Ventura, o político quântico: candidato a Presidente e a primeiro-ministro

A ‘experiência quântica’ é tentar ser simultaneamente candidato a Presidente e a primeiro-ministro, árbitro e jogador, guardião da Constituição e promotor de um programa eleitoral com riscos.

Neste artigo entro um pouco no domínio da física quântica, de forma muito simplificada — dado não ser a minha área de especialização —, com vista a estabelecer algumas analogias que me parecem relevantes para analisar peculiaridades recentes do sistema político português, depois de termos sabido que André Ventura, líder do Chega, o principal partido da oposição, será candidato a Presidente da República. Trata-se de uma das figuras mais polarizadoras da política portuguesa: admirado pelos seus apoiantes pela frontalidade e combatividade, criticado pelos opositores pelo radicalismo e pelo estilo populista.

Se, quando entramos no domínio quântico, as leis da física se alteram de forma radical, o mesmo parece estar a suceder no domínio da política nacional recente, num processo de ‘atomização’ a vários níveis que nos afasta das práticas do passado e, nalguns aspetos, eleva o grau de populismo acima das tendências observadas lá fora.

O gato de Schrödinger e o atual contexto político protagonizado por Ventura

Na física quântica, Erwin Schrödinger concebeu uma célebre experiência mental: um gato fechado numa caixa opaca, ligado a um dispositivo que pode libertar veneno dependendo do decaimento de uma partícula, está simultaneamente vivo e morto até que alguém abra a caixa e observe. Esta ideia de superposição de estados é paradoxal, mas ilustra bem a natureza estranha e probabilística do mundo quântico — a realidade no domínio das partículas quânticas só se materializa quando é medida, como postula, de forma simplificada, o conhecido Princípio da Incerteza de Heisenberg.

Ora, a política portuguesa parece ter encontrado o seu próprio ‘gato’ de Schrödinger, André Ventura, neste caso em superposição política na ‘caixa’ da Democracia ao longo dos próximos meses — simultaneamente candidato Presidencial e candidato a primeiro-ministro.

Só quando for aberta a ‘caixa’ dos resultados das eleições presidenciais, em janeiro do próximo ano (a uma ou duas voltas), se verá em que estado emerge o sistema político: com um Ventura Presidente, árbitro e guardião da Constituição, ou um Ventura ainda líder da oposição e candidato a primeiro-ministro, potencial líder de um futuro Governo e condutor de políticas em futuras eleições legislativas. Até lá, Ventura joga na incerteza, alimenta hipóteses, maximiza a visibilidade e mantém a tensão.

É certo que Ventura já afirmou a sua preferência pelo cargo de primeiro-ministro e assume como objetivo mínimo nas eleições Presidenciais — a que concorre por o Conselho Nacional do seu partido não se rever nos demais candidatos e não encontrar mais nenhum com potencial que possa apoiar — a passagem a uma provável segunda volta. Contudo, se entrarmos no domínio das hipóteses, parece pouco crível que rejeite o cargo de Presidente se ganhar essas eleições a uma ou duas voltas, dado tratar-se da posição mais alta dentro do nosso sistema democrático, o que se confirma também no estatuto remuneratório.

O cálculo Venturiano

A duplicidade adotada parece seguir a seguinte lógica:

  • Visibilidade máxima: a corrida Presidencial garante palco mediático em horário nobre, reforçando a notoriedade do Chega e, em particular, do seu líder.
  • Diversificação estratégica: se não conseguir a Presidência, mas mesmo assim Ventura tiver um resultado expressivo — porventura acima do seu partido nas últimas eleições legislativas, ainda que os dois sufrágios não sejam diretamente comparáveis —, poderá até reforçar as suas hipóteses como candidato a primeiro-ministro, assumidamente a sua preferência.
  • Liderança sobre a direita: uma boa votação nas presidenciais reforça ainda mais Ventura como referência inevitável à direita do PSD, alavancando a sua posição em negociações e alianças.
  • Controlo interno: a candidatura presidencial de Ventura, decidida pelo Conselho Nacional do Chega, disciplina os militantes e reduz espaço para dissidências, reforçando a sua liderança.

Mas há riscos óbvios:

  • Perda de credibilidade: o papel Presidencial exige imparcialidade, mas Ventura tem vivido da retórica de combate e com posições muitas vezes conflituantes face a outras assumidas no passado — apostando na ‘memória curta’ dos eleitores, algo conhecido na teoria dos ciclos políticos-eleitorais — ou até na mesma altura.
  • Dispersão de recursos: duas campanhas implícitas exigem energia, militância e finanças.
  • Confusão na base eleitoral: é possível e até provável que a base eleitoral do Chega, que o tem apoiado como candidato a primeiro-ministro, possa ficar confundida e dividida sobre o seu apoio nas eleições Presidenciais. Ventura está a apostar na lealdade dos seus apoiantes agora numa eleição pessoal, diferente de umas eleições legislativas, correndo o risco de uma votação inferior à votação do Chega ou a não passagem a uma provável segunda volta.
  • ‘Bumerangue’ eleitoral: um eventual mau resultado eleitoral nas Presidenciais pode prejudicar a dinâmica ascendente do Chega e fragilizar o partido em futuras eleições legislativas.
  • Conflito institucional virtual: um possível Presidente Ventura teria de se afastar do partido e agir como moderador do sistema político; um primeiro-ministro Ventura teria de governar ‘sem travões’ como tem prometido. O contraste de papéis a que se propõe em superposição é total.

Ausência de precedentes e impacto no sistema político

Esta situação de superposição de candidaturas não tem paralelo em Portugal. É verdade que já tivemos políticos que foram primeiro-ministro e depois Presidente (Mário Soares e Cavaco Silva), mas nunca uma candidatura às duas funções em virtual superposição, como agora sucede com André Ventura.

Também não encontro situações comparáveis no estrangeiro, mas peço que me corrijam se estiver errado. Em França, com um regime semipresidencialista como o português, os líderes partidários apresentam-se apenas às Presidenciais (cargo mais relevante e de legitimidade direta), não acumulando com a candidatura assumida a primeiro-ministro. Já houve casos de líderes partidários franceses que, após perderem Presidenciais, voltaram como candidatos a primeiro-ministro ou chefes de Governo, mas nunca numa situação de virtual superposição como parece suceder com Ventura.

O fenómeno Ventura gera implicações para além do seu cálculo pessoal:

  • Presidencialização e personalização: a centralização da política no indivíduo e não nas instituições.
  • Normalização da ambiguidade: se a Presidência se torna uma ferramenta partidária, enfraquece-se o pacto implícito da neutralidade.
  • Choque de legitimidades: a linha que separa ‘árbitro’ de ‘jogadores’ no espaço da Democracia portuguesa pode colapsar, corroendo a confiança no regime.

Ventura contra Ventura: o duelo impossível mesmo para um ‘ator’ habituado a ter múltiplos papéis

O mais fascinante — e preocupante — é pensar como pode Ventura gerir, no estado de superposição em que estará até às eleições Presidenciais de janeiro do próximo ano, a defesa de duas funções opostas.

  • O virtual Ventura Presidente tem de zelar pela Constituição, defender a independência dos poderes, vetar leis ruinosas e garantir a credibilidade externa de Portugal.
  • O virtual Ventura primeiro-ministro, pelo contrário, teria de implementar um programa eleitoral do Chega que, segundo análises independentes, implicaria riscos sérios de descontrolo orçamental: aumentos massivos de despesa, cortes fiscais sem compensação e outras medidas avulsas que poderiam precipitar o país para a bancarrota num contexto internacional adverso, conflituando com a função de Presidente.

O paradoxo é que própria lógica constitucional obriga um Presidente a procurar travar aquilo que um primeiro-ministro Ventura gostaria de implementar, tornando a superposição um absurdo nos termos.

Trata-se de um exercício que podemos caracterizar como ‘esquizofrénico’ e que, no limite, poderia trazer problemas de saúde mental a Ventura, mas diria que esse perigo é limitado, dado já ter demonstrado aptidões de ‘ator’, desempenhando vários papéis ao mesmo tempo sempre com uma elevada preocupação pela ‘qualidade cénica’ das suas interpretações.

Convém, por isso, olhar para trás e não esquecer que André Ventura se tornou conhecido da população portuguesa como comentador desportivo, entre 2014 e 2018, na defesa acérrima do Benfica enquanto adepto. Em 2017, André Ventura já estava numa posição muito particular, com múltiplos papéis:

  • Comentador desportivo mediático (com forte presença no debate sobre arbitragem e defesa do Benfica).
  • Professor universitário (Direito Penal).
  • Político emergente (candidato do PSD à Câmara de Loures).

Após se ter tornado conhecido da opinião pública, abandonou o papel de comentador em 2018, ano em que fundou o partido Chega, que o elegeu deputado único em 2019. Desde então, a ascensão do Chega a maior partido da oposição (em número de deputados) confunde-se com a de André Ventura.

Ou seja, se Ventura já era um autêntico one-man show político no Chega — o que se acentuará com as eleições autárquicas, em que se desdobrará no apoio a candidatos autárquicos pouco conhecidos, na sua grande maioria —, com a candidatura presidencial, a ‘peça a solo’ exige um desdobramento inédito, o de se apresentar simultaneamente como jogador e árbitro do sistema político.

Todo o percurso de Ventura é racional, no sentido de capitalização das oportunidades que lhe aparecem pelo caminho, mas claramente ‘não olha para trás’, o que deve deixar de sobreaviso a sua base eleitoral.

Alguém ouviu alguma palavra de Ventura sobre o Benfica, a grande paixão que o tornou conhecido na opinião pública portuguesa, desde que deixou de ser comentador desportivo? Se o amor ao clube era tão grande nessa altura, por que razão Ventura nunca quis ser Presidente do Benfica ou sequer apoiar um candidato, inclusive no sufrágio que se aproxima?

Há casos, atuais e passados, de deputados que são comentadores de futebol, pelo que, em princípio, não há incompatibilidade em Ventura continuar a apoiar o Benfica como adepto ou até como comentador. Em jeito de provocação, diria mesmo que, caso Ventura queira ainda mais protagonismo e espaço mediático, pode candidatar-se também a Presidente do Benfica nestas próximas eleições — se os gatos têm sete vidas, Ventura tem mais algumas para usar na sua estratégia ‘quântica’.

O ponto é que o Benfica parece ter sido apenas uma forma de Ventura se catapultar no percurso político que hoje conhecemos. Assim como essa ‘bandeira’ foi deixada para trás, outras o serão quanto mais Ventura for avançado na vida política nacional, isso parece bastante claro. O que hoje é prioridade política, amanhã poderá deixar de o ser se for necessário para chegar a um cargo mais desejável.

Isto significa que um eventual Ventura Presidente poderá abandonar muitas das bandeiras que anunciou como candidato a primeiro-ministro e vice-versa.

O anúncio do ‘governo sombra’ após a candidatura Presidencial confirma o paradoxo da superposição

Para não haver dúvidas da superposição que refiro, após o anúncio da candidatura Presidencial, no dia 16 de setembro, Ventura revelou, nos dias 18 e 19 desse mês, a constituição do seu ‘governo sombra’, ou seja, os nomes dos Ministros que o acompanharão no caso de vir a ser eleito primeiro-ministro, cumprindo a promessa feita no início da nova legislatura a esse respeito e dentro do timing indicado posteriormente.

Quanto à composição desse virtual elenco governativo, confirmo apenas o que já tinha referido anteriormente neste mesmo espaço de opinião sobre a pasta das Finanças — a que se junta ainda a pasta da Economia no desenho apresentado —, que é a dificuldade de Ventura em encontrar um economista com ‘nome na praça’ disposto a arriscar a sua reputação para aplicar o programa eleitoral do Chega. Isto porque o mesmo poderá levar o país à bancarrota num contexto internacional adverso, caso o partido não modere as propostas mais extremadas em termos de redução de receita e aumento de despesa pública (para mais detalhes, remeto para as crónicas “Profeta’ Ventura tem dois anos para moderar-se ou achar o ministro das Finanças da nova bancarrota” e “Legislativas 2025, a nova dança do ‘tango a três’”).

Vale a pena, por isso, olhar para o currículo da pessoa escolhida por Ventura para liderar as duas pastas, o Professor Doutor Armando Rui Teixeira Santos, que é licenciado em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, mestre em Relações Internacionais e Doutor em Ciência Política. Trata-se, por isso, de alguém que, apesar de um percurso académico admirável, não está especializado nas áreas das Finanças e Economia, sendo por isso legítimo duvidar da sua capacidade para liderar esse ’super-ministério’. Recordo que já tivemos Ministros das Finanças vindos da área do Direito, mas que depois se especializaram na área económica, como o saudoso fiscalista e professor António Sousa Franco.

Ainda que o Professor Doutor Armando Santos se possa depois rodear de pessoas com conhecimento mais especializado nas duas áreas, nomeadamente nas Secretarias de Estado, e revele capacidades de liderança das duas pastas, o problema será sempre aplicar um programa económico e financeiro que, caso mantenha as medidas dos anteriores com que o Chega se apresentou a eleições legislativas, conduzirá o país, no mínimo, a um descontrolo orçamental, segundo fontes independentes.

Assim, pode colocar-se a questão se o Ministro sombra do Chega para as Finanças e Economia só terá aceitado o cargo com a promessa de moderação das propostas do Chega nestas áreas. Seria uma forma de se proteger, mas teremos de ouvir o seu pensamento para ficar com uma ideia a este respeito.

Conclusão — quando a caixa se abre

A ‘experiência quântica’ de André Ventura revela-se um exercício político sem precedentes: tentar ser simultaneamente candidato a Presidente e a primeiro-ministro, árbitro e jogador, guardião da Constituição e promotor de um programa eleitoral com riscos financeiros consideráveis.

Tal como no gato de Schrödinger, a realidade só se materializará quando a “caixa” for aberta — neste caso, a das eleições Presidenciais que terá lugar em janeiro — e até lá tudo permanece em superposição: possibilidades múltiplas, tensões contraditórias e expectativas conflituantes.

A divulgação do ‘governo sombra’ após o anúncio da candidatura Presidencial confirma o paradoxo da superposição, bem como a dificuldade de atração de um nome reputado para ministro nas áreas cruciais das Finanças e Economia.

O paradoxo de Ventura evidencia três riscos centrais para o sistema político português.

Primeiro, a erosão da Presidência, quando um cargo que deveria servir de árbitro se transforma em palco de estratégia partidária.

Segundo, a frustração popular e um maior afastamento dos cidadãos da vida política, com o eleitorado a assistir à instrumentalização de instituições e à multiplicação de papéis do mesmo indivíduo, minando a confiança nos políticos e na política.

Terceiro, a exposição do vazio programático, quando o confronto inevitável entre o candidato Ventura-Presidente e o candidato Ventura primeiro-ministro evidencia que nenhum dos papéis é sustentável sem comprometer princípios ou finanças públicas.

Por outro lado, a estratégia ‘quântica’ de Ventura é racional do ponto de vista pessoal: maximiza visibilidade, consolida liderança partidária e amplia opções futuras, demonstrando uma compreensão aguçada do teatro político e mediático. Contudo, essa racionalidade individual não vem sem riscos para o próprio e o seu partido, ao entrar em colisão com a estabilidade institucional e com as expectativas de responsabilidade democrática, arriscando uma votação baixa nas presidenciais que poderá travar a ascensão do Chega e prejudicar o partido em futuras eleições legislativas.

A análise do percurso de Ventura mostra que esta lógica de capitalização das oportunidades não é nova: tal como o Benfica serviu de trampolim mediático para a sua notoriedade e percurso político, bandeiras simbólicas podem ser deixadas de lado se tal for preciso para perseguir cargos mais altos.

Em última análise, esta tentativa de superposição política de Ventura deve servir para nos lembrarmos da importância da separação de poderes no sistema democrático português, com limites claros para evitar a acumulação de funções e a instrumentalização de cargos institucionais.

Ventura pode tentar habitar dois mundos simultaneamente, mas no final a política não é física quântica: mais cedo ou mais tarde, a caixa abre-se, e o eleitorado terá de decidir se aceita o ‘gato’ vivo, morto ou apenas fragmentado entre contradições insustentáveis.

Diria que temos ‘gato escondido com rabo de fora’. Na verdade, em política, ao contrário da física quântica, a caixa acaba sempre por se abrir.

  • Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Professor Catedrático e sócio fundador do OBEGEF

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