Liberdade para transformar terrenos rústicos em urbanos divide autarcas
Decisão do Governo de dar às autarquias o poder para criar novos solos urbanos recebe críticas do interior do país. Para quem está perto das maiores cidades, a proposta tem potencial.
A nova lei de uso dos solos conhecida nesta segunda-feira e que entrega aos municípios e às assembleias municipais o poder de decisão para converter terrenos rústicos em urbanos, não colhe os elogios generalizados dos presidentes de câmara, como se poderia pensar à partida.
Falando aos jornalistas esta terça-feira, à saída de uma reunião do conselho diretivo da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), a presidente da entidade foi cautelosa nos comentários à medida aprovada pelo Governo em Conselho de Ministros. Citada pela Lusa, Luísa Salgueiro manifestou “preocupações no sentido de garantir a total transparência e escrutínio. Não queremos que com este processo seja atribuído qualquer tipo de discricionariedade, porque o que está em causa é alterar regras que estão vertidas em PDM [Plano Diretor Municipal], com pareceres de muitas entidades, a que as câmaras municipais estão vinculadas e, para que isso seja alterado, tem de haver muito rigor”.
Um dos pontos para a presidente da ANMP é a alteração praticamente automática por parte dos autarcas, com validação da respetiva assembleia municipal. “Na aprovação dos PDM é obrigatório aceitar as propostas e decisões das comissões de coordenação de desenvolvimento regional, que incorporam designadamente as reservas agrícolas e reservas ecológicas, o ICNF, a Agência Portuguesa de Ambiente. São muitas entidades que se pronunciam e que vinculam os PDM”, afirmou à imprensa a também presidente do município de Matosinhos.
De facto, a grande mudança ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) é a excecionalidade de reclassificação do uso dos solos para urbano, de modo a criar novos projetos de habitação a custos acessíveis à classe média. Ficam, contudo, salvaguardados “valores de interesse público relevantes em termos ambientais, patrimoniais, económicos e sociais”, lê-se no projeto do Decreto-Lei a que o ECO teve acesso.
Às portas da Área Metropolitana de Lisboa (AML), da qual é vizinha através da fronteira com Vila Franca de Xira, Alenquer vê potencial para alargar a oferta habitacional num território onde o centro urbano e as aldeias marcadamente rurais se separam por menos de 15 minutos de deslocação de automóvel.
O processo exige sinergias, assegura ao ECO/Local Online o vice-presidente de uma das autarquias que tem sentido o aumento da pressão habitacional, por força da deslocação de pessoas da AML. “Mesmo que seja o promotor particular a identificar a oportunidade, se não tiver aprovação da câmara, não avança. Pode ser a câmara a procurar o privado, ou o contrário”, realça Tiago Pedro, que teve acesso prévio à medida decidida pelo Governo. Aludindo à capacidade de os privados serem proativos na pesquisa de terrenos rústicos com potencial urbano, o autarca antevê que “haverá alguns construtores mais literados que vão contactar” o município.
Não é segregação social, o que é ótimo, havendo integração de pessoas com menor capacidade e com capacidade média de aceder ao mercado. Não acredito em modelo de bairros sociais.
Noutro ponto do país sujeito a pressão urbanística, o Algarve, o presidente da Câmara Municipal de Portimão, Álvaro Bila, também vê pontos positivos. “Pelo que me foi dado a conhecer até agora, acho que esta medida tem potencial para ser positiva, desde que siga as novas regras de planeamento urbanístico e tenha uma forte preocupação com a sustentabilidade. Pode ser uma forma de criar habitação a preços mais acessíveis em algumas zonas do município, algo que faz muita falta, especialmente em áreas turísticas como Portimão, onde a pressão sobre os terrenos é enorme.”
Por seu lado, o vice-presidente de Alenquer considera que este “modelo misto de PPP [parceira público-privada] tem muita coisa vantajosa. Não é segregação social, o que é ótimo, havendo integração de pessoas com menor capacidade e com capacidade média de aceder ao mercado. Não acredito em modelo de bairros sociais”, destaca, num elogio às primeiras características já conhecidas da nova legislação. Neste concelho com características mistas, entre urbano e rural, a procura imobiliária no pós-COVID cresceu até um ponto criador de “efeito nefasto” na disponibilidade de habitação para arrendamento. “O mercado imobiliário, que estava em crescendo, acelerou muito, ficando em termos médios mais inacessível”, conta Tiago Pedro.
Assim, o vice-presidente da Câmara de Alenquer encontra alguns benefícios na intenção do Governo em agilizar o licenciamento de novos empreendimentos em zonas atualmente não urbanas, dispensando-se o parecer de outras entidades governamentais. “Pode ter interesse em câmaras municipais com território heterogéneo, nas primeiras aglomerações em espaço rústico, alargando o polígono urbano e tirando pessoas dos centros urbanos”. No caso deste município, existem várias povoações às portas da sede do concelho onde pode ser aplicado. “Temos pressão muito grande da classe média e média-baixa, com dificuldade em aceder à habitação”, reconhece.
Autarcas do interior menos entusiastas
João Grilo, presidente da Câmara de Alandroal, admite que este instrumento criado ao abrigo do programa governamental Construir Portugal “coloca pressão nos municípios”. Estes “terão de estar tecnicamente fundamentados ou munir-se de empresas, para garantir que não estão a entrar em incumprimento ao autorizar soluções deste tipo”, indica o socialista.
O autarca levanta desde logo uma preocupação com esta decisão do Governo. Admitindo que em alguns pontos de Portugal onde existe pressão urbanística possa fazer sentido, aponta para nova orientação dos cidadãos para o litoral. “Se calhar, vai levar a construir onde hoje já é difícil e onde há mais dificuldade de infraestruturas e equipamentos públicos”.
Figueira de Castelo Rodrigo já tem o preço por metro quadrado mais barato do país. Para aqui, estas medidas servem de pouco. Podem é prejudicar-nos ainda mais.
A mesma crítica é apontada pelo autarca de Figueira Castelo Rodrigo. Carlos Condesso diz que a medida “vem, basicamente, beneficiar as grandes e médias cidades. Nos territórios de muita baixa densidade, como são estes, o preço do m2 já é barato. Continuamos a litoralizar o país. Lá vamos bater no problema da falta de políticas públicas arrojadas para inverter esta tendência demográfica”.
“Compreendo esta medida por parte do Governo. Tal é a litoralização do país, que é obrigado a criar estas medidas para baixar custos com habitação”, aponta o social-democrata Carlos Condesso, embora considere que “a melhor forma de ajudar o litoral é desenvolver o interior. É haver equilíbrio. Figueira de Castelo Rodrigo já tem o preço por metro quadrado mais barato do país. Para aqui, estas medidas servem de pouco. Podem é prejudicar-nos ainda mais”.
O autarca de Alandroal também fala da ausência de resposta para os problemas dos territórios do interior. “No meu território, acho difícil que agilize alguma coisa, porque não é falta de terreno em perímetro urbano que torna impeditivo, é o custo da construção. No Alandroal, tenho áreas reservadas para loteamento, estou a vender lotes de 200 metros a 5000 euros em venda direta. Alguns não se vendem porque há as outras condicionantes. Agora vou vender 600 m2 por 20 mil euros. Acabámos de fazer a revisão do PDM, temos dentro do perímetro urbano 30 a 40% de espaço urbano não construído. O fator decisivo nos territórios de baixa densidade é o custo da construção, que impede que jovens ou pessoas com menos recursos tenham capacidade para construir”.
Perante as incógnitas ainda relativas à nova lei, João Grilo nota que já hoje é possível, através do lançamento de uma unidade de execução, criar um projeto especial em perímetro não urbano.
É importante garantir que haja um bom acompanhamento para evitar abusos ou especulação. Estes processos têm de ser o mais transparente possível, disponíveis para serem consultados e, se se justificar, alvo de discussão pública, porque no final, o objetivo tem de ser equilibrar a necessidade de mais habitação com a nossa qualidade de vida.
Adicionalmente, o autarca de Alandroal alerta para o perigo de se permitir jogos de interesse menos claros, ao deixar, como indica o Governo, que sejam as câmaras e as assembleias municipais a decidir, sozinhas, pela criação de novos projetos urbanos. “Sou autarca, mas não acredito em mecanismos sem controlo por entidades superiores, os checks and balances dos americanos. Não há ninguém sozinho, com liberdade absoluta, que não se deixe influenciar ou deixar levar noutro sentido”.
E, alerta, mesmo que os processos se desenvolvam com lisura, há que garantir que no longo prazo os fogos comercializados a preços adaptados à classe média (os 70% indicados pelo Governo em cada projeto) não acabem por ser comercializados a valor superior “Há algo que garanta que não poderão ser colocados no mercado com preço especulativo?”
Álvaro Bila aponta na mesma direção e diz ser “importante garantir que haja um bom acompanhamento para evitar abusos ou especulação”. O autarca de Portimão acentua que “estes processos têm de ser o mais transparente possível, disponíveis para serem consultados e, se se justificar, alvo de discussão pública, porque no final, o objetivo tem de ser equilibrar a necessidade de mais habitação com a nossa qualidade de vida”.
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