Portugal e Espanha, as lições do apagão

Espanha age tarde, mas quando age, age rápido. Portugal até antecipa bem, age cedo, mas – infelizmente - mostra-se demasiada vezes incapaz de concretizar.

Conhecidos dois relatórios oficiais sobre o apagão, e faltando apenas o que está a cargo da ENTSOE, parece relativamente consensual que, independentemente do jogo de passa-culpas em curso, as recomendações vão sobretudo no sentido da necessidade de modernizar a gestão e controlo da rede elétrica. Monitorizar melhor, gerir e controlar de modo diferente, responsabilizar e envolver todas as tecnologias de geração e armazenamento na prestação dos serviços (pagos e não pagos) que garantem a estabilidade da rede elétrica.

Se queremos aprender alguma coisa com o apagão, e se queremos mesmo acelerar a descarbonização do sistema elétrico e a eletrificação do consumo, então convém perceber que medidas deste tipo, para além de necessárias, são urgentes, porque contribuem, em simultâneo, para a estabilidade do sistema presente e para criar as condições para investimento em flexibilidade e armazenamento, elementos essenciais para ter uma penetração ainda maior de solar e eólico no mix de geração sem comprometer a segurança do sistema.

Espanha tem agido em diversas frentes.

Começou com a aprovação do procedimento 7.4, por parte da entidade reguladora espanhola, a CNMC. Neste novo procedimento – que aguardava aprovação há mais de dois anos, os projetos solares e eólicos, a partir de uma determinada dimensão, passam a estar obrigados a um serviço não pago de controlo de tensão e um outro serviço, este voluntário e pago, para contribuir para a gestão dinâmica de tensão, o que pressupõe a criação de um novo mercado, aberto a todas as tecnologias, para a prestação deste tipo de serviços essenciais para a gestão de uma rede elétrica moderna.

E na passada semana, com o Real Decreto Ley 7/2025, foram aprovadas inúmeras medidas para acelerar a transição energética e robustecer o sistema elétrico, nomeadamente no que diz respeito à clarificação do enquadramento legal e regulatório das baterias, incluindo, por exemplo, a determinação da utilidade pública dos sistemas de armazenamento (e geração, transporte e distribuição de eletricidade) e, em certas circunstâncias, a dispensa de avaliação de impacto ambiental.

E em Portugal?

Muitas das coisas que Espanha agora aprovou já existiam em Portugal, porque certas necessidades do sistema foram corretamente antecipadas e devidamente acauteladas nas condições de ligação à rede de projetos renováveis. O exemplo mais evidente disto é na participação do solar e eólico na regulação da tensão. Ao contrário do que se passava em Espanha, em Portugal as renováveis já prestavam este serviço de forma não remunerada, recebendo ordens do gestor global do sistema (REN). Por alguma razão, os problemas de tensão não começaram na rede portuguesa.

O DL 15/2022 já determinava a abertura dos diferentes serviços de sistema a todas as tecnologias, cabendo à REN, enquanto Gestor Global do Sistema, em articulação com a ERSE, aprovar e implementar os procedimentos adequados para garantir a estabilidade da rede.

Por fim, o reconhecimento do interesse público de projetos renováveis, incluindo baterias e linhas elétricas, foi agora aprovado em Espanha, mas já estava na lei Portuguesa, desde o DL 99/2024, para projetos renováveis e para armazenamento, e, há mais tempo, desde o início de 2022, para as redes elétricas e para os projetos resultantes de leilões de iniciativa pública.

O que falta fazer?

Sem excluir eventuais alterações legislativas – que podem sempre ser feitas, melhorando ou clarificando este ou aquele aspeto da legislação-, Portugal já tem hoje os instrumentos legais para acelerar a transição energética, modernizar a rede elétrica e adaptar, quando necessário, os sistemas e procedimentos de gestão e controlo do sistema elétrico nacional: já pode, sem qualquer alteração legislativa, criar serviços pagos e mercados de regulação de tensão, como fez agora Espanha por via de um Real Decreto; já pode regulamentar as condições de ligação à rede das baterias, isoladas ou co-localizadas, reconhecendo o seu contributo para a gestão da própria rede elétrica, tornando mais eficiente a utilização dos ativos existentes; já pode dispensar os projetos de armazenamento de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA) porque, não havendo AIA obrigatória para baterias e não havendo limiares definidos para sujeição deste tipo de projetos AIA, as baterias caem no regime caso a caso da legislação de AIA, cabendo à entidade licenciadora – que é a DGEG – a decisão final sobre esta matéria.

Tudo isto pode e deve ser feito.

Mas o que Portugal precisa mesmo é de cumprir e implementar o que já existe na legislação que promove e procura acelerar a transição energética, mobilizando, de facto, todas as entidades para que cumpram as suas funções, de preferência com algum sentido de urgência. Parte caberá a REN, parte caberá à DGEG, mas o mais importante é mesmo que o Ministério do Ambiente e da Energia tem de fazer para que as entidades sob a sua tutela – o ICNF e a APA – internalizem o interesse público da transição energética e, de facto, contribuam para o cumprimento dos objetivos e metas nacionais nesta matéria. Atualmente, o maior bloqueio nacional em matéria de energia está, de forma indiscutível, aqui.

De pouco vale antecipar a necessidade de enquadrar sistemas de armazenamento na legislação nacional, lançar avisos do Fundo Ambiental para apoio ao investimento em baterias, considerar as baterias de interesse público superior e depois, como se nada disso importasse muito, não clarificar as condições de licenciamento dos projetos, deixando investimento necessário ao sistema elétrico num limbo de incerteza que tudo paralisa.

De pouco vale lançar leilões internacionais para projetos solares na superfície de barragens, envolvendo a APA, enquanto autoridade nacional para os recursos hídricos, na escolha das localizações e na definição das condições que os projetos devem respeitar, e depois ver a mesma APA, na qualidade de autoridade de AIA, chumbar o projeto por cumprir escrupulosamente as condições impostas pela APA no leilão… porque, segundo o Presidente da APA, a consulta pública foi muito participada e a CCDR e os municípios não queriam o projeto, alegando “impactos sócio-económicos negativos muito significativos”. Como esses alegados impactos dizem respeito ao ordenamento da barragem, que é da responsabilidade da APA, e como a APA, aquando da preparação do leilão, salvaguardou todos esses usos, torna-se incompreensível a decisão da APA de aceitar essas posições, que a desautorizam enquanto autoridade nacional dos recursos hídricos.

E de pouco vale haver regulamentos de emergência sobre licenciamento ambiental, revisão de diretivas e legislação nacional sobre mesmo tema, se depois nada acontece de diferente e as dificuldades impostas a quem quer investir na transição energética não só se mantêm, como até parecem ter piorado.

Espanha age tarde, mas quando age, age rápido. Portugal até antecipa bem, age cedo, mas – infelizmente – mostra-se demasiada vezes incapaz de concretizar, não alinhando a prática das entidades e serviços públicos, que se constituem, na prática, como forças de bloqueio.

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