O passado como estratégia de futuro
Os media vivem uma corrida pela atenção e pela relevância. E para quem quer competir nessa estrada, conduzir às cegas é a pior das estratégias. Haja alguém que acenda os faróis, ou que abra os olhos!
Imagine que está a conduzir na autoestrada e o painel de instrumentos do seu carro só lhe mostra metade da informação. A velocidade aparece intermitente, e só quando o conta-rotações falha. A temperatura do motor desapareceu. O nível de combustível é uma estimativa, às vezes próxima, outras vezes completamente errada. Continuaria a conduzir assim, confiando que o carro está bem apenas porque “sempre foi assim”? É exatamente isso que o mercado português dos media continua a fazer com as audiências televisivas.
A decisão recente da CAEM de não aprovar a proposta da GFK para integrar o consumo digital nas métricas de audiências é, em bom rigor, a escolha de continuar a guiar com o painel avariado até 2028. É o prolongar de um modelo que só mede uma parte da realidade — a televisão linear — ignorando tudo o que se passa nas plataformas digitais, no streaming e nos ecrãs alternativos que já fazem parte do quotidiano de milhões de pessoas.
É certo que o modelo atual funciona, mas apenas no sentido em que um mapa de 1995 “funciona” para quem tenta encontrar o caminho num país que já construiu novas estradas. O consumo audiovisual é hoje fragmentado, móvel, on-demand e multiplataforma. As novas gerações já não fazem zapping, fazem scroll. E, no entanto, continuamos a medir como se o único ecrã relevante fosse o televisor da sala.
O argumento do custo — aquele que a GFK admite ter estado na origem da decisão da CAEM — é compreensível, mas curto. O que está em causa não é uma questão orçamental, é uma questão de visão estratégica. A medição de audiências é o alicerce sobre o qual se constrói toda a relação entre media, anunciantes e agências. Se o alicerce está desatualizado, todo o edifício da credibilidade balança. Os anunciantes ficam sem saber, com rigor, onde está o seu público; as agências perdem capacidade de planear com eficiência; e os meios arriscam transformar-se num espelho retrovisor que reflete apenas parte da paisagem que já passou.
O mais curioso é que ninguém parece duvidar da necessidade de mudança. Todos — televisões, anunciantes, agências — reconhecem que seria fundamental integrar o digital. Todos afirmam que os conteúdos já não vivem confinados à grelha linear. E, ainda assim, o sistema continua igual. A pergunta, então, é inevitável: a quem interessa esta manter o sistema?
É difícil acreditar que sejam os anunciantes os grandes beneficiados. São eles que investem milhões baseados em métricas incompletas. Também não parece ser o público, que há muito trocou o horário fixo pela flexibilidade das plataformas. Resta, portanto, quem tem mais a perder com a mudança: quem gere e domina o ecossistema da televisão tradicional, para quem o modelo atual garante previsibilidade e, até, algum controlo.
Mas a previsibilidade é um falso conforto. Vários mercados estão a avançar para a integração com a medição digital. Outros, estão a caminhar para sistemas de total video measurement, que combinam televisão, streaming e consumo em diferido. Portugal, pelo contrário, decidiu esperar. O problema é que o consumo não vai esperar por 2028.
Enquanto isso, o risco é claro: continuaremos a tomar decisões de investimento baseadas em dados parciais, a debater resultados que não traduzem o comportamento real das pessoas e a confundir estabilidade com estagnação. É como se o carro estivesse a aquecer, mas preferíssemos não olhar para o mostrador da temperatura. Afinal, só quando sabemos do problema é que ele passa a existir…
Não se trata apenas de tecnologia, trata-se de transparência e de futuro. A medição de audiências é o ponto zero da confiança no mercado publicitário. Se o modelo não evolui, o mercado também não. O mais preocupante não é a decisão da CAEM — é a complacência que ela simboliza.
Os media vivem hoje uma corrida pela atenção e pela relevância. E para quem quer competir nessa estrada, conduzir às cegas é a pior das estratégias. Haja alguém que acenda os faróis, ou que abra os olhos!
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