Cuidado com os fundos europeus
O financiamento da investigação e inovação na Europa vai mudar, mas não se sabe como. Portugal já beneficia destes fundos, mas pode ficar a perder ou a ganhar, conforme mudem as regras.
Para lá dos fundos europeus que os países recebem da União Europeia e gerem como querem, dentro das regras que a Comissão Europeia impõe, há fundos que servem para promover interesses da Europa definidos, programados e geridos a partir de Bruxelas. São os que deveriam funcionar para que a União Europeia (UE) fosse mais competitiva, mais inovadora, mais liderante nas tecnologias do futuro. E embora, como se sabe, não tenham esse sucesso todo e visibilidade, são, ainda assim, muitos milhões que têm impacto. Em particular para quem os recebe. Nos próximos anos estes fundos deverão transformar-se, e isso interessa-nos. Ou deveria interessar.
Por quanto sabe-se pouco, mas é exactamente nesta fase que se deve entrar. Fala-se em alinhar com o grande mantra deste mandato: competitividade. Isto importa a Portugal. A quem faz investigação, mas também à produção industrial. O que vai ser isto, como vai ser gerido, por quem e para quem? É tudo isto que devemos ter no radar, começando por perceber o que está em discussão. E o que nos interessa.
As aspirações da União Europeia em ser líder mundial em investigação e inovação (I&I) são antigas e não têm tido os resultados anunciados. Já houve mesmo um tempo em que a Europa (antes de 2010) acreditava que ia ser “a economia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo”. Era a Agenda de Lisboa. Não aconteceu. E aconteceu ainda menos se compararmos a ambição com a concorrência americana e chinesa. E é assim que chegamos a 2024 e vemos a ambição renovada. Noutras circunstâncias e com outros instrumentos. E é aí que a nossa atenção se deve focar.
Com o contexto global alterado e o Relatório Draghi e transpirar competitividade por todos os lados, crescem os debates na Comissão Europeia sobre a criação de um Fundo Europeu para a Competitividade (ECF, no acrónimo inglês) para o orçamento-quadro de 2028-2034. Apesar de ser ainda apenas uma ideia, ou mesmo uma provocação para gerar discussão sobre esta ou outras opções, o ECF tem sido justificado para consolidar o apoio europeu à investigação, à inovação e aos investimentos estratégicos no próximo período orçamental. Se for adiante, esta proposta, mesmo que alterada, marcará um momento transformador para o financiamento pela União Europeia, na tentativa de liderar, ou pelo menos não ficar para trás, na investigação e inovação (I&I), reforçando simultaneamente a competitividade da Europa, o tema mais caro a este segundo mandato de Úrsula von der Leyen. Segundo a proposta em circulação, seria um fundo único, agregador de muitos milhões e de muitos objetivos, desenhado coerentemente a partir do centro político. Será?
A visão por detrás do ECF
O ECF prevê a fusão dos principais programas da UE, como o Horizonte Europa, o EU4Health e o Fundo de Inovação, numa estrutura unificada com regras simplificadas e um quadro de governação único. Os proponentes argumentam que esta centralização pode resolver o problema da fragmentação da regulamentação e fazer face ao abrandamento do crescimento económico da UE, tal como identificado no relatório Draghi sobre a competitividade europeia. O ECF seguiria um conjunto de regras simplificadas para normalizar os critérios de elegibilidade e racionalizar a participação. Uma agenda política coesa substituiria os mecanismos de financiamento fragmentados que, historicamente, têm atrasado a inovação e o crescimento industrial na UE. Menos fundos dispersos, mais dinheiro concentrado e dirigido a objetivos políticos claros.
A ideia estaria em consonância com as cartas de missão da Presidente Úrsula von der Leyen, que salientou a necessidade de investimentos estratégicos em tecnologias-chave e na inovação para impulsionar as transições económicas verde e digital. No entanto, apesar do seu potencial, a proposta do ECF tem sido objeto de escrutínio crítico devido às complexidades de governação que introduz e à sua estrutura centralizada, que alguns receiam que possa impedir a inovação orientada para o mercado e que possam promover maior domínio de Bruxelas e da Comissão Europeia.
Desafios e preocupações
Especialistas alertaram para o facto de a reorganização necessária para criar o ECF poder ser avassaladora, complicando a governação e limitando a sua eficácia, exatamente o oposto do que se deseja. Esta preocupação foi também partilhada por deputados ao Parlamento Europeu, que questionaram a “lógica económica” subjacente à proposta. Christian Ehler, experiente deputado alemão em política de I&I do partido da presidente da Comissão, manifestou reservas quanto à fusão do financiamento da investigação num quadro mais vasto de competitividade. O eurodeputado sublinhou a importância de manter programas autónomos como o Horizonte Europa para preservar as competências técnicas e evitar a politização. Mas a discussão não está encerrada. Longe disso. Está a começar.
Um novo programa-quadro no horizonte
Neste contexto, as negociações para o próximo Programa-Quadro da UE (PQ10) e o Quadro Financeiro Plurianual estão a complicar-se, prevendo-se que as decisões sejam tomadas em meados de 2025.
Um painel de peritos que aconselha a Comissão em temas de Inovação, liderado pelo ex-ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal, Manuel Heitor, propôs reformas significativas para o PQ10, incluindo um aumento acentuado do financiamento – passando de 93,5 mil milhões de euros para 220 mil milhões de euros (valor pesado sem uma enorme reforma orçamental que a maioria dos Estados membros, sobretudo os contribuintes líquidos, dificilmente aceitarão) – e a criação de conselhos independentes para supervisionar as iniciativas de investigação. Além disso, as principais recomendações incluem: alinhar a política de I&I com as principais agendas estratégicas da UE; orçamentos autónomos para proteger instituições como o Conselho Europeu de Investigação; e simplificar processos administrativos para aumentar a eficiência e atrair o investimento privado.
Embora concordem com a necessidade de simplificação e de uma focalização na competitividade da I&I, as recomendações diferem da suposta ideia da Comissão de abandonar o PQ10 a favor de um mega Fundo Europeu para a Competitividade flexível. Em vez disso, os peritos propõem um PQ mais estruturado, garantindo que a investigação e a inovação permanecem isoladas das pressões políticas de curto prazo. Propõem igualmente a incorporação de inovações de “dupla utilização” (servindo tanto fins civis como militares), a promoção de uma maior cooperação global (incluindo com a China, detalhe nada irrelevante) e a racionalização dos processos administrativos da Comissão nestes concursos.
O que dizem os Comissários
Apesar do entusiasmo inicial e do sentido das diversas conversas apontar na direção de um megafundo agregador, as audições de confirmação dos Comissários-designados revelaram um tom cauteloso. Ou mesmo vazio. Ao contrário da resposta escrita às questões colocadas pelos Deputados europeus antes da sua audição, confirmando os rumores de na Comissão se achar que há demasiados fundos que financiam o mesmo tipo de projetos e que precisamos de menos programas de financiamento, Stéphane Séjourné, Comissário com a execução do ECF no portfólio, apresentou-o na sua audição, como um quadro de apoio à expansão das empresas de base científica e tecnológica e não como uma reestruturação global do financiamento da UE. Um “one stop shop” para este efeito, disse. A ser assim, em vez de um megafundo teríamos um mega portal de acesso a todos os fundos da UE. Útil, mas não transformador.
As discussões sobre o ECF vão continuar prevendo-se a apresentação de propostas formais em meados de 2025. É aqui que a atenção se deve focar.
Uma visão arrojada com incertezas
O caminho para um ECF integrado, e não apenas um portal agregador, reflete os esforços mais amplos para transformar o financiamento da investigação e inovação em benefício da competitividade industrial da UE. No entanto, continuam por resolver questões relacionadas com a governação, a influência política e a viabilidade financeira. À medida que as discussões avançam, será fundamental encontrar um equilíbrio entre inovação, competitividade e inclusividade para que a UE atinja os seus objetivos.
Portugal tem participado cada vez mais nos programas europeus geridos por Bruxelas para financiar a investigação e inovação. Mas continua a ficar atrás do que poderia obter e deveria querer. Se as regras do jogo se alterarem, e é provável que se alterem, seria importante sabermos o que nos interessa e o que nos pode prejudicar. A competitividade da Europa é muito importante, mas não pode ser uma ideia abstrata que apoia concretamente empresas dos grandes países do centro da Europa, reforçando a periferia geográfica, política e económica de outros. E esta não pode ser uma discussão tida apenas por políticos, e menos ainda apenas em Bruxelas. Interessa-nos um fundo que concentre todos os fundos? Queremos mais alinhamento com a agenda política? Temos como aproveitar se houver um reforço orçamental? E com que regras sobre a utilização? Se não tivermos opinião provavelmente acabaremos a não ter dinheiro também.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Cuidado com os fundos europeus
{{ noCommentsLabel }}