Perdido na descentralização? Governo faz contas às 20 competências para as autarquias

Saúde, área social, património imobiliário público e vias de comunicação entre as competências com menor adesão por parte dos municípios. Confira o ponto de situação na descentralização autárquica.

Muitos autarcas continuam a resistir ao processo de descentralização de competências, principalmente na área da educação. É o caso do presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, que discorda do envelope financeiro atribuído e já avançou para a desvinculação da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), que faz a ponte com o Governo. Uma reforma do Estado que tem feito correr muita tinta e que tem estado envolta em polémica um pouco por todo o país.

Apesar de educação, saúde e ação social estarem sob os holofotes do meio político, com vários reparos e desentendimentos, na realidade há mais áreas no âmbito deste processo de transferência de competências, num total de 20 — e que, até à data, não foram alvo de grande contestação. Entre elas estão a cultura, as áreas portuárias, proteção civil, habitação, justiça ou vias de comunicação.

Em entrevista ao ECO, a presidente da ANMP, Luísa Salgueiro, referiu que esta é “uma reforma administrativa de que o país precisa” e que se vai traduzir no “exercício do poder mais próximo das populações”. Numa nota explicativa do Orçamento de Estado (OE) para 2022, o Ministério da Coesão Territorial refere que “o Governo pretende uma melhor qualidade dos serviços prestados aos cidadãos” através da implementação de “uma governação de proximidade baseada no princípio da subsidiariedade”.

A dotação do Fundo de Financiamento da Descentralização, de abril a dezembro de 2022, ronda os 832 milhões de euros para a saúde, educação, ação social e cultura. No entanto, deste bolo, 718 milhões de euros são para a educação — aquela área que tem gerado mais contestação da parte dos autarcas, com fatias menores para a saúde (cerca de 70 milhões de euros), para a ação social (42 milhões de euros) e para a cultura (890 mil euros).

A implementação no terreno da descentralização de competências está a demorar mais do que era esperado, com a ANMP a liderar o processo de negociação com o Governo. É na transferência de competências na área da saúde que há uma menor adesão. Até 26 de abril, segundo as contas do Governo, apenas 23 em 201 municípios (11% do total) exercia já esta competência.

Só que, no caso da saúde, a transferência “depende da assinatura de um auto de transferência bilateral, pelo que só a partir desse momento o município passa a estar habilitado para o pleno exercício de tais competências”, justifica o Ministério. Luísa Salgueiro, presidente da ANMP, já tinha alertado ao ECO que, “enquanto as câmaras não assinarem o auto, não há transferência — e cada uma está a negociar individualmente”. O Governo contabilizou, assim, 23 autos de transferência celebrados até 26 de abril deste ano, prevendo a assinatura de mais 29 durante o mês de maio.

Transferência da ação social até 1 de janeiro de 2023

No caso da ação social, o prazo de assunção das competências pelos municípios foi prorrogado até 1 de janeiro de 2023. “Logo, as câmaras ainda estão quase todas a negociar, embora a de Matosinhos já tenha aceitado e esteja a funcionar”, referiu Luísa Salgueiro na mesma entrevista. O município nortenho faz, assim, parte do rol de 52 municípios (em 81 para os quais a competência foi transferida) que, a 26 de abril, já exerciam no terreno as tarefas na área social, representando 19% do total. O Governo prevê que “até ao final do ano de 2022 mais 29 municípios exerçam, e em 1 de janeiro de 2023 o processo fique concluído com os restantes 196”.

O Presidente da República já advertiu que quer que as autarquias cheguem a acordo o mais depressa possível em matéria social da descentralização para que o processo seja posto em prática até ao final deste ano em todo o país. “Estamos em contrarrelógio, porque houve uma parte da descentralização que ficou para mais tarde, que respeitava a matérias sociais. E é importante haver o acordo, envolvendo as autarquias locais, para que esse processo descentralizador, completo, tenha sucesso”, referiu esta semana.

Também a presidente da ANMP reconhece que é “pouco representativo” o número de municípios que já aderiram à transferência de competências nas áreas da saúde e ação social. E foi logo sustentando que “importa consolidar o processo e dar condições ao nível de recursos humanos, financeiros e materiais, ou seja, os próprios equipamentos e instalações” para que “o pleno das autarquias possa aderir”.

Ponto da situação do Governo a 26 de abril de 2022

 

No que toca à competência da educação, o Governo contabilizou 278 municípios. Mas, na prática, esta transferência foi automática a partir de 1 de abril deste ano. Como tal, e apesar das contestações, os presidentes de Câmara viram-se obrigados a assumir esta competência.

O Governo contabilizou ainda uma adesão plena de 278 municípios no que concerne a áreas como a proteção civil, o policiamento de proximidade, a segurança contra incêndios em edifícios, o estacionamento público, modalidades afins de jogos de fortuna e azar.

No caso da habitação, a totalidade dos 278 municípios aderiu à criação de programas de apoio ao arrendamento urbano e à reabilitação urbana. Em contraponto, nenhum aderiu à transferência da gestão de programas de apoio ao arrendamento urbano e à reabilitação urbana.

“Na habitação — em concreto na competência de transferência da gestão de programas de apoio ao arrendamento urbano e à reabilitação urbana –, os diplomas legais de enquadramento de cada um dos programas estabelecem os termos em que a respetiva gestão é exercida pelos órgãos municipais, incluindo os recursos financeiros necessários a essa gestão e são submetidos a parecer prévio da ANMP”, esclarece o Ministério na mesma nota explicativa. O Governo justifica ainda que “a competência de transferência da propriedade e gestão de imóveis de habitação social está dependente da constituição de uma comissão de análise em 10 municípios que podem exercer esta competência”.

Já no que concerne ao património imobiliário público, a Direção Geral de Tesouraria e Finanças (DGTF) identificou imóveis em 177 municípios“. Deste universo, apenas 13, ou seja, 7%, exerciam competências a 26 de abril. “Esta área de competência concretiza-se mediante acordo de transferência entre a Infraestruturas de Portugal (IP) e os municípios”, explica a tutela.

Na cultura, a adesão é de 100% na questão do licenciamento de espetáculos de natureza artística. Já o mesmo não se pode dizer no que toca à gestão, valorização e conservação dos imóveis classificados de âmbito local e de museus não nacionais, num universo de 77 municípios. “À data foram celebrados 40 autos por 36 municípios”, lê-se na mesma nota explicativa, argumentando com o facto de que “a cultura é uma competência de exercício voluntário“.

Ponto da situação do Governo a 26 de abril de 2022

 

O Ministério não apresenta, contudo, dados sobre a área dos transportes em vias navegáveis, justificando com o facto de “carecer de operacionalização por parte da APA”. “Até ao momento há matéria que está a ser objeto de análise no âmbito do Grupo de Trabalho de Acompanhamento da Animação Turística”, completa.

Ajustamento de valores à inflação

Nesta nota, o Ministério da Coesão Territorial dá conta de que “está previsto (artigo 82.º) um mecanismo de atualização e ajustamento, ao longo do ano, dos valores previstos para a descentralização, considerando a instabilidade e a inflação verificadas e as despesas realizadas”. A aplicação deste artigo foi uma reivindicação do vice-presidente da ANMP, Ribau Esteves, durante a audição na comissão de Orçamento e Finanças, na Assembleia da República. “Queremos é que o tal artigo 82, que referencia que, nalguns orçamentos do Ministério, é possível buscar mais, seja operacionalizado financeiramente em razão da necessidade”, exigiu o autarca de Aveiro.

Luísa Salgueiro reivindica mais dinheiro para a descentralização por causa da inflação. Os indicadores que estiveram na base dos cálculos das transferências financeiras para os municípios mudaram e, por isso, defende a socialista, “é imprescindível” revisitar o processo e “voltar a avaliar as condições para que esta transferência não signifique uma fragilização para as autarquias”. Inclusive, fez chegar um caderno reivindicativo a Ana Abrunhosa, que agora conduz este dossiê herdado da anterior ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão.

A tutela reclama que o processo de descentralização de competências está em curso, “sendo aberto e numa base de diálogo e concertação permanente com os municípios e freguesias através da ANMP e a ANAFRE, para o qual [precisa] do contributo de todos, sem prescindir de ninguém”. E assegura que “pauta-se pelos princípios da neutralidade financeira (todas as verbas despendidas pela administração central no exercício de competências transferidas acompanhariam essa transferência) e da proximidade (que assegura que os municípios garantem a prossecução de serviços até agora garantidos pela administração central), conduzindo a um maior escrutínio pelos cidadãos e a uma melhoria da qualidade dos serviços prestados”.

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