
“É preciso coragem para por mulheres à frente dos negócios”
Fomos experimentar o menu de 12 momentos criado pela chef do momento, Marlene Vieira. O Marlene entrou diretamente para o nosso top 3: é fora de série e merece cada estrela que ainda esteja por vir.
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Não foi fácil, mas conseguimos. Nas semanas que se seguiram à atribuição da primeira Estrela Michelin ao Marlene, a agenda de reservas do restaurante da chef Marlene Vieira – a primeira mulher portuguesa a receber a estrela do Guia francês em mais de 30 anos – estava mais cheia que as urgências hospitalares no pico do Inverno. Conseguir uma reserva ao balcão, para ver trabalhar (e conversar com) a chef de quem se fala, foi uma enorme sorte. O mediatismo é tanto que as reservas dispararam e preencheram a agenda até ao Verão. “Temos sido muito mimados”, diz a chef, do lado de lá do balcão, confessando, com a sua pronúncia do norte, que a estrela era muito desejada. “Foi algo que fui adiando ao longo do tempo por outras prioridades, mas que estava sempre ali, como um objetivo que nunca perdi de vista”.
A abertura do Marlene, em 2022, foi o cumprir de um sonho que levou tempo a construir. “Eu sabia exatamente o que queria. Precisava de um espaço amplo e elegante, com bom ambiente, onde pudesse escolher materiais de qualidade, que mostrassem a cultura portuguesa. Precisava de tempo para selecionar a equipa certa. Mas sobretudo precisava de juntar recursos. Eu e o João [o marido, João Sá, proprietário do SÁLA, também galardoado, em 2024, com uma Estrela Michelin] fomos gerindo a nossa empresa, fomos criando prioridades para termos uma base sólida financeira para avançar”.
O esforço compensa e o Marlene nasceu. O espaço de fine dining – que, para já, só serve jantares, de terça a sábado – fica no Terminal de Cruzeiros de Lisboa, mesmo em frente ao Tejo. Mas, ao contrário do que se possa esperar, o rio não tem aqui o protagonismo. O restaurante, de paredes negras que vão do teto até meio-metro do chão, está mergulhado numa semi-penumbra e os holofores estão voltados para os atores principais deste bailado cronometrado que decorre na ilha central da cozinha, no meio da sala. Um balcão em nogueira rodeia a cozinha aberta, como um palco, onde os comensais sentados à volta conseguem acompanhar a azáfama dos cozinheiros, entre pinças, facas, bisnagas e tenazes. Mais atrás, as mesas, também em nogueira, com suaves focos de luz para quem prefere um jantar mais intimista.
“Não é bem como se fosse a minha casa, porque eu separo muito bem o que é trabalho e o que é casa, mas o Marlene é como se fosse a sala onde eu gosto de receber as pessoas. Tinha que combinar comigo, com a minha maneira de ser, descontraída. Tinha de ter uma cozinha central, para poder estar conectada com as pessoas, com tudo exposto, como se fosse uma galeria. E tinha de refletir também o talento e a cultura portuguesa. Ser uma montra do que de tão bom se faz por cá, desde a arquitetura [desenvolvida pelo estúdio português ForStudio Architects], passando pelas madeiras e pelas cerâmicas, tudo materiais artesanais, que fazem parte da experiência sensorial que damos aos clientes. E acho que isso marca aqui a excelência”, frisa a chef no momento em que chega a nossa oshibori húmida para lavarmos as mãos e darmos o tiro de partida do menu de 12 momentos que vamos provar em seguida.
‘Huumm’ vezes 12
O primeiro momento deu o mote para o resto da noite. O choux de trufa e creme de queijo da serra da Estrela curado foi logo uma explosão de sabores e cremosidade, a fundir-se com a crocância, a desfazer-se na boca. Algures durante a nossa conversa, a chef referiu que para si, o mais importante era escutar as reações dos clientes. “Ouvir aquele ‘huumm’ que fazemos quando gostamos”, explicou. E, no nosso caso, prova superada: acabávamos de pronunciar o primeiro de vários ‘huumms’ da refeição.
Os elementos típicos da mesa portuguesa – onde, de acordo com a chef, “não faltam marisco, presunto e patés, mas com um twist, feitos à nossa maneira” –, continuaram a chegar à mesa. Seguiu-se uma espécie de presunto de atum, ou seja, uma fatia de barriga de atum rabilho, seca, curada e fumada, envolta num crocante de arroz tufado, acompanhada de um original gaspacho clarificado – que é um caldo fresco e incolor onde prevalecem os sabores e aromas do gaspacho tradicional. Nova interjeição de prazer, a anteceder a chegada dos dois snacks que constituem o terceiro momento: a estaladiça estrela do mar crocante de cenoura com recheio de ovas e carne de sapateira, creme de abacate e wasabi; e a deliciosa tartelete de couve-flor com gamba vermelha do Algarve, creme de camarão e caviar imperial. Impossível decidir qual deles o melhor. Os sabores. As texturas. O equilíbrio. Tudo a ligar na perfeição com a seleção de vinhos que ia acompanhando cada momento. Frescos, minerais, secos ou com mais doçura, consoante a iguaria.
A Estrela Michelin tem menos de um mês, mas Marlene Vieira confirma que o efeito já se faz sentir na agenda. “Temos mais procura internacional. Chegam-nos pessoas que vêm cá propositadamente, que acompanharam o nosso percurso e depois da Estrela quiseram cá vir prestar homenagem”. O casal de meia-idade que se senta ao nosso lado confirma. Vêm da Bélgica e contam que, depois de lerem um artigo, há uns meses, numa publicação do género da Fora de Série que dizia que Marlene seria a próxima chef-estrela de Portugal, decidiram que tinham de a vir conhecer. O storytelling envolvido deu ainda mais força à história. Uma mulher num mundo onde brilham os homens, onde as mulheres se encolhem na sombra dos chefs. Porque demorou tanto a Estrela a chegar a uma mulher portuguesa? Marlene lamenta que, infelizmente, o mundo da cozinha portuguesa ainda seja muito patriarcal. “Temos de mudar o chip das pessoas que investem neste segmento, que muitas vezes querem retorno rápido e acham que os homens – que são mais mediáticos – entregam mais e que o feminino não dá tantas garantias. Isso acontece porque o mundo não deixa as mulheres brilharem. É preciso ter coragem para por mulheres à frente dos negócios. Ainda há um grande caminho a percorrer nesta matéria”.
Entretanto, sobre a mesa, coloca outra ode à perfeição: um Chawanmushi de presunto, que é um pudim salgado japonês com uma glace de tomate, com ervilhas-lágrima e um óleo de alho-francês, diferente de tudo o que já provámos, com as ervilhas a provocarem sensações estaladiças no palato. Terminados os snacks de entrada, chega então o couvert típico português, com pão de massa de fermentação lenta, broa de milho branco, manteiga da ilha do Pico e um azeite biológico da zona de Mirandela. Uma espécie de pausa dramática que antecede a chegada dos pratos principais. Deste primeiro mergulho no ADN gastronómico da chef, destacamos a suavidade das texturas, que são sem dúvida o seu grande talento. E que, segundo a própria, tem uma explicação muito simples. “Costumo dizer que sou tinhosa com as texturas. Sou muito exigente em relação às coisas estarem no ponto certo: o ponto da carne, do peixe, do arroz. Fui sempre assim… Se tiver grumos, se estiver muito líquido, já não gosto. Por isso tenho muita dificuldade em comer arroz fora de casa”, confessa a chef, cujo prato favorito da vida é Arroz de Cabidela. “É um prato que até em criança comia sem esforço e onde ainda hoje vou buscar inspiração, pela sua simplicidade. É um prato perfeito e tão simples na composição e na construção. No fundo eu procuro esse prazer que tinha em criança. Foi isso que me puxou para a cozinha”, revela.
Rainha das texturas
Longe vão os tempos em que, ainda criança, fazia entregas de carne do talho do pai, aos restaurantes da Maia. Um, em específico, despertou-lhe a curiosidade. Era diferente de tudo o que conhecia, praticava cozinha francesa. Daí a um estágio nas férias de verão, foi um passo. “O que me apaixonou ali foram os cheiros, as técnicas. Era tudo diferente do que eu via em casa”, conta. Terá sido aí que lançou as bases da chef que é hoje, rigorosa, sem margem para erros técnicos, dona de uma cozinha surpreendente e impactante. Aos 16 anos apostou na sua formação, na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira. Em 2001, dias depois do 11 de Setembro, rumaria a Nova Iorque, onde alargou os seus horizontes gastronómicos. De volta a Portugal, passou por vários hotéis e restaurantes, até chegar, em 2012, ao Avenue, restaurante que a marcou. “Porque já na altura trabalhávamos neste nível de exigência. Os tempos eram diferentes e as estrelas não tinham muito impacto cá. Mas o Avenue foi restaurante para ter Estrela Michelin. Acabou por fechar ao fim de três anos, na altura em que fui mãe”, conta.
Para a mesa, ainda estariam por vir alguns dos pratos mais show-stopper da chef. O Escabeche desconstruído com lírio dos Açores; a abrir espaço para outro dos nossos preferidos do menu, as cocochas de bacalhau (que são as queixadas, junto à boca), cozinhadas em azeite e alho e servidas com um molho muito guloso e três diferentes texturas de alho: puré de alho negro, folha de alho selvagem e flor de alho; a ganhar fôlego ainda para os aveludados cogumelos morilles recheados com avelã. Isto antes de chegar a Feijoada de Lula – que é, segundo Marlene Vieira, o ex-libris que não pode sair da carta, “o nosso maior cartão-de-visita –, que se inspira na feijoada de choco de Setúbal, mas que é feita com a lula gigante dos Açores cortada finamente como um tagliatelle, com o feijão em puré, tudo regado com um aromático caldo feito com a gordura do chouriço preto alentejano. À prova de inspetor Michelin.
Por falar nisso, não queremos deixar de perguntar à chef o que acha que falta a Portugal para ter um restaurante com três estrelas? “Não sei exatamente. Percebo que haja desilusão, se pensarmos que a Áustria, este ano, ganhou 53 estrelas de uma assentada. E alguns logo com três estrelas, à primeira. O que é que isto diz? Diz que nós temos uma cozinha tradicional muito boa e a verdade é que não precisamos das estrelas para nos afirmarmos. A estrela está num certo segmento de luxo, de excelência, de qualidade, não vamos aqui ser hipócritas. O luxo está nos produtos. Portugal nunca foi um país de luxo e exuberância gastronómica. Só de há dez anos para cá é que estamos a desenvolver esta arte. O que é bom para nós, mas é um caminho”.
Continua o bailado na cozinha e as surpresas a chegar à mesa. O incrível Salmonete do Algarve grelhado com sal com um molho de cabeças e fígados do peixe. Por baixo, uma cama de arroz de algas e tudo polvilhado com yuzu desidratado. Um prato com muita personalidade, sabor e autenticidade nos ingredientes. E, claro, um arroz perfeito, al-dente. Segue-se a surpreendente Cebola recheada com puré de castanha com enguia grelhada e mandioca frita, num delicado balanço de texturas que ligam com o travo adocicado-caramelizado da cebola. Antes de chegarmos ao último prato, trazem-nos um estojo de facas artesanais, desenhadas por Paulo Tuna, um artista das Caldas da Rainha, para escolhermos a nossa. Está para chegar o único prato de carne do menu, um Wagyu beef grelhado com couve kimchi ligeiramente picante, alho negro e um ultra-cremoso puré de topinambur. O ponto da carne? Obviamente perfeito.
A azáfama da cozinha está a acalmar. Arrumam-se os tachos, limpam-se os balcões com a sensação de dever cumprido. Preparam-se as sobremesas. Ou melhor, a pré-sobremesa limpa-palato e a sobremesa propriamente dita. A primeira, uma fresca combinação de texturas de framboesa – em crumble, em gel e cristalizada – acompanhada de um gelado de pimenta rosa e pétalas de rosa. Terminamos em beleza, com uma gulosa esfera de chocolate com ganache e chocolate líquido por dentro, avelãs panizadas em cacau, gelado de avelã e mousse de kirsh. No topo, a cereja: uma colher de chá de caviar, para dar o travo salgado no bouquet de sabores. Tudo tão genial que nos sobra a pergunta: como é que esta estrela só chegou agora? Pedimos à chef que deixe um conselho a outras chefs que trilham o mesmo caminho em direção à glória. “Sejam persistentes. Não se deixem cair por terra aos primeiros desafios, porque eles vão existir sempre. Ignorem o ruído à volta, confiem no que sabem, no que conhecem. Se acreditarem, vai acontecer. Mais cedo que tarde”.
Marlene
Avenida Infante D. Henrique, Doca do Jardim do Tabaco, Terminal de Cruzeiros
Lisboa
De terça a sábado, das 19h30 às 23h30
Reservas: [email protected] ou 912 626 761
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