Regionalização. Não ponham o Porsche à frente dos bois

Marcelo avisou que avançar com a regionalização em 2022 é "colocar o carro à frente dos bois". A regionalização não deve avançar. E a avançar, nunca deverá ser antes da descentralização.

‘Concorda com a instituição em concreto das regiões administrativas?’ ‘Concorda com a instituição em concreto da região administrativa da sua área de recenseamento eleitoral?’ Foram a estas duas perguntas que a maioria dos portugueses respondeu “não” e “não” no referendo à regionalização a 8 de novembro de 1998.

Mais de 20 anos volvidos, calhou estarem no poder três fervorosos regionalistas (António Costa, Fernando Medina e Rui Moreira) que defendem que a resposta dos portugueses deveria ter sido um “sim”. E calhou estar em Belém alguém (Marcelo Rebelo de Sousa) que em 1998, na altura líder do PSD, foi uma das vezes mais audíveis a favor do “não”.

Os defensores do “sim” acham que basta o relatório da Comissão Cravinho para legitimar a opção pela regionalização, sem ter de se voltar a referendar o tema. Medina e Moreira têm razão quando dizem que o número 236º da Constituição prevê, no âmbito do poder local, três tipos de autarquias: as freguesias, os municípios e as regiões administrativas. Esquecem-se é que uns números à frente, no 256º, exige-se para tal uma consulta popular.

Se a Constituição é um entrave à regionalização, então mude-se a Constituição, pedem os autarcas das duas maiores câmaras do país. Não são os únicos a querer regionalizar sem referendar. António Costa queria, sem consultar os portugueses, que os presidentes das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto passassem a ser eleitos diretamente pelo povo, o que iria dar origem, na prática, às duas primeiras regiões administrativas.

20 Anos depois, Marcelo volta a dizer “não”. E com razão. Se chegarmos à conclusão que o caminho é dividir o país em regiões, façamo-lo às claras e respeitando a vontade popular.

Passando da forma ao conteúdo, creio que todos concordamos no diagnóstico: Portugal é um país muito centralizado. Aqui, os números podem ajudar a cristalizar a convicção: a média da despesa pública local realizada a nível europeu é de 25%, enquanto em Portugal o poder local participa em apenas 14% das receitas públicas.

Dito isto, o caminho é regionalizar? A resposta talvez mais honesta creio que foi aquela dada por Rui Rio: “não sei”. Percebendo-se a bondade dos argumentos daqueles que são pró-regionalização — sendo o argumento mais forte o da proximidade — é difícil encontrar grandes vantagens na regionalização por quatro razões:

1. O país já está dividido em muitas fatias

Regionalizar é criar mais três camadas de poder na organização subnacional do Estado. Olhando para a forma como território está dividido, o que se ganhará com a criação de mais governos regionais e respetivas Juntas Regionais e Assembleias Regionais?

O país tem apenas 92.212 quilómetros quadrados e, administrativamente e politicamente, já está bastante retalhado. Já temos um governo central e uma Assembleia da República com deputados que são eleitos em representação de 20 regiões diferentes (os círculos eleitorais).

Depois temos as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), que dividem o país em cinco regiões e ainda as duas áreas metropolitanas, a de Lisboa e do Porto, e também 21 Comunidades Intermunicipais. Depois o país divide-se em 308 municípios e respetivas assembleias municipais e ainda 3.091 freguesias, algumas com apenas 20 hectares e outras com apenas 43 habitantes, com as suas juntas e assembleias de junta. Como se não bastasse, as câmaras ainda se organizam na Associação Nacional de Municípios Portugueses e as freguesias na Associação Nacional de Freguesias.

Isto tudo sem esquecer, é claro, as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, e os seus governos e assembleias regionais. Já para não falar dos nossos distritos que em tempos não muito longínquos foram liderados por governadores civis, cargos que Pedro Passos Coelho fez questão de extinguir e até ao dia de hoje ainda ninguém deu pela falta deles.

E para fins estatísticos há ainda quem divida o país em NUTS I, NUTS II e NUTS III. É de loucos.

2. Centralizar também tem vantagens

O debate sobre a regionalização tem assentado na ideia de que a descentralização é a panaceia para todos os nossos males, esquecendo-se, alguns, que centralizar também tem vantagens a nível de economia de escala, eficiência, organização e escrutínio.

Não é por acaso que neste país criaram-se os agrupamentos escolares, os centros hospitalares e se juntaram tribunais.

Aliás, não deixa de ser curioso que António Costa, enquanto presidente da Câmara de Lisboa, tenha optado por reduzir de 53 para 24 o número de freguesias, ainda antes da imposição da troika. Centralizar às vezes é a melhor forma de descentralizar.

3. Podemos descentralizar sem regionalizar

Se o objetivo dos que defendem a regionalização é descentralizar poderes, não existirá formas mais expeditas e eficientes de o fazer? Assim de repente consigo-me lembrar de três:

  • Deslocalização de serviços/ministérios

É verdade que António Costa não conseguiu levar o Infarmed para o Porto, mas o caminho para descentralizar também passa por deslocalizar serviços, empresas, institutos e agências para fora de Lisboa.

Ajudava também descentralizar o poder. Santana Lopes, no seu curto mandato, chegou a instalar seis secretarias de Estado fora de Lisboa: Coimbra, Santarém, Aveiro, Évora, Faro e Braga.

O mesmo fez António Costa: os gabinetes governamentais da Valorização do Interior, da Ação Social e da Conservação da Natureza, das Florestas e do Ordenamento do Território vão para Bragança, Guarda e Castelo Branco, respetivamente.

  • Transferência de competências

A atribuição da gestão da Carris à Câmara de Lisboa e da STCP à Câmara do Porto, bem como a transferência das competências da PSP em matéria de trânsito para as respetivas políticas municipais, são outros exemplos eficazes de descentralização.

  • Descentralização

Será talvez a grande herança de António Costa. O Governo tem em marcha uma mega transferência de competências do poder central para as autarquias, nas mais diversas áreas setoriais: desde praias, exploração de jogos de fortuna ou azar, vias de comunicação, justiça, educação, associações de bombeiros, estruturas de atendimento ao cidadão, habitação, estacionamento público, etc.

O processo envolve a transferência para as autarquias de 45.160 trabalhadores, 2.800 imóveis e ainda um cheque de 952,7 milhões de euros.

Para aqueles que defendem que o poder local consegue fazer mais com menos, eis a oportunidade de o demonstrar. Enquanto não completarmos esta etapa, não vale a pena falar em regionalização. É precisamente este o argumento do Presidente da República: “Estar a sobrepor a regionalização a esse processo seria uma precipitação, por colocar o carro à frente dos bois, podendo ser um erro irreversível”.

4. Escrutinar o poder local e o exemplo da Madeira

Se deslocalizarmos, municipalizarmos, transferirmos competências, para quê precisamos de regionalizar? Para dar emprego aos autarcas que vão para o desemprego por causa da nova lei de limitação de mandatos?

A dispersão de poder e dinheiro para o poder local e regional não está isenta de riscos e um deles é o de menor escrutínio. Ainda todos se lembrarão do caso da Região Autónoma da Madeira que escondeu 1.113 milhões de euros em despesas, que deveriam ter sido reportadas às autoridades estatísticas e não o foram, e que, quando a troika descobriu, fizeram disparar o défice.

Há um outro caso esta semana noticiado pelo jornal Público que vale mais pelo caricato do que pelo valor envolvido. A Escola Profissional Amar Terra Verde lançou um concurso para a compra de um carro de luxo no valor de 100 mil euros com “volante desportivo em pele, tapetes em alcatifa aveludada e bancos dianteiros aquecidos e com massagem”. Segundo o jornal, a escola pretende dar como retoma um Porsche Panamera de 2012.

Esta escola é detida em 49% pelos municípios de Vila Verde, Amares e Terras de Bouro que venderam os restantes 51% do capital da escola por causa de uma lei do tempo da troika que obriga à dissolução das empresas locais sempre que se verifique que, nos últimos três anos, o seu resultado líquido foi negativo. Isto para evitar uma prática comum na altura em que autarquias utilizavam empresas municipais como forma de desorçamentar despesa.

Aliás, a propósito de escrutínio, não deixa de ser curioso e caricato que Rui Moreira, em entrevista à TSF, tenha dito que obrigar os autarcas a escolher até 2021 as competências a transferir para as suas regiões em matéria de descentralização era um enorme risco, porque 2021 é ano de eleições autárquicas e os autarcas “vão querer ficar com todas essas competências, prometendo mundos e fundos à população. E, depois, não vão ter os recursos pertinentes para cumprirem as suas obrigações”.

É esta a confiança que um regionalista convicto deposita no poder local.

O Porsche de Marcelo e o Ferrari de António Costa

Aqui chegados, e por aquilo que foi dito nos pontos 1, 2, 3 e, sobretudo no 4, fazer a regionalização à pressa é, como diz Marcelo, “colocar o carro à frente dos bois”, ou pior, colocar o Porsche à frente dos bois.

Isto não quer dizer que o poder local não seja de confiança. É como tudo, há bons e maus presidentes de governos regionais, há bons e maus autarcas. E nem só de Porsches e de bois se faz a descentralização. Também se faz com Ferraris e burros.

Um dos bons autarcas deste país foi António Costa que um dia, quando ainda ambicionava ser presidente da Câmara de Loures, resolveu fazer uma corrida entre um burro e um Ferrari para demonstrar que o transito na Calçada de Carriche era caótico, exigindo o prolongamento da linha do metro.

Graças a António Costa, e a muitos outros autarcas competentes deste país, a linha do metro chega hoje a Odivelas. E não foi preciso regionalizar para descentralizar.

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