Tiririca e o finlandês voador

O que têm em comum o palhaço Tiririca e um antigo sprinter finlandês? Foram eleitos através de um sistema que permite ao eleitor escolher o seu candidato a deputado. Mas as semelhanças acabam aqui.

No Brasil, estes dias são de samba e forró, mas em outubro o Carnaval será outro e estarão em disputa a Presidência da República, governos estaduais, além dos lugares de senadores, deputados federais e deputados estaduais.

Já se sabe que muita controvérsia e animação não vão faltar. Deixemos por agora a magna e complexa questão da possibilidade de Lula se candidatar novamente a Presidente da República. No imenso desfile de candidatos que se perfilam aos diversos lugares, há um nome que já declarou que não se recandidatará: Tiririca. Sim, esse, o palhaço.

No derradeiro, e único, discurso que proferiu no passado mês de dezembro na Câmara de Deputados, Tiririca confessou a sua impotência para mudar o sistema e anunciou a sua retirada da política. Tiririca, que foi eleito por duas vezes deputado com mais de um milhão de votos, deixou como registo parlamentar algumas propostas para melhorar as condições de vida dos palhaços e a denúncia de que teria utilizado verbas do parlamento em viagens para dar espetáculos (acusação de pouca monta, convenhamos, quando comparada com o extenso cardápio de suspeitas de corrupção e de acusação de utilização indevida de dinheiros públicos que grassam em todos os patamares da política no Brasil).

Já sente saudades de Tiririca? Não desespere, melhor não fica. Por muitas incertezas que tenhamos em relação às eleições, podemos ter a certeza de que o sistema eleitoral para a câmaras de deputados continuará a incentivar a candidatura e o recrutamento para as diversas listas de celebridades como o famoso Enéas Carneiro (o candidato mais votado de sempre na história da democracia brasileira) e o jornalista campeão da defesa dos consumidores e estrela televisiva Celso Russomano (que em 2014 ultrapassou o próprio Tiririca e foi o candidato mais votado em todo o país com mais de um milhão e meio de votos), para não falar de craques e artilheiros eleitorais como Romário.

Mas a “culpa” é do sistema? Em parte sim. Para a eleição de deputados, o Brasil utiliza um sistema eleitoral proporcional de lista aberta. Isto significa que, ao contrário do que acontece em Portugal, os eleitores não votam em listas fechadas previamente ordenadas pelos partidos, mas em candidatos individuais. A soma dos votos em todos os candidatos inscritos em determinada lista é que determina o número de deputados a eleger por essa lista, por ordem dos mais votados individualmente.

Ótimo, mais liberdade de escolha para os eleitores, certo? Acresce que as listas podem ser compostas por coligações entre partidos, dando assim um grande incentivo quer para a proliferação de campanhas pessoais, quer para a “contratação” de celebridades que sejam capazes de “puxar” a votação, o número de deputados e o correspondente financiamento público a atribuir a determinada lista. Este sistema tem degenerado num explosivo cocktail político em que uma excessiva personalização das campanhas (e seu financiamento), a fragilidade e o fracionamento crónico dos partidos não tem ajudado a (re)estabelecer uma ligação de confiança entre eleitores e eleitos.

Num estudo do AmericasBarometer publicado em agosto de 2017, o Brasil aparece nos últimos lugares nos indicadores relacionados com o apoio e a confiança na democracia. Por exemplo, apenas 23,4% dos brasileiros afirmam confiar nas eleições (o valor mais baixo de todo o continente americano com exceção do Haiti) e 9% expressam confiança nos partidos (apenas o Chile e o Peru apresentam valores inferiores). Já na resposta à pergunta se consideram que mais de metade dos políticos são corruptos, os brasileiros lideram a tabela com 83% dos inquiridos a responder que sim, a par da liderança na percentagem de cidadãos que não acreditam que o sistema judicial irá punir os infratores.

Curiosamente, um outro caso de um país com um sistema eleitoral de lista aberta que podemos encontrar nos mais recentes compêndios dos estudos dos efeitos dos sistemas eleitorais é a Finlândia. Apesar das diferenças, na Finlândia os partidos também indicam com alguma frequência celebridades como candidatos, de forma a atrair votos para as suas listas. Um dos exemplos é Juha Väätäinen um vitorioso sprinter da década de 60 e 70, aquilo a que no comentário desportivo se convencionou chamar de “finlandês voador”, que se candidatou pelo partido Verdadeiros Finlandeses nas eleições de 2011 e foi eleito.

O que é que têm em comum o palhaço Tiririca e um antigo sprinter finlandês? Ambos foram eleitos através de um sistema eleitoral que permite ao eleitor escolher o seu candidato a deputado favorito. Mas as semelhanças parecem ficar por aqui.

Os últimos dados do Eurobarómetro disponíveis indicam que 62% dos finlandeses confiam no parlamento e que a satisfação com a democracia também é uma das mais elevadas da União Europeia. Talvez não por acaso, também 82% dos finlandeses afirmam confiar na justiça, a percentagem mais elevada entre todos Estados-membros da União Europeia.

É certo que os sistemas eleitorais, nas suas várias dimensões, podem provocar efeitos indeléveis na vida política dos países. Mas, como nos ensina Dieter Nohlen, o contexto histórico, social e político faz a diferença.

Moral da história do palhaço Tiririca e do finlandês voador? É saudável que se tenha a perspetiva de que os sistemas eleitorais podem ser aperfeiçoados para responder às disfunções que os sistemas políticos vão revelando. Mas é pouco avisado que possam ser vistos como uma panaceia milagrosa ou como a origem de todos os males da vida política.

 

 

O que é que têm em comum o palhaço Tiririca e um antigo sprinter finlandês? Ambos foram eleitos através de um sistema eleitoral que permite ao eleitor escolher o seu candidato a deputado favorito. Mas as semelhanças parecem ficar por aqui.

  • Docente do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

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