Tempos difíceis não são para o Doutor Centeno

O Doutor Centeno sai agora porque quer disfarçar o péssimo estado em que deixa as contas públicas.

A saída do Doutor Centeno de ministro das Finanças ocorre no momento menos feliz e oportuno, salvo se de facto tudo estava combinado para ele ser o próximo Governador do Banco de Portugal. A única razão para a sua saída neste momento prende-se com o timing de substituição do Governador. Se for o caso, é lamentável.

O país enfrenta a crise económica, financeira e orçamental (e social) mais terrível das últimas décadas. A quebra do PIB em 2020, estimada entre 7% e 12% do PIB, é, mesmo no cenário mais benigno, o dobro da diminuição do PIB de 2012, o pior ano de crise até agora. Mesmo a quebra de 7%, uma previsão bastante otimista – como tive oportunidade de explicar na passada sexta-feira a propósito dos números que o Governo apresenta na alteração ao OE –, representa uma quebra do PIB igual à verificada entre 2009 e 2013, em que, em termos acumulados, o PIB caiu quase 8%. Ou seja, num ano, o PIB cairá pelo menos tanto como no somatório de cinco anos da última crise.

Em cima disso, o Governo acabou de apresentar uma alteração orçamental e um programa que é na prática um novo Orçamento. É certo que sem uma linha de rumo e um objetivo definido, limitando-se a um conjunto desgarrado de medidas. Mas do ponto de vista orçamental temos um exercício totalmente diferente do que foi projetado no início deste ano.

Mas se a pior crise de sempre e um novo orçamento não fossem motivos suficientes para estranhar o timing de saída do Doutor Centeno, soma o facto de que sai de Presidente do Eurogrupo numa altura em que a resposta Europeia à crise, onde o nosso governo joga todas as fichas e esperanças, está ainda longe de estar decidida e com muito trabalho e negociação pela frente.

A entrevista do ainda ministro das Finanças, na passada quinta-feira à RTP, foi lamentável. Disse o Doutor Centeno que só ficou como ministro das Finanças por causa da presidência do Eurogrupo. Deu razão ao que foi dito na campanha eleitoral do ano passado: ele estava a prazo, queria abandonar o Executivo, e ficava até final do 1º semestre com o objetivo de concluir o Eurogrupo e depois saltar para o lugar de Governador. Mostrou que pouco ou nada lhe importa o interesse nacional. Que acima desse interesse está a sua vaidade pessoal e a sua ambição.

É fácil brilhar quando os ventos e marés são de feição. Nos últimos 4 anos, o Doutor Centeno apresentou um “milagre orçamental” que eu procurei, aqui no ECO e noutros fóruns, mostrar que era ilusório, conjuntural e pouco credível.

Começou logo no programa de Governo. Quem se recordar do “relatório para a década” do PS em 2015 (e de todo o pensamento económico do Doutor Centeno enquanto académico), poderia perguntar o que levou o Doutor Centeno (e já agora o Professor João Leão) a entrar num governo que deixou cair as 4 grandes medidas que eram preconizadas no programa do PS (coordenado pelo Doutor Centeno e onde o Professor João Leão estava).

Essas medidas, que eram na opinião do PS em 2015 absolutamente vitais para a economia Portuguesa, não foram implementadas, tendo ficado na “gaveta” devido ao acordo da “geringonça”:

  • Redução da TSU para empresas;
  • Redução da TSU para trabalhadores;
  • IRS negativo como compensação pelo não aumento do salário mínimo e o regime conciliatório – uma maior flexibilidade na contração e legislação laboral, permitindo acordos ao nível das empresas e não por setores.

Depois, no primeiro orçamento que apresentou (o OE2016), o ministro Centeno foi duramente criticado pela Comissão Europeia, tendo que refazer o documento. Mesmo assim, nenhuma instituição independente (CFP, UTAO, Comissão, FMI) acreditava no objetivo do défice orçamental. Todas essas entidades apontavam para um défice acima dos 3%. O Doutor Centeno fez o oposto do que tinha colocado no papel e aprovado no Parlamento (seria sempre assim nos restantes OE, mas neste isso foi mais notório). Atingiu um défice de 2%, mas ao qual é preciso somar as medidas excecionais tomadas em agosto/setembro de 2016 (PERES, venda F-16, etc) que totalizaram 0.5%, bem como a quebra do investimento e o brutal aumento das cativações. Sem estes efeitos, o défice acabaria por ter sido na ordem dos 3%.

A consolidação orçamental do período 2016 a 2019 foi um exercício frágil e conjuntural. Em 4 anos, o défice nominal passou de 3.1% (em 2015, sem “one-offs”) para um superavit de 0.8% (em 2019, também sem “one-offs”). Uma melhoria de quase 4 p.p. do PIB num cenário de crescimento económico e com uma política monetária muito expansionista do BCE, com taxas de juro zero ou negativas. Recorde-se que entre 2011 e 2015, num cenário de recessão e de crise profunda no Euro, o défice nominal passou de 9% para 3%.

Mas como foi obtida a descida de 4 p.p. do PIB de défice entre 2016 e 2019? A tabela abaixo desmistifica o “milagre orçamental do Doutor Centeno”. Cerca de ¾ da redução do défice nominal resultou da política monetária do BCE (entre redução da despesa com juros e aumento dos dividendos e IRC do Banco de Portugal temos 2 p.p. do PIB), além da redução do investimento público (menos 0.4 p.p.) e aumento da carga fiscal (mais 0.6 p.p. do PIB).

Ou seja, dos quase 4 p.p do PIB de redução do défice nominal nos 4 anos do ministro das Finanças Centeno, 3 p.p. resultam destes efeitos. E isto numa conjuntura económica de crescimento, de “boom” do turismo e imobiliário, que permitiu um aumento da receita fiscal muito significativo. O tempo das “vacas gordas” serviu, como no passado sempre que é o PS a governar, para aumentar a despesa corrente primária (DCP), para aumentar a máquina do Estado. Entre 2015 e 2019, a DCP passou de 70.7 biliões (milhares de milhões) para 78.6 biliões. Mais 8 biliões de euros de despesa com o Estado.

No que diz respeito à consolidação estrutural, os resultados são ainda piores. O défice estrutural (o défice nominal sem as medidas “one-off” e sem o efeito do ciclo económico – quando a economia cresce há mais receita e o défice é menor, quando a economia cai há menos receita e o défice é maior – os chamados “estabilizadores automáticos”) tinha passado de 8% em 2011 para 2% em 2015. Uma redução do défice estrutural de 6 p.p. do PIB em 4 anos.

Nestes últimos 4 anos, entre 2016 e 2019, o défice estrutural passou de 2% para 0.5%. Ou seja, apenas melhorou 1.5 p.p.. Mas como já vimos atrás, só em redução de juros temos 1.6 p.p do PIB. Ou seja, sem fazer nada, a melhoria do défice estrutural está explicada.

Isso é ainda mais visível na evolução do saldo primário estrutural (ou seja, o défice estrutural sem os juros). Portugal passou de um défice primário estrutural de 5.7% em 2011 para um superavit primário estrutural de 2.3% em 2015. Ou seja, em 4 anos, uma melhoria de 8 p.p. do PIB! Mas desde 2016 o indicador praticamente estagnou. Melhorou apenas 0.3 p.p. do PIB. Curiosamente o valor do aumento dos dividendos e IRC do Banco de Portugal.

O Doutor Centeno sai porque não quer ser posto à prova nestes momentos difíceis. Quer que fique dele a imagem de alguém que equilibrou as contas públicas. Só que o fez num contexto quase sem paralelo, de crescimento económico e de taxas de juro zero ou negativas. Mesmo assim, para alcançar um ligeiro superavit, precisou de cortar o investimento público para mínimos históricos, deixar degradar os serviços públicos como nunca sucedeu e aumentar a carga fiscal para máximos de sempre.

Como escrevi aqui no ECO há cerca de um ano, a gestão económica e orçamental deste governo pode ser sintetizada nesta analogia:

  • Imaginem uma empresa que passou por uma crise terrível (2008-2014), muito pouco competitiva, com “prejuízos” todos os anos e altamente endividada. Após esse período, essa empresa apanha um período de algum crescimento económico e dividendos de uma participada que lhe permite subir a receita. Simultaneamente, vê os seus custos de financiamento reduzir-se por via de uma descida das taxas de juro nos mercados. E o que faz essa empresa? Aproveita essa bonança e folga financeira e reestrutura-se, de forma a ser mais competitiva e simultaneamente reduzir o seu endividamento? Não, pelo contrário, usa essa margem e aumenta os seus custos operacionais fixos!

O Doutor Centeno sai agora porque quer disfarçar o péssimo estado em que deixa as contas públicas.

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