Um novo paradigma (monetário)?

O período de taxas de juro próximas de zero não será tão longo que permita que um país com elevada dívida pública possa relaxar nos seus objetivos de melhoria da competitividade da economia.

Nos últimos anos a política monetária seguida nos países desenvolvidos (sobretudo nos EUA, Reino Unido e Europa) tem levado a taxas de juro historicamente baixas. De fato, sobretudo a partir de 2015, as taxas de juro da dívida pública da maioria dos países da zona Euro passou para valores negativos em maturidades de curto e médio prazo. Mas nalguns países, as taxas de juro têm sido consistentemente negativas até no longo prazo. No caso da Alemanha, as taxas de juro das Bunds a 10 anos tem tido períodos com valores negativos. Em todo o caso vivemos nos últimos anos num cenário de taxas de juro “zero”.

Estas taxas de juro “zero” refletem sobretudo três efeitos:

  • primeiro, uma inflação muito baixa, também ela durante boa parte dos últimos anos próxima de “zero”;
  • Segundo, um excesso de liquidez nos mercados financeiros, resultado da política monetária seguida pelos Bancos Centrais;
  • Terceiro, um sentimento de aversão ao risco por parte de grande parte dos investidores.

Refira-se que a inflação e as taxas de juro não têm respondido, nem aos estímulos monetários, nem mesmo a algum crescimento económico que assistimos nos últimos anos. Esta nova realidade, como sempre sucede, traz alterações de paradigma.

Por um lado, taxas de juro muito baixas reduzem o esforço orçamental do serviço da dívida. Basta ver que Portugal paga hoje (2019) menos 1.2% PIB em juros do que em 2015. Trata-se de uma poupança de cerca de 2 mil M€! Qualquer coisa como 25% da despesa com o SNS, cerca de 30% da despesa com a Educação, quase o dobro do orçamento das universidades ou metade do investimento público feito em 2018.

Adicionalmente, ao deixar a compra de dívida pública no programa de Quantitative Easing aos bancos centrais nacionais, por forma a reduzir o risco moral, o BCE criou um benefício adicional: os dividendos e IRC que o banco central paga ao Governo. Só em Portugal representa em 2019 mais de mil M€. Tudo junto, o “dividendo orçamental” foi de mais de 3 mil M€, representando 2/3 da redução do défice de 3% em 2015 para zero em 2019. Junte-se-lhe a redução do investimento público nos últimos 4 anos e temos o “milagre orçamental” explicado, sem recurso ao “sobrenatural”, mas também sem grande mérito de quem conduz a política económica e orçamental.

Mas se é verdade que taxas de juro muito baixas reduzem o esforço orçamental, também é verdade que mais inflação poderia ter um efeito significativo na redução da divida pública em % PIB. Digo poderia, porque seria necessário que o crescimento nominal da economia fosse superior à taxa de juro média implícita da dívida pública, para que ocorresse o que se designa por “efeito bola de neve”. Ou seja, como o PIB (denominador) cresce mais rápido que a dívida pública (numerador), o rácio reduz-se por esse efeito. Mas não é líquido que tal pudesse ocorrer, porque mais inflação no médio prazo traduzir-se-ia por um ajustamento nas taxas de juro, que diminuiria ou anularia este efeito.

Por outro lado, taxas de juro muito baixas são um problema para os aforradores, e sobretudo para os fundos de pensões. De facto, os fundos de pensões têm um dilema complexo. Por um lado, asseguram responsabilidades de longo prazo. Por outro lado, têm de investir grande parte do seu portfólio em divida pública, por ser considerada um “ativo sem risco”. Mas com a dívida pública com taxas de juro “zero”, os fundos têm um problema de solvabilidade no longo prazo. Daí a procura de novos ativos, nomeadamente infraestruturas e projetos de investimento com retornos razoáveis e risco muito reduzido.

As alterações de acionista nas PPP rodoviárias em Portugal nos últimos 3-4 anos é um reflexo disso. As construtoras venderam ativos que neste momento são “cash-cows” para fundos que procuram exatamente isso mas com risco muito baixo.

Ora, esta nova realidade, de taxas de juro baixas, levanta várias questões para o futuro. Por um lado, muitos economistas, sobretudo à esquerda, tem defendido a chamada Teoria Monetária Moderna. Trata-se de emitir moeda para pagar investimentos públicos, financiando o défice. Isso leva a um postulado que os défices orçamentais são irrelevantes. Só que, como explicou magistralmente o meu amigo Brandão de Brito aqui no ECO, os défices orçamentais não são, nem deixarão de ser muito relevantes. Não só há riscos de criação de uma espiral inflacionista no futuro (o imposto mais regressivo que o Estado pode aplicar é exatamente a inflação), bem como destruir o único valor que uma moeda efetivamente tem (e que não é o do papel em que é impressa): a confiança.

Por outro lado, injeções brutais de moeda apenas levam a uma estagnação económica, dado que mantêm vivas empresas que não são mais que “nados-mortos”. O exemplo do Japão nas últimas 3 décadas deveria servir-nos de exemplo.

Mas nas últimas semanas quer o “Financial Times”, quer a “The Economist” voltaram a pegar no tema, pegando na intervenção recente de Oliver Blanchard numa reunião da “American Economic Association”. Já antes Larry Summers (que trabalhou com Clinton e Obama) tinha escrito um artigo (junto com Jason Furman), na “Foreign Affairs”, um artigo no qual defende que era tempo de afastar a obsessão pela divida pública.

Ambos argumentam com as taxas de juro próximas de zero, o seu baixo custo orçamental e o facto de que a liquidez é tão abundante que talvez deixe-se de verificar o efeito de “crowding-out” (isto é, o efeito que mais financiamento público leva a menos financiamento privado).
Ora, temos assim a grande questão da política económica dos próximos anos, talvez até da próxima década. Estaremos perante um longo período, de 10 ou mais anos, em que as taxas de juro vão manter-se próximas de zero?

Quem entender que as taxas de juro vão manter-se próximas de zero durante um período muito longo, então tenderá a considerar que a restrição orçamental se tornou menos exigente. Com algum crescimento económico, haverá o “efeito bola de neve” que referi atrás, o que significaria a redução da dívida pública em % PIB mesmo com algum défice orçamental. A dimensão desse défice orçamental seria naturalmente uma função da diferença entre o crescimento nominal e a taxa de juro média. Haveria assim “dinheiro a rodos” para aumentar a despesa pública com prestações sociais, com os serviços públicos e com o investimento público.

Quem, por outro lado, entender que estamos perante um efeito temporário, e que as taxas de juro voltarão a subir, tenderá a considerar que a restrição orçamental mantém-se. Considerará também que os governos deveriam aproveitar este “dividendo orçamental” e o tempo associado a este período para equilibrar os seus orçamentos de forma estrutural (isto é, retirando não apenas o efeito do ciclo económico, mas também o efeito deste “dividendo orçamental”, por ser temporário). Considerará também que os governos deveriam aproveitar este tempo de bonança para reformar a economia, tornando-a mais competitiva, para reformar o sistema de pensões, assegurando a sua sustentabilidade no longo prazo e promovendo a mudança para um padrão de consumo descarbonizado.

A forma como olharmos para essa questão vai também determinar a condução da política económica e orçamental de Portugal. Só que no caso de Portugal, convém sempre recordar que o país ainda tem uma dívida pública de cerca de 120% do PIB, enquanto a média da zona Euro está abaixo dos 90%.

Aqui há 2 semanas, o Expresso perguntava a 8 economistas (onde me incluíram) se o IGCP deveria mudar a sua política de emissão de dívida pública, dadas estas condicionantes. Ou seja, se ao invés de estender maturidades (que têm um custo maior, dado que por regra prazos mais longos têm taxas de juro maiores que prazos mais curtos), não deveria reduzi-las, procurando assim aproveitar as baixas taxas de juro para reduzir ainda mais o esforço orçamental do serviço da dívida.

A maioria dos economistas (incluindo eu) respondeu que não. Que o IGCP deve atuar na gestão da dívida pública de forma conservadora, aversa ao risco. Que é preferível ter um custo orçamental um pouco maior, protegendo o país de futuras crises financeiras, que poderiam colocar em risco o acesso aos mercados, como sucedeu em 2010-2011. A propósito disso, o IGCP publicou um estudo (“Term Premium Evolution for Germany and Portugal”) onde mostra que o prémio (face à divida Alemã) pago por uma extensão de maturidades nunca foi tão baixo.

Mas mais importante é ligar a questão anterior (vamos viver num período longo de taxas de juro zero?) com a condução futura da política económica em Portugal.

Entendo que o período de taxas de juro próximas de zero não será tão longo que permita que um país com elevada dívida pública possa relaxar nos seus objetivos de melhoria da competitividade da economia e nos seus objetivos orçamentais.

Entendo que Portugal tem de aproveitar esta bonança económica para atuar nos grandes problemas estruturais de competitividade da economia nacional. E, simultaneamente, reduzir a sua divida pública rapidamente para valores abaixo dos 100%. Isto com contas públicas equilibradas do ponto de vista estrutural. Reformando a gestão financeira do setor público, tornando os serviços públicos mais eficientes, promovendo investimento público de qualidade e garantindo a sustentabilidade da segurança social.

Se atuarmos do lado da melhoria da competitividade da economia, promovendo reformas e medidas que aumentem a posição de Portugal, e do lado de um setor público mais eficiente, iremos aumentar o nosso PIB potencial, e com isso a nossa capacidade de crescimento económico no médio e longo prazo.

Com tudo isto, e com taxas de juro baixas, reduziremos a divida pública, bem como a despesa com juros, protegendo Portugal de eventuais crises financeiras e tornando a economia nacional mais forte, gerando assim os recursos necessários para uma melhor função de redistribuição, nomeadamente através de serviços públicos na área da saúde e da educação, bem como nas prestações sociais.

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