Em mar de piranhas, jacaré nada de costas (IX)

Viajar é um deslumbramento. Mesmo quando as coisas parecem irritantemente iguais em toda a parte.

Chegámos finalmente felizes e com bons presságios’. Esta é a primeira frase de um pequeno, mas delicioso, livro de Johann Wolfgang Goethe que relata a sua viagem napolitana. Escrito em 1787, é o testemunho do deslumbramento do escritor alemão com Nápoles e, sobretudo, a exaltação do prazer de viajar.

Sou um viajante convicto que, apesar da crescente padronização de muitos lugares e da sua consequente descaracterização, acredita que é ainda possível chegar a um destino com bons presságios e sair feliz.

Há alguns dias, um amigo interrogava-se, sobre o que nos leva a viajar, a enfrentar filas intermináveis e comida intragável nos aeroportos, e a suportar os atrasos exasperantes dos aviões que, entretanto, se assemelham cada vez mais a transportadores de carga. E, continuava ele, de que nos serve tamanho sacrifício se o que encontramos, na maioria dos casos, são magotes de turistas de telemóvel em punho, cadeias de restaurantes, lojas de souvenirs e de unhas de gel iguais às que temos no nosso país?

Porque viajamos, então? Por estatuto social? Por aborrecimento? Para fugirmos das nossas rotinas e daquilo em que elas nos tornaram? Para preencher um mapa repleto de bandeirinhas com a frase ‘Eu estive lá’?

Ou, simplesmente, porque ainda acreditamos na existência de momentos de iluminação e descoberta? Creio que, podendo existir outras razões, esta última é a que está na origem da empreitada que levou Goethe a Itália e que motiva os verdadeiros viajantes nas suas andanças pelo mundo.

Quando nos deparamos com o que é sublime, com o que ainda não perdeu autenticidade, somos Goethe em Nápoles. Senti-me, assim, numa viagem de amigos àquela cidade, quando vi a escultura do Cristo Velato na Capela de San Severo, as pinturas L’Ecce Homo e La Flagellazione di Cristo, de Caravaggio, no Museo e Real Bosco di Capodimonti, os mosaicos, os frescos e os objectos do quotidiano de Herculano e Pompeia no Museo Archeologico di Napoli, ou quando jantei na Trattoria San Ferdinando e, de seguida, passeei sem rumo no Quartieri Spagnoli. Naquela cidade vibrante e caótica, com vista para o Vesúvio, tivemos a restituição em dobro por todos os desconfortos da viagem.

  • A TAP tem um vôo direto para Nápoles com duração estimada de três horas e dez minutos. O preço só a TAP sabe.

A beleza das coisas simples

Prometi a mim mesmo (por egoísmo, confesso), não escrever sobre Puglia, um daqueles raros lugares que, por respeitar a sua identidade e preservar as suas tradições, parece estar parado no tempo. Abro esta exceção, para vos falar de um dos muitos momentos de iluminação vividos no calcanhar da bota. O motivo deste deslumbramento chama-se Masseria Moroseta, um hotel próximo de Ostuni, com apenas seis quartos, e, sobretudo, um restaurante. Ambos têm listas de espera intermináveis.

Este ano, após muita insistência e paciência, conseguimos finalmente mesa para jantar no Moroseta Kitchen. Uma oliveira centenária e dramática indica-nos o caminho para um pátio com duas mesas corridas onde 20 felizardos, sob a influência de um pôr do sol deslumbrante, aguardam a refeição. A chef Giorgia Eugenia Goggi trabalha apenas produtos locais, muitos deles oriundos da horta da masseria.

Abóboras, beringelas, tomates, pimentos-corneto, flores de funcho, rosmaninho e os primeiros pêssegos da estação juntam-se ao queijo pecorino, à carne de porco e ao risotto e concorrem para uma refeição superlativa. Os vinhos são, na sua maioria, de produtores locais.

Enquanto anoitece e os pratos se sucedem, obedecemos às palavras de Giorgia, escritas no menu: ‘Dê prioridade a algo novo. Feche os olhos e saboreie com todos os seus sentidos. O primeiro pêssego do Verão. A terra húmida. O caos calmo do mercado à primeira hora do dia.» É isto, o prazer das coisas simples. As coisas que nos iluminam.

 

  • A Masseria Moroseta situa-se na Contrada Lamacavallo, em Ostuni. O preço da refeição, com sete pratos, custa 110 euros. A que acrescem 40 euros de wine pairing. Recomenda-se que reserve um ano antes.

 

  • Colunista regular. Diretor Geral e Administrador da Fundação EDP

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