O primado da geopolítica

O crescimento do poderio chinês tem levado à crescente ingerência da política na tecnologia, porque o resto do mundo já percebeu que esta é a maior ameaça de sempre aos padrões e princípios do digital

No final do ano passado a China fez uma apresentação num seleto painel das Nações Unidas para concluir que a arquitetura tecnológica que serve de base à internet está ultrapassada e que um novo padrão é essencial – a solução apresentada foi denominada “New IP” e é basicamente um mecanismo centralizado de controlo por parte de cada estado-nação, acabando com o modelo descentralizado da internet atual. O modelo foi entusiasticamente recebido por países como a Arábia Saudita e a Rússia, mas recusado pela maioria das nações livres. Essa recusa não impede que a China continue a sua deriva pelo controlo ditatorial da internet e do mundo digital, e nada garante que este padrão não venha a ser adotado em várias partes do globo.

Vamos aos centros de dados: No início do ano, a China fez passar uma lei que determina que todos os dados que sejam alojados no país e/ou pelas suas empresas devem ficar imediatamente acessíveis ao Estado central, num desrespeito absoluto por princípios de privacidade individual ou de propriedade industrial. Em resposta, a União Europeia anda, e bem, entretida a construir centros de dados para alojar a informação com bases em princípios e legislação continental. E os americanos andam a tentar criar barreiras às empresas americanas que atuam na China, de forma a proteger os seus próprios dados. Essas ações permitirão projetar soberania e valores sobre a informação que hoje é toda digital. Nos serviços e no software, mais do mesmo. Quando na semana passada a Índia decidiu retaliar contra a China por causa das escaramuças na fronteira comum, não o fez com ações militares. Pura e simplesmente bloqueou empresas digitais chinesas de operar no país, por exemplo retirando ao Tik-Tok o seu maior mercado internacional – com o argumento de que precisa de proteger a sua soberania e integridade.

E falta o 5G, aquele que deveria ser o padrão tecnológico comum para as comunicações. Hoje o 5G é uma guerra fria entre EUA e China em que o resto do mundo escolhe a visão tecnológica do mundo a que se quer aliar.

O vilão da história é a Huawei, uma das empresas mais importantes da China que foi sustentada pela política estatista de Pequim. Austrália, Nova Zelândia, Japão, Singapura e Taiwan recusaram liminarmente a contribuição da Huawei, enquanto vários países europeus permitiram nominalmente a sua participação para depois a preterirem nos concursos públicos. Do outro lado, a empresa chinesa foi entusiasticamente aceite por vários países encabeçados por populistas e autocratas como as Filipinas, o Brasil, a Argentina e a Rússia. A China tem comprado fidelidades em várias partes do mundo, incluindo na Europa, e o 5G da Huawei é um dos mecanismos de compensação dessa fidelidade.

As ondas de choque do Covid-19 também terão efeitos na geopolítica tecnológica, e os princípios de resiliência continental vão imperar. Por isso as próximas batalhas vão travar-se na definição de padrões legais para a inteligência artificial e no desenvolvimento de chips para os computadores do futuro. E nada disto é inocente: o controlo tecnológico é a base para o controlo dos processos políticos e do sucesso económico, pelo que os estados farão de tudo para controlar a narrativa neste domínio.

Ler mais: Este paper científico estuda os fatores necessários para adquirir resiliência face a crises inesperadas e a problemas ambientais. É uma das bases para ler o que aí vem em termos de prioridades políticas para a indústria e tecnologia. Os autores são todos de Taiwan, um dos países mais interessados numa política de não-dependência face ao gigante chinês que todos os dias ameaça a sua sobrevivência.

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