.

Quando quer, o Estado sabe fazer, como se vê. Claro que é perverso que o Estado só se preocupe com a cobrança até ao último cêntimo e desleixe o pagamento de abonos e subsídios que são devidos.
Quando é a favor do Estado e das suas necessidades de cobrança não faltam meios. Quando é a favor dos cidadãos e das necessidades e conforto destes, estes que se danem.

Seria muito mais eficaz, eficiente e rápido colocar a AT e a sua máquina ao serviço da estabilização da economia numa situação excepcional como esta.

A AT também entrega dinheiro aos contribuintes quando o cobra em excesso; sabe quanto cada empresa factura em cada momento e que despesas e investimentos fazem; conhece quanto cada uma delas paga a cada um dos trabalhadores.

E se não puder ser feito pela máquina fiscal então que se ponha esta a ensinar à Segurança Social como se faz. Como se está a perceber agora, o investimento sensato que possa ser feito nesta área tem retorno económico e social a prazo.

O que não faz sentido é termos em duas áreas fundamentais de relação com os cidadãos este modelo de “Um Estado, dois sistemas”. Ainda por cima quando esses sistemas estão separados por décadas no tempo.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

O Ferrari fiscal e o Trabant social

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião