Lisboa, autenticidade e o valor do seu património insubstituível

  • Sancha D'Oriol Trindade
  • 11 Julho 2025

Nos últimos anos, Lisboa tem sido palco de uma verdadeira crise no seu património comercial, com o encerramento de várias lojas históricas. Agora, a ameaça de fecho da Ginjinha Sem Rival, no Rossio

Nos últimos anos, Lisboa tem sido palco de uma verdadeira crise no seu património comercial, com o encerramento de várias lojas históricas que, há décadas, fazem parte do imaginário colectivo da cidade. Com a ameaça de fecho da Ginjinha Sem Rival, no Rossio, e depois do ano fatídico de 2023, em que 16 estabelecimentos emblemáticos fecharam portas — um recorde negativo sem precedentes nas últimas três décadas — o fenómeno levanta questões urgentes: que factores estão a ditar o desaparecimento destas lojas? E, mais importante ainda, o que pode ser feito para travar esta perda?

É fundamental perceber que o fecho destas lojas vai muito além de uma simples mudança nos hábitos de consumo. É certo que os negócios têm ciclos de vida e que algumas lojas encerram por motivos naturais, como a falta de sucessão familiar ou dificuldades financeiras. No entanto, o número crescente de encerramentos aponta para causas estruturais mais profundas, que extravasam as dinâmicas normais do mercado. E a tendência recente é particularmente preocupante: depois de um pico negativo em 2018, com 13 lojas encerradas, os números voltaram a disparar em 2023. No início do século, houve mesmo anos sem qualquer fecho de lojas históricas — o contraste é revelador. Ao todo, entre 2000 e 2023, 82 lojas históricas encerraram portas em Lisboa — um número que devia preocupar qualquer cidadão ou responsável político.

Entre os factores mais evidentes estão o aumento brutal das rendas no centro da cidade, a pressão de um turismo massificado e a ausência de uma regulamentação eficaz que proteja os estabelecimentos com valor histórico e cultural. A lógica do mercado, por si só, não pode determinar o destino de espaços que carregam consigo um património imaterial de valor incalculável. Estas lojas não são meros pontos de venda — são marcos identitários, estandartes vivos da memória da cidade e elementos relevantes do ADN de Lisboa.

O programa “Lojas com História” (LCH), criado pela Câmara Municipal de Lisboa, é uma iniciativa louvável, mas revelou-se claramente insuficiente. Reconhecer o valor de uma loja com uma distinção simbólica é um primeiro passo, mas está longe de bastar. É preciso mais: apoios financeiros robustos, incentivos fiscais adequados e mecanismos legais que garantam a continuidade destas actividades. Em casos de risco iminente, o próprio município deveria ter margem para intervir directamente — seja através da compra ou mesmo da expropriação dos espaços mais simbólicos. A Câmara de Paris, por exemplo, chega a comprar lojas históricas para as preservar — e pergunto-me: não poderíamos fazer o mesmo, eventualmente com o apoio de patrocinadores institucionais? — mas também adquirir espaços de comércio local para garantir a existência de lojas de proximidade que servem os residentes e para apoiar pequenos negócios e oficinas que dificilmente resistiriam à concorrência das grandes cadeias. Essa diversidade comercial é uma das grandes riquezas da cidade — contribui para o seu carácter único, convida-nos a explorar os seus bairros a pé e cria uma dinâmica urbana viva, que alimenta o próprio sucesso do comércio tradicional. É uma riqueza que se espalha de forma mais distribuída pela economia. Claro que, para que tudo isto funcione, é essencial ter pessoas a viver nos bairros e ruas agradáveis de andar, que acolhem esse comércio — e que o espaço público lhes proporcione boas condições para circular, permanecer e viver.

A 22 de Novembro de 2024, a Câmara Municipal de Lisboa confirmou que o regulamento do programa “Lojas com História” passaria a ser alterado com o objectivo de evitar o encerramento de lojas emblemáticas que não fazem parte do programa. Estas alterações foram integradas na proposta de orçamento municipal para 2025. Trata-se de um passo relevante, e estaremos cá para observar se foi suficiente para dar resposta a uma crise que exige medidas estruturais — mas, sobretudo, duradouras.

Além disso, Portugal, enquanto país, precisa de reconhecer que a perda destas lojas históricas fere não só o tecido social e cultural das suas cidades, mas também a própria economia, a estratégia de turismo e a criação de emprego. Uma cidade que perde a sua autenticidade corre o risco de se tornar apenas mais uma paragem genérica num roteiro turístico globalizado. A médio e longo prazo, isso mina a atractividade do destino e reduz drasticamente o valor económico que um turismo sustentável poderia gerar.

Como cliente fiel da Luvaria Ulisses, aproveito para partilhar um exemplo pessoal. Já comprei todas as cores disponíveis do seu tradicional stock de luvas. Não porque precise de tantas luvas, mas porque preciso da loja. A cada visita, faço questão de voltar — não apenas como consumidora, mas como alguém que acredita na importância de manter viva uma parte da alma de Lisboa. É um gesto simbólico, mas também um acto de resistência.

É igualmente urgente combater os efeitos da gentrificação e da proliferação de negócios dirigidos exclusivamente a turistas, como lojas de recordações genéricas que descaracterizam bairros inteiros. A aplicação de critérios mais exigentes na atribuição de licenças comerciais é um passo essencial para preservar a diversidade e a autenticidade do comércio tradicional.

Mas a responsabilidade não é apenas das autoridades. Os próprios lojistas têm um papel decisivo. Manter uma loja histórica aberta em pleno século XXI exige adaptação: formação em gestão e marketing, modernização de infraestruturas, melhoria no atendimento, entre outras medidas. A criação de redes de colaboração entre lojistas — como associações ou clusters — pode permitir estratégias conjuntas de promoção e apoio mútuo.

Por fim, cabe ao poder público assegurar que as regras de protecção do património não fiquem apenas no papel ou em vídeos de Instagram. Proibir intervenções que descaracterizem espaços históricos, criar fundos específicos para obras de conservação e acompanhar de perto as necessidades destes estabelecimentos são medidas cruciais.

Lisboa não pode continuar a perder as suas lojas históricas a este ritmo. E Portugal não pode fechar os olhos a este problema sem reconhecer o impacto profundo que isso tem na sua cultura, economia e imagem internacional. Salvar uma loja histórica é salvar muito mais do que um negócio — é preservar a alma de uma cidade, a memória de um povo e o futuro de um país.

  • Sancha D'Oriol Trindade
  • Fundadora da Curated Investments

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