Os resíduos não têm o sex appeal necessário

  • Pedro Vaz
  • 24 Setembro 2020

Até para quem governa, a política/estratégia para os resíduos não é um assunto sexy para que seja prioritário na agenda.

No seu célebre livro, “This Change Everthing”, Naomi Klein conclui que o combate às alterações climáticas não será vencido se não mudarmos o paradigma de desenvolvimento económico em que nos encontramos. A realidade é que o modelo capitalista, tal qual se nos apresenta e não obstante ter provocado melhorias na realidade de muitas pessoas e multiplicado o rendimento existente à escala global, não tem sido eficaz em aspetos outros tão ou mais relevantes, nomeadamente, na redistribuição da riqueza (nunca tanta desigualdade existiu), na preservação dos recursos naturais e da biodiversidade e acima de tudo no aproveitamento da evolução tecnológica para uma maior inclusão e aprofundamento dos sistemas políticos democráticos.

Reflexo disso mesmo é a política ambiental referente aos Resíduos e acerca da qual dedicaremos estas breves linhas.

No atual paradigma de desenvolvimento, não será necessário ser especialista em economia para verificar que a utilização dos recursos do planeta está intimamente relacionada com a atividade produtiva, consumo e crescimento económico. O crescimento económico aumenta com o consumo, que por sua vez faz aumentar a produção que por sua vez faz aumentar a exploração dos recursos naturais e vice-versa. A questão é que com o aumento do crescimento económico ainda está para vir o dia em que não aumente também a produção de resíduos.

Isto significa que, tendo em conta a forma como nos organizamos economicamente, com o aumento da população à escala mundial e com o crescimento das economias que outrora se chamavam de “subdesenvolvidas” a exploração dos recursos naturais do planeta atingiu proporções “bíblicas” e consequentemente o lixo produzido também.

Isto coloca a humanidade perante o gigantesco problema sobre o que fazer aos resíduos que produz. O mesmo problema se coloca em Portugal, apesar da política nacional para os resíduos continuar a ser demasiadas vezes varrer o lixo para debaixo do tapete, na esperança que ninguém repare.

Não podendo nestas breves linhas apresentar uma teoria geral sobre a política nacional de resíduos, não se deixará de apontar algumas notas quanto à necessidade de revolução da estratégia nacional para os resíduos que se demonstrou eficaz na década de 90 do século passado, o que permitiu o país acabar com as inenarráveis lixeiras a céu aberto, mas que não é hoje suficiente.

O primeiro e principal problema tem a ver com a maneira como nos relacionamos com os resíduos, ou como comummente dizemos, com o lixo. Do local ao global o lixo só é bom quando não o vemos. Por isso sempre que se discute grandes investimentos que tentam ajudar a solucionar o problema da produção de resíduos a máxima sempre foi e continua a ser a famosa “NIMBY” (not in my back yard) – não no meu quintal. Não queremos o contentor do lixo ou o ecoponto à nossa porta, nem queremos aterros, estações de tratamento e incineradoras nos nossos municípios. Quanto ao lixo apesar de não pararmos de o produzir o importante é que desapareça quase que por milagre da nossa vista. Isto faz com que, até para quem governa, a política/estratégia para os resíduos não seja um assunto sexy para que seja prioritário na agenda.

Apesar da tentativa de tornar a área mais atrativa com a importação de estrangeirismos e termos eufemísticos para o setor, como waste to resources ou circular economy ou transformar incineradoras em “fábricas de energia”, a realidade é que palavras como lixo, restos, resíduos, aterros não têm, nem nunca terão “sex appeal”, o que significa que não mereçam a centralidade política que obviamente têm, mas que teima em ser subalternizada em relação à água, à mobilidade, à energia, ao ruído e qualidade do ar. Como exemplo bastante, veja-se que nem o valor da Taxa de Gestão de Resíduos (TGR) arrecadado pelo Estado e que vai para o Fundo Ambiental é sequer reinvestido no setor dos resíduos, que tantos investimentos necessita (de acordo com os relatórios publicados do próprio Fundo, em 2019 dos 9,5 milhões de euros arrecadados de TGR apenas foram reinvestidos no setor 6,8 milhões).

Obviamente que, os principais problemas do setor não residem na questão de ser ou não sexy, mas o facto de nos confrontar com o nosso próprio comportamento enquanto cidadãos e comunidade é por si questão bastante para fugirmos a falar dele. Quem gosta de falar com agrado dos seus próprios defeitos ou “inconseguimentos”?

Em segundo, não necessariamente de menor importância, temos o problema já identificado, de difícil resolução que se prende com a complexa teia de Planos, Estratégias, Orientações e Legislação no sector. É exasperante a quantidade de Regulamentos, Diretivas e vários instrumentos de soft law europeus combinados com Leis, Decretos-Lei, Despachos, Portarias, Regulamentos do Regulador e Regulamentos dos sistemas sejam eles em alta ou em baixa. Apesar da boa tentativa do Unilex, o labirinto legal subsistente cria fortes entraves a uma inteligibilidade para a sociedade em geral e restrito a um grupo muito específicos de agentes.

Por fim e centrando-nos no que é verdadeiramente essencial o modelo organizacional, económico, financeiro e funcional do setor dos resíduos em Portugal, incidindo particularmente nos resíduos sólidos urbanos (RSU), que mais não é o lixo que todos produzimos no nosso contexto de vida. Posto isto, deixaremos no ar as seguintes questões, às quais tentaremos encontrar resposta nos próximos artigos.

Faz sentido que para uma atividade exclusivamente pública exista a necessidade de um ente administrativo independente de regulação, cuja génese é a regulação do mercado concorrencial, impor práticas de atuação e tarifas como se os operadores do suposto mercado não fossem públicos ou em concessão de serviço público e competissem num mercado liberalizado? Os sistemas em alta (valorização, tratamento e eliminação) tal como estão concebidos respondem eficazmente às necessidades do presente, tendo em conta as novas metas de redução de produção de resíduos da União Europeia e com as quais Portugal se comprometeu? Como é que os municípios portugueses vão em dois ou três anos fazer aquilo que não fizeram em décadas por incúria ou incapacidade, em especial quanto aos biorresíduos (a título exemplificativo efetue-se uma rápida pesquisa na internet por planos de gestão de resíduos aprovados pelos municípios e excluindo os planos de ação do PERSU, apenas se identifica a existência em Lisboa e Vila do Bispo)? A fiscalidade verde existente é a adequada no que aos resíduos diz respeito? Que instrumentos podemos utilizar de forma a que o consumo seja diferente, quais os mecanismos que se podem implementar para que as empresas e a indústria passem a produzir com uma maior responsabilidade ambiental? O que fazer com os resíduos que produzimos? Estas e outras questões são determinantes para o sucesso de um país que enfrenta sem tibiezas os seus muitos problemas com a produção de resíduos.

  • Pedro Vaz
  • Jurista, com especialização em Direito do Ambiente, Energia e Recursos Naturais

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