Um SNS para as empresas

  • Paulo Valério
  • 5 Junho 2020

Quando uma empresa está insolvente, há os que acham que ela deve morrer longe. E há os que preferem fazer tudo para a recuperar.

Todos os dias nos chegam previsões negras sobre o impacto económico da pandemia. Mesmo que pontuadas por sinais que concedam otimismo ou mera esperança – com a bazuca de Bruxelas à cabeça -, ninguém parece duvidar que a crise será severa para as empresas e trágica para muitas famílias. Insolvência é a palavra que ninguém quer pronunciar, mas que ecoa, todos os dias, no chão de fábrica, no café da esquina, à mesa do jantar lá de casa. Mas, o que é a insolvência, afinal?

Os livros de direito dizem que a insolvência é a impossibilidade de cumprir obrigações vencidas, coisa que dirá pouco à maioria dos leitores. Mas, simplificando, podemos dizer que a insolvência se verifica quando as empresas deixam de conseguir pagar pontualmente aos seus fornecedores, aos bancos, aos trabalhadores ou mesmo ao Estado. Quando isso acontece, dizemos que uma empresa está insolvente.

Hoje, em Portugal, haverá empresas que estão insolventes porque eram economicamente inviáveis, mesmo antes da pandemia. Mas outras há – suspeito que muitas –, cuja insolvência resulta apenas do impacto brutal que a pandemia teve na sua atividade. Nos setores do turismo e restauração estarão muitas delas. Mas, a montante destes setores, há uma extensa cadeia de fornecedores de bens e serviços que também foi apanhada desprevenida.

Quando uma empresa está insolvente, há os que acham que ela deve morrer longe. E há os que preferem fazer tudo para a recuperar.

Há, portanto, os que acham que a insolvência é uma erva daninha que se deve cortar cerce, apontando a todas as empresas em incumprimento o caminho para a liquidação. Para esses, a insolvência é a natureza do mercado a suspirar pelos fortes e a livrar-se dos fracos. Esses darwinistas económicos ignoram (fingem ignorar) que uma empresa que fecha nunca é só uma empresa que fecha. Com o encerramento, começa por vir a desvalorização dos bens da empresa, vendidos a preço de saldo em vendas forçadas. Mas, logo a seguir, chega a pressão sobre o sistema previdencial; a sobrecarga dos tribunais; a quebra de receita fiscal; o desemprego e, com ele, a fome.

E há depois os outros que, como eu, acreditam que a insolvência é apenas um sintoma, originado por uma doença que pode ser mais grave ou menos grave. Para esses, o Estado tem a obrigação de fazer um diagnóstico correto e prescrever a terapêutica mais adequada: por um lado, deixar morrer com dignidade as empresas cuja liquidação é inevitável – isso faz-se com celeridade processual e maximização do valor dos ativos; mas, por outro, criar condições para a recuperação de todas as empresas viáveis, ainda que isso signifique a (justa) repartição das perdas por todos os envolvidos – acionistas à cabeça, credores, claro e o próprio Estado, quando tiver mesmo que ser.

Numa economia de mercado como a nossa, isto faz-se através do regime jurídico da insolvência, que dita as regras sobre a liquidação e determina o “se”, “quando” e “como” da recuperação. Mas eu não creio que o nosso regime esteja, neste momento, preparado para dar a resposta mais adequada.

Ao dia de hoje, uma empresa que tenha sida afetada diretamente pela crise e que esteja em incumprimento com os seus credores, não preenche os requisitos para requerer uma recuperação judicial e está sujeita a ser declarada insolvente, certamente liquidada, por mera iniciativa de um dos seus credores.

Se o não for, com grande probabilidade, arrastar-se-á no mercado por mais uns meses, embalada por moratórias e outros deferimentos, até rebentar com estrondo lá mais para o final do ano, deixando um rasto de destruição pelo caminho.

Por isso, não é possível esperar mais tempo para fazer aquilo que os principais Estados com quem mantemos relações comerciais já fizeram há quase três meses – estabelecer um regime excecional, que permita evitar uma avalanche de insolvências impossível de gerir pelos tribunais e abrir uma oportunidade de recuperação para todas as empresas recuperáveis, ainda que insolventes. Criar, desta forma, uma espécie de SNS para as empresas. E não, não esperar que seja o mercado a resolver o problema. Quando o próprio mercado anda de mão estendida nas saias do Estado, duvidar da sua virtude é, no mínimo, prudente.

  • Paulo Valério
  • Advogado e sócio da VFA

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