
Execução do PRR: é fundamental ir além do remendo
O facto de nos estarmos muito distantes das metas estabelecidas pela UE não se deve à complexidade ou rigidez da nossa legislação em matéria de contratação pública. Mas à gestão dos órgão de decisão.
O Presidente da República veio, há dias, alertar, certeiro, para a excessiva burocracia que tem rodeado (e contaminado), ao longo dos últimos anos, a execução do PRR. Nessas declarações, adiantou que uma das soluções (ou mesmo a solução primacial) passaria pela “revisão da lei sobre contratos administrativos”.
Adiante-se, desde já, que se concorda com a identificação do problema, mas não com a solução aventada.
O PRR está, de facto, a patinar. E não é de agora. Portugal viu-se de bolsos cheios de dinheiro e, dadas as metas estabelecidas pela UE, com a necessidade de o gastar. Perante este cenário, delineou-se um plano de ataque, foram criadas entidades e autoridades, fizeram-se consultas públicas, delegaram-se competências, contrataram-se assessores e fez-se o apelo às empresas e à sociedade civil para virem a jogo, apresentar as suas ideias e respetivas candidaturas.
Contudo, não creio que o facto de nos encontrarmos muito distantes das metas estabelecidas pela UE se deva à complexidade ou rigidez da nossa legislação em matéria de contratação pública. Deve-se, isso sim, à forma como os órgãos de decisão têm gerido estas oportunidades.
Exigia-se rapidez e eficiência na criação de projetos ou na reativação de outros já existentes, mas sem financiamento, alinhados com as prioridades europeias. Em vez disso, prevaleceu uma apatia generalizada, dificuldade em definir prioridades e conflitos de competências, que atrasaram decisões essenciais para o arranque dos procedimentos de contratação.
A tudo isto acrescem dificuldades na fiscalização e no fecho dos programas, que desincentivam a participação de privados, que têm de lidar com variadíssima legislação dispersa, procedimentos e plataformas eletrónicas altamente complexos, assentes em manuais e fichas de verificação de candidaturas de 240 páginas, para os quais não recebem a devida orientação.
Enquanto advogado, tenho assistido a situações absolutamente inusitadas, em que as entidades beneficiárias são gravemente prejudicadas pelo obsessivo formalismo e arbitrariedade com que algumas Autoridades de Gestão verificam as candidaturas, as despesas incorridas e os procedimentos pré-contratuais adotados por aquelas.
Naturalmente, há quem tenha visto no PRR uma oportunidade para se locupletar indevidamente. Mas houve também empresas e instituições que o encararam com seriedade, desenvolveram projetos válidos e esforçaram-se por cumprir os requisitos exigidos, muitos dos quais chegaram a bom porto.
A questão é que, depois de se verem confrontadas com decisões desprovidas de fundamento, através das quais, em inúmeros casos, lhes foi exigida a devolução da totalidade do financiamento por razões de mera formalidade (como atrasos na prestação de informações não essenciais para a execução do financiamento como, por exemplo, a alteração da estrutura acionista), essas empresas (e, muitas vezes – diretamente – os seus responsáveis) ficaram numa situação financeira extremamente difícil. Evidentemente, estes beneficiários dificilmente repetirão o erro, evitando investir tempo e dinheiro num projeto sujeito a decisões arbitrárias e formalistas.
Dito isto, não creio que a solução para, pelo menos, mitigar este problema passe por uma revisão do Código dos Contratos Públicos (CCP) e legislação conexa.
Pese embora o CCP possa ser destinatário de críticas cirúrgicas, trata-se de um Código completo, bem elaborado, que espelha corretamente o espírito da génese comunitária que lhe subjaz e, além do mais, tem sido revisto no sentido de conferir alguma flexibilidade às regras e formalismos que, como é evidente, devem pautar os procedimentos pré-contratuais de contratação pública. Exemplos paradigmáticos, entre outros, são as denominadas medidas especiais de contratação pública e a simplificação de procedimentos administrativos necessários à prossecução de atividades de investigação e desenvolvimento.
Claro que seria sempre possível flexibilizar alguns procedimentos plasmados na lei, tais como o aumento dos limiares do ajuste direto e da consulta prévia e, até, com muita cautela, a eliminação de algumas fases dos concursos (a legislação comunitária dá essa margem).
Porém, não creio que esse tipo de revisão tivesse o condão de superar aquele que é, a meu ver, um problema endémico da nossa Administração Pública: a ineficiência. E, ao contrário do que parece ser a opinião dos nossos decisores públicos, esta ineficiência não se corrige, na sua maioria, por uma alteração legislativa e procedimental, mas, desde logo, pela integração na Administração Pública de quadros que realmente saibam aplicar a lei, estimar as necessidades e que, principalmente, disponham de tempo para se dedicar à gestão dos investimentos e do erário público.
Ou seja, a reestruturação deve ser orgânica e não meramente legal. Deve olhar-se, com pragmatismo e sentido de urgência, para a composição e funcionamento dos órgãos que integram as entidades responsáveis pela execução do PRR — desde os organismos intermédios, com responsabilidades na análise e gestão de candidaturas, até às Autoridades de Gestão dos diversos financiamentos, que têm revelado uma preocupante lentidão na tomada de decisão e uma escassa propensão para decisões efetivas e justas, passando pelo próprio Estado, em sentido lato, quando atua como beneficiário final deste tipo de financiamentos e assume a responsabilidade pela execução direta dos montantes atribuídos.
Enquanto persistirem estruturas cronicamente subdimensionadas, com profissionais sobrecarregados ou sem o perfil adequado para o desempenho daquelas funções, e rotinas marcadas pela urgência, sem qualquer especialização, qualquer reforma corre o risco de ser apenas mais um remendo — tecnicamente bem-intencionado, mas incapaz de produzir mudanças reais no terreno.
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