Redes e armazenamento: o único íman do capital energético
Os grandes da energia estão a “comprar” redes em jurisdições que estabelecem regras claras e planos de longo prazo.
24 de setembro de 2025 foi o dia em que a maior utility europeia mostrou onde se decide a a eletrificação: nas redes. Em Londres, na Capital Markets Day, a Iberdrola anunciou um plano 2025–2028 de 58 mil milhões de euros, com cerca de 65% para redes e concentração geográfica no Reino Unido (aproximadamente 35%) e EUA (aproximadamente 30%); a Ibéria (Portugal e Espanha, o plano não distingue) capta aproximadamente 15%. Não é um detalhe: é uma tese estratégica e regulatória — estabilidade, previsibilidade e execução atraem capital.
O que isto revela sobre o mercado global? O estrangulamento da energia limpa já não está nos painéis e nas turbinas — está nos cabos, nas subestações e na estabilidade do sistema (onde incluo a estabilidade dos custos do sistema, como veremos). Por isso, os grandes da energia estão a “comprar” redes em jurisdições que estabelecem regras claras e planos de longo prazo: a Ofgem (regulador Britânico) prepara o ciclo RIIO-3 (2026–2031) e, nos EUA, a FERC impôs a Order 1920 com cenários mínimos de 20 anos e reavaliação periódica. O resultado é a deslocação do capital para redes — ativos regulados com remuneração definida e risco mais baixo —mantendo uma aposta nas renováveis, mas só onde existam contratos firmes (PPA), ligação à rede assegurada e retornos sólidos.
Porque não é assim em Portugal? Aqui, a rede de transporte é um serviço público concessionado: a REN desenvolve e opera a Rede Nacional de Transporte ao abrigo de contrato de concessão com o Estado. Ou seja, um grupo como a Iberdrola não pode investir diretamente em redes de transporte em Portugal — ao contrário do que faz no Reino Unido (via ScottishPower, por exemplo) ou nos EUA, com a Avangrid. É o modelo que escolhemos, perfeitamente legítimo e com muitas virtudes, mas tem implicações: quando as redes são o motor do plano global, o investimento marginal tenderá a ser canalizado para mercados onde o investidor pode, de facto, aplicar capital em ativos de rede.
Sucede que, depois do apagão, muita cautela e caldos de galinha, mas também… custos. O apagão ibérico de 28 de abril foi um choque sistémico que alguns dizem esperado, mas que foi largamente imprevisível. No mês seguinte, a REN manteve limites às interligações com Espanha, reabrindo capacidade por etapas — uma postura prudente e conservadora visando a estabilidade a todo o custo que, porém, tende a encarecer o sistema: menos flexibilidade nas importações e maiores margens de segurança implicam mais serviços de sistema e maiores custos, pressionando as margens dos comercializadores, Iberdrola incluída. O Governo respondeu com um Plano de Reforço da Segurança do Sistema de ~400 milhões de euros e 31 medidas (armazenamento, controlo de tensão, reforços), um passo na direção certa mas muito aquém da escala de investimento em redes que a própria UE vem sinalizando para esta década e, certamente, uma gota na segurança do abastecimento.
Competir pelo capital no setor energético: mudanças urgentes
Previsibilidade regulatória em redes. Ciclos plurianuais com métricas conhecidas ex-ante (WACC, incentivos à qualidade e resiliência) aproximam-nos do modelo RIIO e reduzem o custo de capital. O nosso modelo assente no Regulamento Tarifário da ERSE (proveitos permitidos/RAB+WACC) com o Regulamento da Qualidade de Serviço (incentivos/penalizações por continuidade e qualidade), enquadrados pelo Regulamento de Operação das Redes e pelo planeamento plurianual da RNT via PDIRT, comum horizonte decenal, nunca foram consentâneos com os ciclos de investimento e previsibilidade necessários para os investidores neste mercado.
Planeamento com stress-tests e execução vinculativa. Portugal já dispõe do PDIRT-E (10 anos) e do PDIRD-E (5 anos). O passo seguinte é reforçar a metodologia com cenários de 20 anos para acomodar novas cargas e rotas de exportação/integração, alinhar transporte e distribuição num calendário público de reforços e quantificar benefícios/custos de cada grande obra, com a devida segurança jurídica de que essas obras de interesse nacional se sobrepõem a quaisquer interesses regionais ou setoriais — uma via inspirada nas boas práticas do Order 1920, sem alterar o nosso modelo institucional.
Velocidade na ligação e reforços. Um “balcão único” efetivo para subestações e expansão de capacidade, com reporte trimestral do estado das filas e prioridades por zonas de carga crítica. (a REN já disponibiliza dados operacionais e de mercado; falta passar da transparência à capacidade).
Escalar armazenamento e estabilidade. Correr, como se não houvesse amanhã, para recuperar o atraso na aprovação Europeia de um Plano Nacional de Armazenamento e transformar (sem esquecer de o aumentar) o pacote de 400 M€ em metas anuais e leilões dedicados de capacidade/serviços de sistema, sincronizados com hotspots industriais e data centers.
Coordenação ibérica. Um plano conjunto REN-Redeia, transparente e participado para a estabilidade (tensão, inércia, dispositivos reativos, interligações) com calendário, CAPEX e monitorização pública pós-apagão.
Em suma, o novo plano da Iberdrola é um incentivo à eletrificação (ataca o estrangulamento das redes), um sinal para os investidores (mais peso nas receitas reguladas) — e um alerta para Portugal: com uma concessão de transporte exclusiva e uma gestão da rede compreensivelmente conservadora após o apagão, os custos do sistema subiram e as margens comerciais apertaram. Se queremos atrair o investimento desta e de outras empresas, temos de apostar na estabilidade, promovendo soluções de armazenamento, oferecer previsibilidade, planeamento e execução — mesmo num modelo em que a rede é operada por um único concessionário. A energia limpa não espera; a rede é a estratégia e o armazenamento é imperioso.
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