Um Novo Tempo no Banco de Portugal: “O rei morreu, viva o rei”

Se o anterior governador deixou uma instituição mais opaca, burocratizada e vulnerável a interpretações políticas, Santos Pereira tem a oportunidade e o dever de restaurar a sua confiança e autonomia.

Conheci Álvaro Santos Pereira há mais de 15 anos, quando ainda lecionava na Simon Fraser University, no Canadá. Nessa altura, enquanto doutorando, acompanhava com interesse o seu trabalho académico, o seu blog e as suas reflexões sobre a economia portuguesa. Tive até a oportunidade de colaborar tecnicamente em alguns dos gráficos do seu livro Portugal na Hora da Verdade — uma obra inteiramente da sua autoria, lúcida e corajosa, que se tornou um marco no debate económico nacional à época. Esse livro, publicado antes da crise da dívida soberana, foi uma das razões para Pedro Passos Coelho o convidar, em 2011, para ministro da Economia e do Emprego.

Com o passar dos anos, mantivemos uma relação de respeito intelectual, colaboração académica e amizade. Publicámos juntos dois artigos científicos, e outras ideias promissoras ficaram, por falta de tempo, por concretizar. Por um mês apenas não nos cruzámos na OCDE — ele chegava, eu partia para o FMI. Sempre o vi como um economista rigoroso, empiricamente sólido e intelectualmente honesto: qualidades raras num meio tantas vezes dominado por agendas ou narrativas políticas.

Na semana passada, ao assumir funções como Governador do Banco de Portugal, Álvaro Santos Pereira encarnou precisamente o perfil de economista de que o país precisa à frente do seu banco central: isento, analítico, apolítico e, sobretudo, vindo de fora da própria instituição. Essa distância orgânica e intelectual é uma vantagem. O Banco de Portugal ganha agora um governador que entende o valor da independência e da transparência — e que sabe que a credibilidade se constrói com trabalho técnico, não com protagonismo mediático.

O simbolismo da sua tomada de posse no Museu do Dinheiro foi, aliás, revelador. Pela primeira vez desde 1975, a cerimónia não decorreu no Ministério das Finanças. “O simbolismo de termos esta cerimónia aqui não podia ser mais importante”, sublinhou. É um gesto carregado de significado: a afirmação da autonomia institucional num momento em que, em Portugal e fora dele, a independência dos bancos centrais volta a ser questionada. Ao destacar que “a estabilidade dos preços e a estabilidade financeira exigem bancos centrais independentes”, Santos Pereira devolve o debate económico ao seu terreno natural — o da evidência e da racionalidade. Desde os contributos fundamentais de Menzie Chinn e Hiro Ito, sabemos que a independência das autoridades monetárias não é apenas uma virtude institucional, mas uma condição económica necessária ao desenvolvimento sustentável. As evidências internacionais são claras — ainda que algumas se apliquem de forma indireta ao caso português, dado o enquadramento do país no Eurosistema e a partilha de soberania monetária no âmbito do Banco Central Europeu:

  • Menor inflação e maior previsibilidade — bancos centrais independentes ancoram melhor as expectativas e reduzem a incerteza para famílias e empresas.
  • Maior disciplina orçamental — quando o banco central é imune a pressões políticas, os governos perdem o incentivo para financiar défices através da inflação.
  • Menor custo de financiamento soberano — a credibilidade monetária traduz-se em menores prémios de risco e maior confiança dos investidores.
  • Melhor resposta a choques externos — instituições independentes ajustam políticas de forma técnica e tempestiva, sem ceder ao calendário político.

Mesmo num país da área do euro, onde a política monetária é definida pelo BCE, a independência do Banco de Portugal continua a ser determinante: na supervisão macroprudencial, na estabilidade financeira, na avaliação dos riscos bancários e na voz técnica que Portugal leva para o Conselho do BCE. É, portanto, uma questão de eficiência económica e de boa governação, não de dogma institucional.

Mas a independência formal só se cumpre plenamente se acompanhada de uma cultura organizacional que a sustente. Por isso, desejo sinceramente que o relacionamento entre o gabinete do Governador e — principalmente — o Departamento de Estudos Económicos do Banco de Portugal entre agora num novo capítulo de colaboração e reforço mútuo. Depois de anos marcados por algum divórcio e tensão entre quem define a estratégia e quem produz a análise, é tempo de voltarem a comunicar e a “namorar” saudavelmente. A investigação e a decisão não podem viver de costas voltadas.

O papel deste departamento é central: é ali que se produz o conhecimento técnico e a investigação empírica que fundamentam as decisões de política monetária, a supervisão macroprudencial e a análise económica nacional. É, em suma, o coração intelectual do Banco de Portugal. Ora, Álvaro Santos Pereira sempre valorizou a investigação económica positiva — a que explica o que é e porquê — em detrimento da análise normativa e opinativa que caracterizou algumas das publicações do banco sob o anterior governador. Ele acredita, como eu, que boa política pública nasce de boa evidência empírica, não de voluntarismo académico. Tenho a convicção de que, sob a sua liderança, a ligação entre a investigação e a decisão ganhará nova vitalidade, com maior abertura, rigor e diálogo interno.

As suas primeiras palavras como governador deixam boas indicações. Ao prometer concursos para todos os diretores e diretores-adjuntos, reafirma a importância da meritocracia e da transparência — pilares essenciais numa instituição que deve servir o país, não proteger feudos internos. É igualmente de saudar a clareza com que defendeu recentemente que “decisões estruturais não devem ser tomadas no final dos mandatos”. Essa é uma afirmação de ética institucional que muitos deviam escutar com atenção. Nos últimos atribulados, desnorteados e até desesperados meses, o Banco de Portugal viveu episódios lamentáveis de decisões tomadas à última hora, em fim de mandato, que criaram desconforto interno e mancharam a perceção pública — nacional e internacional — de imparcialidade e de respeito pelos princípios de boa governação. A tensão que marcou a última reunião do Conselho de Administração, e a sensatez demonstrada ao adiar a decisão sobre o futuro do agora ex-governador, mostram que há finalmente sinais de regresso ao bom senso institucional. De saída, o agora ex-governador terá, ao menos, mais tempo para se dedicar à poesia — área em que, como demonstrou em 2023, o entusiasmo superou largamente o talento. O tempo dessas práticas deve ficar definitivamente para trás.

Se o anterior governador deixou uma instituição mais opaca, burocratizada e vulnerável a interpretações políticas, Álvaro Santos Pereira tem agora a oportunidade — e o dever — de restaurar a confiança e a autonomia do banco central. E tudo indica que o fará com a sobriedade e o rigor que sempre o caracterizaram. Portugal precisa disso. O Banco de Portugal precisa disso. E quem o conhece — como eu tive o privilégio de conhecer — sabe que Álvaro Santos Pereira está à altura do desafio. O país precisa de mais economistas como ele: competentes, serenos e livres.

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