Quente e frio

É de uma enorme arrogância que qualquer um de nós ache que sabe qual é a atitude – única e certa – a adoptar no caso de um crime de índole sexual. É de facto de uma enorme falta de empatia.

Esta foi uma semana de encontrar papéis. Martins Pereira encontrou o documento explicativo do encobrimento de Tancos que o Major Vasco Brasão dizia ter entregado; o Ministério da Defesa encontrou uma denúncia de que o Major Vasco Brasão estava a utilizar uma casa arrendada ao Instituto de Acção Social das Forças Armadas para alojamento local; já em Braga, um apostador encontrou no bolso um boletim do Euromilhões a que faltava apenas uma estrela para o primeiro prémio de 162 milhões de euros.

Em conversa de amigos começou a especulação. Não sobre o que sabia ou não o Ministro da Defesa, nem sobre a coincidência temporal do caso de Tancos com os incêndios do ano passado, mas sobre a vida com 129,6 milhões de euros (há que subtrair os 20% de imposto). “Eu não deixava de trabalhar”, “Ah, eu não vinha trabalhar logo no dia seguinte!”, “Eu doava grande parte do dinheiro”, “Mesmo com esse dinheiro todo, não comprava uma casa caríssima”… “E tu, Vera?!”

Ora, a Vera – que sou eu – foi uma vez ao ISPA assistir a uma conferência do George Loewenstein sobre Psicologia Económica. Estávamos em Novembro de 2003. No ano anterior, o Daniel Kahneman e o Vernon Smith tinham ganhado o Nobel da Economia, respectivamente, pela inclusão na teoria económica de aspectos da Psicologia e pela utilização de métodos experimentais no estudo de questões económicas, mas a Economia Comportamental ainda não estava na moda (pelo menos por cá) e até era expressão que eu desconhecia. De resto, acho-a um pleonasmo, tal como Economia da Felicidade.

Considero-me uma neoclássica e, quando me perguntam em que consiste a Economia, costumo descrevê-la precisamente como a ciência que procura a felicidade e esclarecer que se distingue bem da Contabilidade. Tenho sempre presente que a Economia nasceu no berço da Filosofia e que é uma ciência social, pelo que o adjectivo “comportamental” já está implícito, ainda que os economistas expressem o seu pensamento com o recurso à linguagem matemática. E friso que toda a gente associa o “A Riqueza das Nações” a marco fundador da Ciência Económica, mas frequentemente ignoram que Adam Smith havia escrito anteriormente o “A Teoria dos Sentimentos Morais”.

Talvez seja essa consciência que me tenha levado a, gozando da liberdade curricular que dava a minha faculdade, escolher as economias puras e duras mais a área de Econometria e depois optar por outras ciências sociais e por História do Pensamento Económico (que não entendo como não estava no elenco das obrigatórias), abdicando das cadeiras de Gestão, numa selecção que não era a mais comum.

Um colega meu, a fazer doutoramento nos EUA, vir-me-ia a dizer mais tarde que, na parte curricular, nós e os alemães éramos muito bons na teoria económica, os asiáticos eram imbatíveis nos métodos quantitativos e que os americanos pareciam fraquinhos a tudo; mas depois eram estes que faziam as teses mais engraçadas, porque, tendo tido uma formação pouco afunilada, conseguiam misturar várias áreas do saber e produzir coisas giras. Por exemplo, um dos galardoados com o Nobel deste ano, William Nordhaus, é um académico que tem esta postura interdisciplinar, tendo ido buscar conhecimentos à Física e à Química para os integrar nos modelos de crescimento económico.

Em 2002, ano em que Daniel Kahneman e Vernon Smith foram nobelizados, iniciei o meu mestrado. E uma das ideias que tinha para tese, sabendo que as crises económicas são profecias auto-realizáveis, era a de perceber o contributo de fenómenos psicológicos para os ciclos económicos. Por isso, quando, em Novembro de 2003, o meu então director, com quem, a propósito da violência doméstica, já tinha debatido a irracionalidade de algumas funções utilidade, me perguntou se queria ir a uma conferência sobre Psicologia Económica, foi fácil dizer que sim.

E fiquei assim a conhecer o trabalho de George Loewenstein, que se tem dedicado a explicar que as pessoas têm uma certa tendência para falhar previsões acerca do seu próprio comportamento, sobretudo o comportamento que teriam em condições muito diferentes daquelas em que estão ou conhecem. É aquilo que ele designou por “hot-cold empathy gap”. Isto é, estados “quentes” como fome, raiva ou medo, por exemplo, levam-nos a ter atitudes que, nos nossos estados normais, não conseguimos antever correctamente. Ao mesmo tempo, quando estamos “aquecidos”, podemos não perceber que as nossas preferências do momento estão a ser condicionadas por esse estado e que seriam outras em circunstâncias “frias”.

Portanto, eu, com a minha fria conta de quatro dígitos à esquerda da vírgula, não sei muito bem dizer qual seria a minha reacção ao calor de quase 130 milhões de euros. Curiosamente, 15 anos depois dessa palestra, há ainda quem esteja cheio de certezas absolutas sobre comportamentos em situações limite. Enquanto se tratam de fantasias à mesa do almoço sobre o que se faria se se fosse milionário, é inócuo. Mas passa a ser grave quando se olha para a reacção de uma alegada vítima de violação para ajuizar taxativamente a credibilidade da sua acusação. E se foi para casa esconder-se e lavar-se e procurar esquecer é porque sabia que não havia provas, mas se foi para um hospital e chamou a polícia é porque estava a congeminar uma extorsão.

É de uma enorme arrogância que qualquer um de nós ache que sabe qual é a atitude – única e certa – a adoptar no caso de um crime de índole sexual. E, sobretudo, é de facto de uma enorme falta de empatia.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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