Espaço Júlia: “Um local que eu adoraria fechar”

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  • 24 Novembro 2022

Em 2011 nasceu a que ficou conhecida como a Convenção de Istambul, um tratado internacional de direitos humanos. Foi ratificada por Portugal em 2013 e entrou em vigor em 2014.

Portugal foi o primeiro membro da União Europeia a aderir a esta convenção, entretanto já ratificada por 32 outros países, e assinada por outros 12 Estados ou entidades supranacionais como a própria União Europeia, em 2017.

Esta convenção abriu portas a que outros, sem ser o estado central, pudessem envolver-se diretamente no combate à violência doméstica. Abriu portas a que nas bases da pirâmide se pudesse começar a trabalhar no terreno, na prática, desde que existisse coragem política.

E porquê coragem política? Essencialmente porque o assunto é complicado e normalmente fica dentro de portas: Violência doméstica. Membros de um lar que se agridem, física ou verbalmente, sem distinção do sexo, idade ou condição social.

É um crime público? Sim. Qualquer pessoa o pode denunciar. Mas na sociedade portuguesa persiste o velho ditado, aqui tão nocivo, do “entre marido e mulher não meter a colher”. É que para além deste chavão popular, em Portugal, “não se mudam mentalidades por decreto” como tão bem costuma dizer o Chefe Dias.

E a convenção de Istambul veio dizer o contrário: Meter a colher, sim. Sempre que assista, ouça ou tome conhecimento. E veio dizer que todos são chamados a combater este flagelo. Todos os governantes, responsáveis políticos – do topo à base da pirâmide – todos os cidadãos.

E até porque os números não param de aumentar.

O espaço Júlia – que nada me daria mais alegria que, um dia, poder fechar pela falta de utilidade, sinal que o flagelo tinha terminado – nasceu em 2015 na Freguesia de Santo António.

Como todos sabem, é um espaço que funciona 365 dias por ano, 24h por dia, no apoio à vítima de violência doméstica, um espaço integrado fruto de um protocolo da Freguesia de Santo António com a PSP e com o Centro Hospitalar de Lisboa Central.

Tem o nome de “Júlia “em homenagem a Júlia D., uma idosa de 77 anos que foi brutalmente assassinada pelo seu companheiro de 40 anos de vida, após uma discussão de pequeno-almoço.

No Espaço Júlia, trabalham 10 agentes da PSP – cinco agentes masculinos e cinco agentes femininos (com formação na área da Violência Doméstica e em Atendimento de Vítimas); o Chefe e formador da PSP na área da Violência Doméstica e três técnicos de Apoio à Vítima da Freguesia de Santo António (com Formação TAV da Comissão de Cidadania e Igualdade de Género)

Este espaço, que vê o número de assistências aumentar assustadoramente, foi fruto de uma ideia da Inês Carrolo, a então responsável pela Intervenção Social da Freguesia, e agora diretora técnica do Espaço Júlia. E conto a história em poucas palavras: Em 2015, a Inês entrou no meu gabinete e falou do assunto e da possibilidade de podermos meter em prática aquilo que só existia em papel.

Subi a rua, fui ao Hospital dos Capuchos explicar a ideia ao Dr. Jorge Penedo, e à Dra. Teresa Sustelo. Um par de horas depois tinha o “SIM” ao espaço solicitado e com a PSP também no barco, muito por culpa do então comandante do comando metropolitano de Lisboa, o Super Intendente Chefe Jorge Mauricio que foi, e é, um entusiasta deste projeto de combate direto a este flagelo. E o resto, como se costuma dizer, é história. Foi o mais fácil: fazer acontecer.

Mas porquê coragem política, como falei atrás? Porque muita gente me avisou para não fazer isto. Que era um assunto do foro pessoal, que era perigoso, que um dos membros do casal ficaria chateado comigo, que ia perder votantes… E então?

Mas afinal se não for para fazer acontecer, porque existem responsáveis políticos? Afinal é para isso que estou como presidente da Freguesia de Santo António. É para isso que os responsáveis políticos são eleitos.

Desculpem a frontalidade, mas neste país cada vez mais do politicamente correto, tudo esbarra sempre na (inexistência da) vontade política. Mas aqui não. Não contem comigo para isso. Aliás como diz a Inês Carrolo, no Espaço Júlia “foi a vontade política que meteu a chave à porta e a abriu.”

A coragem política nem devia ser um assunto. A civilização e a vida em sociedade apresentam desafios e os políticos eleitos estão cá para tomar as decisões que conduzam à resolução desses desafios. Nada mais. É para isso que existem, é para isso que são eleitos. E para fazer mais e melhor pelas suas comunidades. Quer sejam gestores de uma freguesia, de uma cidade, um país. Ou de uma Europa.

Hoje, mais de quatro mil casos depois, e com meia Lisboa a cargo, o Espaço Júlia é sem dúvida uma das decisões mais acertadas que tomei (e voltaria a tomar), mas é também o projeto que só será bom quando não for mais necessário.

Por fim, importa salientar a recente visita do Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, ao Espaço Júlia, para entregar a chave de uma casa de transição onde as vítimas podem permanecer durante algum tempo. Era um ensejo de alguns anos que o Engº Carlos Moedas agora concretiza. Obrigado em nosso nome e de todos os futuros utentes.

Vasco Morgado, Presidente da Junta Freguesia Santo António

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