Quando os Mercados de Dívida Falam, é prudente escutar
Entrámos num ciclo de custos de capital estruturalmente mais elevados e de uma tolerância dos investidores estruturalmente menor. Nuno Oliveira Matos alerta para este "novo normal". Não é conjuntural.
Em três décadas de profissão a observar os mercados, duas lições provaram ser imutáveis:
Primeiro, os ciclos económicos repetem-se; é por isso que se lhes chama “ciclos”; e
Segundo, os mercados de dívida são discretos, mas quando falam, é imperativo ouvi-los; hoje, a sua mensagem é clara e severa.
Durante mais de uma década, os governos navegaram num mar de liquidez artificial, onde o dinheiro era virtualmente gratuito. A complacência orçamental foi sustentada por políticas de quantitative easing e pela crença perigosa de que os bancos centrais seriam um amortecedor perpétuo. Esse tempo, felizmente, terminou.
O fim destas políticas trouxe de volta dois velhos conhecidos: a inflação e o custo [real] do capital. Mas, no entretanto, fruto do artificialismo vivido, a dívida pública global disparou, com a média dos países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) a saltar de 70% para 110% do produto interno bruto (PIB) em apenas quinze anos. Os credores, que outrora aceitaram este excesso em nome da “estabilidade”, exigem agora, e bem, compensações adequadas pelo risco de crédito assumido.
Os sell-offs recentes nos mercados obrigacionistas não são anomalias; são, antes, o reflexo de uma crescente inquietação entre os investidores, particularmente em dívida soberana. O episódio mais marcante ocorreu no mês passado, quando uma conjugação de fatores (dados macroeconómicos, sobretudo da Alemanha e da França, e a perceção de que o Banco Central Europeu manteria as taxas de juro elevadas por um período prolongado) desencadeou um movimento global de venda em massa de obrigações. As yields de referência subiram de forma acentuada, com a alemã a 10 anos a ultrapassar momentaneamente os 2,7%, atingindo máximos históricos, enquanto os prémios de risco da periferia se alargaram, com Itália e Grécia entre os mais pressionados.
Desde então, o mercado entrou numa fase de estabilização cautelosa. A retoma gradual das compras este mês tem refletido a expectativa crescente de que o Banco Central Europeu (BCE) poderá iniciar um ciclo de cortes ainda em 2025, sustentada por sinais de arrefecimento económico e pela moderação da inflação subjacente. Ainda assim, os spreads permanecem acima das médias observadas antes do verão, um sinal inequívoco de que a prudência dos investidores se mantém e de que o custo de financiamento soberano na Europa se fixou num novo patamar estrutural.
Para o setor segurador, este é um ponto de viragem estrutural. A relação risco de crédito/retorno esperado nas obrigações soberanas, outrora o pilar da estabilidade, inverteu-se. As empresas de seguros enfrentam agora perdas não realizadas, nalguns casos porventura significativas, que comprimem os rácios de solvência e forçam uma reavaliação profunda da gestão de ativos e passivos (ALM). A volatilidade, antes confinada às ações, instalou-se também no núcleo das carteiras de “baixo risco”.
É tentador ver o aumento das yields como uma boa notícia e, a prazo, será. O rendimento do reinvestimento futuro será mais generoso. No entanto, o ajuste é doloroso. Num ambiente de Solvência II, as flutuações do justo valor afetam diretamente os fundos próprios e, consequentemente, a capacidade de subscrever novos riscos de seguro, ou seja, de expandir o negócio.
Apesar da bonificação regulatória nos requisitos de capital de solvência para o risco de crédito soberano, não podemos ignorar a realidade económica. O spread entre a dívida portuguesa e a alemã não é apenas uma métrica de mercado; é um barómetro da perceção de disciplina orçamental e fiscal. É esta perceção que, em última análise, dita o custo de financiamento da economia real.
Neste novo paradigma, o risco de taxa de juro e, sim, também, o risco de spread da dívida soberana assumem uma relevância crítica nos rácios de Solvência II. A sensibilidade dos fundos próprios às variações das taxas de juro e aos spreads é hoje um dos principais motores de volatilidade. Os choques previstos nos testes de stress, que há uns anos pareciam severos, revelam-se agora insuficientes para capturar um ambiente onde as correlações se alteraram e as políticas orçamentais e monetárias perderam a previsibilidade de outrora.
É precisamente aqui que a autoavaliação do risco e da solvência ganha uma centralidade absoluta. Este exercício deve incorporar a nova realidade heteroscedástica das taxas de juro e spreads da dívida soberana, simulando cenários de stress que quantifiquem a convexidade das carteiras, as interações entre ativos e passivos e o impacto das flutuações de mercado nos fundos próprios económicos.
Para as empresas de seguros, o tempo da complacência terminou. A gestão prudente do balanço económico exige agora mais do que gestão financeira; requer sensibilidade política, resiliência técnica e uma disciplina contracíclica férrea.
A pior decisão seria assumir que este “novo normal” é transitório. Não é. Entrámos num ciclo de custos de capital estruturalmente mais elevados e de uma tolerância dos investidores estruturalmente menor.
Os mercados de dívida, ao contrário dos governos, não fazem discursos; ajustam preços. E quando a sua paciência se esgota, o ajuste é rápido, implacável e, como sempre, profundamente justo.
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