O que o Reino Unido nos ensina

O Reino Unido parece ser o único país na Europa onde se passa algo realmente interessante, em termos políticos e económicos, e onde as novas ideias não são silenciadas e são abertamente discutidas.

O Reino Unido tem um novo primeiro-ministro. A escolha assenta no Parlamento legitimamente eleito e que detém os fundamentos de uma democracia com mais de 300 anos de funcionamento. Ao contrário do que as pessoas julgam, a legitimidade baseia-se única e exclusivamente nos Membros do Parlamento. Estando o partido Conservador em maioria, os seus parlamentares podem optar por delegar a escolha nos militantes, mas não são obrigados a fazê-lo. Escrevo isto apenas para esclarecer algum desconhecimento que existe em Portugal sobre o assunto.

Mas este não é apenas o único desconhecimento que é ventilado pela comunicação social nacional e de outros países. Cingindo-me apenas a Portugal e aos jornais que leio regularmente – ECO e Observador – pude observar nas últimas duas semanas como as opiniões sobre o Reino Unido se caracterizam por manifesta má-fé ou ignorância.

Diga-se a verdade que eu não dedico tanto tempo a acompanhar outros países como faço relativamente ao Reino Unido, e isso poderá ser uma vantagem minha face a comentadores que opinam sobre todo e qualquer ponto do mundo. Faço-o porque na Europa (outro esclarecimento que me parece necessário, o Reino Unido, tal como os países da União Europeia, fica na Europa) parece ser o único país onde nos últimos anos se passa algo realmente interessante, em termos políticos e económicos, e onde as novas ideias não são silenciadas e são abertamente discutidas.

A recente queda do governo Truss foi mais um desses acontecimentos. Não por causa da novela que a rodeou, mas por dois aspectos muito importantes, um positivo e outro negativo: o positivo foi tornar bem evidente que os países desenvolvidos não podem continuar a viver acima das suas possibilidades e a hipotecar o futuro, como fizeram especialmente na última década; o negativo foi prejudicar uma mudança política que é necessária e desejável para o bem de todos nós e que tarda em ser implementada.

O aspecto positivo foi abrir os olhos às pessoas a uma coisa tão simples que qualquer um de nós deveria ser capaz de a compreender: não podemos gastar mais do que recebemos durante um período muito longo. A queda do governo Truss não se deveu ao poder dos mercados, como esta semana se comentava, mas a esta verdade cristalina que se aplica às nossas casas, às empresas onde trabalhamos e a qualquer outra entidade, incluindo o Estado.

Os últimos anos assentaram na ilusão de cobrar cada vez mais impostos para aumentar a despesa do estado, tudo enquadrado por uma política monetária que perdeu a sua independência e, na prática, passou a ter como principal objectivo financiar os excessos dos governos, na esperança de que estes conduzissem, por magia, ao crescimento económico. Esta ilusão falhou e chegou a altura de pagarmos as consequências do enorme erro que cometido.

Truss não se conseguiu libertar completamente desse paradigma (que ainda vigora) de que não há limite para determinados gastos e assumiu implicitamente que o apoio da política monetária se manteria no financiamento das ajudas dadas às famílias britânicas para suportarem a subida dos preços de energia e no aumento da despesa no Serviço Nacional de Saúde. Foi com essa convicção que avançou com uma medida que não tinha limite de despesa (só num ano poderia custar o equivalente a 5% do PIB) nem forma de financiamento. Afinal, eram as pessoas necessitadas que estavam em causa, por isso não deveria haver críticas a uma política tão “justa” e “inclusiva”. Se esta proposta tivesse surgido durante os últimos anos teria sido recebida sem qualquer critica. O problema é que surgiu quando finalmente o Banco de Inglaterra reconheceu a gravidade do problema que a inflação está a causar e recusou dar esse apoio. Foi esta ingenuidade e irresponsabilidade de Truss que lhe custou o lugar de primeiro-ministro. Na verdade, a irresponsabilidade foi mais abrangente e alargou-se a todos os que se recusaram a criticar esta medida, a começar pelos (ir)responsáveis do FMI, como aqui expliquei.

O resto da Europa ainda não enfrentou essa situação, mas para lá caminha. O aumento desmesurado da despesa para mitigar o crescimento dos custos da energia ou a subida das despesas anunciadas para a saúde ou para a defesa não são compatíveis com uma inflação fora de controlo, como se encontra neste momento. O Banco Central Europeu ainda não reconheceu a gravidade do problema, mas lá chegará, e terá nessa altura de fazer uma opção: ou lida com a inflação ou continua a apoiar políticas socialistas de mais despesa e mais impostos, até chegar a um ponto de não retorno a caminho do descalabro final (Costa já admite o medo em ver desaparecer o “vício” que lhe permitiu manter-se no poder – aqui).

No meio destas tensões lemos comentadores lusos a usar o Brexit ou a muito pequena redução de impostos como causa para a demissão de Truss. Estes comentadores nem se dão ao trabalho de justificar porque é que usam o Brexit como “arma de arremesso”, papagueando o que os “remainers” dizem no Reino Unido. Falam de uma divisão no partido conservador como se essa fosse a principal razão, mas optam por esconder que muitos dos que pediram a demissão de Truss apoiaram e apoiam o Brexit.

Preferem divulgar a ignorância “politicamente correcta” anti-Brexit e anti-descida de impostos em vez de se remeterem aos factos, como a dimensão da redução de impostos que foi proposta ser pelo menos 10 vezes inferior aos apoios à energia. Um deles vai mesmo ao ridículo de escrever que o Reino Unido era “90% da economia da Alemanha antes do Brexit … agora é 70%”. A verdade dos factos é que entre o referendo e a pandemia a riqueza por habitante no Reino Unido cresceu 4% e na Alemanha 3,8% (OCDE, valores em paridades de poder de compra). A recuperação da pandemia, que coincidiu com o Brexit, está a ser um pouco mais lenta no Reino Unido do que na Alemanha (no final de 2021 estavam a 95% e a 99% do valor de 2019, respectivamente – OCDE), mas a diferença é pouco significativa. Ambos os países caminham para uma recessão, mas não serão os únicos, pelo que não há valor que confirme aqueles 70% nem o que é afirmado sobre os efeitos do Brexit.

O que os comentadores têm dificuldade em aceitar é que no Reino Unido há, por de trás do espectáculo, uma democracia a sério, onde os membros do parlamento respondem perante os eleitores que os elegeram, não respondem perante o líder do partido como acontece na grande maioria dos restantes países europeus, nem são subservientes a uma burocracia, como acontece na UE. Foi por medo de perder o seu lugar de representantes da população que quiseram a saída de Truss, não foi por causa do Brexit.

O aspecto negativo da saída de Truss está também relacionado com o “defrontar-se com a dura realidade do dinheiro”, pois ao falhar na sua opção pelo crescimento económico, em alternativa à escolha ilusória do crescimento do Estado que vigora na Europa ocidental, tornou mais difícil implementar uma solução para que Portugal e outros países da Europa possam sair da quase-estagnação em que se encontram.

Note-se que o crescimento económico não impede o rigor na despesa. Bem pelo contrário, requere-o. O que Truss trouxe de novo ao discurso, e que é importante para os outros países, foi mudar a ênfase do crescimento da despesa pública que beneficia alguns interesses instalados para o crescimento económico que beneficia toda a população (e possibilita no futuro o crescimento equilibrado da despesa pública).

O primeiro-ministro britânico que agora inicia funções deve recuperar a agenda política que permite ultrapassar o paradigma actual de mais despesa. Para isso tem de reduzir impostos e reformar o Estado para o colocar ao serviço da população, controlando a despesa e a inflação, e para diminuir a burocracia e a legislação que são desnecessárias. Tem de ser menos fundamentalista nas políticas ambientais e permitir a construção de novas casas para os jovens, tem de facilitar o acesso a serviços privados de saúde que complementem os serviços públicos e garantir a sustentabilidade da segurança social. Tem muitos desafios pela frente e terá de definir prioridades para os enfrentar.

A opção genérica, no entanto, é apenas uma: ou quer valorizar a liberdade e a vivência em comunidade ou continua no velho paradigma centralizador que evolui no sentido dos regimes “colectivistas”, como fez a China comunista esta semana. O que se passa actualmente na Europa é um consenso “podre” pela colectivização continuada das sociedades. O combate ao Covid, sendo um acontecimento extraordinário, mostrou como há muitos adeptos dessa colectivização forçada.

No Reino Unido, felizmente, as coisas não funcionam assim. Há uma luta permanente contra esta tendência de colectivização e há quem diga abertamente que não podemos continuar reféns da chantagem socialista que elegeu a inveja como um dos valores morais com que se justifica o comportamento na sociedade. Por isso é tão importante acompanhar o que lá se passa.

PS. O apoio de António Costa a Lula da Silva não deixa dúvidas: a corrupção não incomoda os socialistas. Aliás, nunca incomodou, basta ver os que protegeram Sócrates e hoje estão no governo e no parlamento a usufruir dos privilégios do poder.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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