“Não há uma bala de prata” entre burocracia e risco de fraude nos fundos europeus

Portugal é pequeno em termos de recursos. Uma das questões no recurso a universidades para analisar candidaturas de fundos é "o conflito de interesses que pode existir", alerta Nelson de Souza.

A necessidade de reduzir a burocracia nos fundos europeus é reconhecida por todos, mas “quando se aligeiram controlos, a segurança diminui, é mesmo assim”, diz o antigo ministro do Planeamento. “Não há uma bala de prata para essa questão”, reconhece Nelson de Souza. O antigo responsável defende que a solução passa pelo modelo anglo-saxónico: “Uma confiança a priori, ex-ante, grande e depois num forte sistema ex-post do controlo que é duro, até no sentido de ser dissuasor de práticas futuras”.

Naquela que é a sua primeira intervenção pública desde que deixou o cargo, Nelson Souza, considera que, neste momento, não faz sentido falar em atrasos na execução dos fundos europeus, apesar de ser essa a tónica que o novo Executivo imprimiu neste dossier desde que entrou em funções.

E revela que a estratégia definida por Portugal, e discutida com a Comissão Europeia, foi “continuar a executar o PT2020 até aos 100%, era arrancar primeiro com PRR e desfasar a entrada em vigor do PT2030”.

” Agora estou à vontade para o dizer, coisa que, politicamente, porventura, não podia ser tão clara”, contou no ECO dos Fundos, o podcast quinzenal do ECO sobre fundos europeus.

O antigo gestor do Compete, do Prime e do PEDIP, administrador do IAPMEI e subdiretor Geral da Indústria, secretário de Estado das PME, do Comércio e dos Serviços e anos mais tarde secretário de Estado do Desenvolvimento e Coesão admite que também está preocupado com os concursos do Plano de Recuperação e Resiliência que ficam desertos e recorda que já tinha alertado que “o que iria obstaculizar o PRR era a capacidade de resposta da engenharia” nacional.

O economista que nasceu em Goa em 1954 e dedicou a sua vida quase toda aos fundos europeus sublinhou ainda a falta de recursos humanos nas equipas que lidam com os fundos. Diz que a solução de usar universidades para ajudar na análise das candidaturas “é boa”, mas “não é estrutural”. É de “recurso, transitória de aumento rápido de capacidade de resposta”.

Mas alerta que “tem problemas”. “Portugal é um país relativamente pequeno também em termos de recursos. Uma das questões que se coloca, muitas vezes, é os conflitos de interesses que podem existir”.

O Executivo está ainda a socorrer-se de inteligência artificial para ajudar a acelerar a análise de candidaturas. Nelson Souza reconhece que “hoje há uma maior disponibilidade de tecnologia que pode substituir com alguma vantagem a intensidade de mão-de-obra da gestão dos fundos“. “Mas isso não dá para compensar a drástica redução dos meios que, neste momento, a gestão dos fundos europeus conta, incluindo o PRR”, alerta.

 

Desde que deixou o cargo de ministro do Planeamento não voltou a ter intervenções públicas. A que se deveu este silêncio tão prolongado?

Foi uma opção minha ter uma sabática porventura prolongada demais. Também houve questões da minha vida pessoal que me obrigaram a prolongar mais do que era devido. Mas entendo que deve existir sempre um certo distanciamento para quem tenha exercido funções de natureza política de relevo para depois, passado algum tempo, ter a capacidade de distanciamento para continuar a dar o contributo, que entender, depois de vencida esta etapa.

Simultaneamente, também deixei de estar no ativo. Neste momento não exerço nenhuma outra atividade profissional.

Esse distanciamento permite-lhe olhar para esta realidade, que foi a sua durante tantos anos, com outros olhos. Quando olha agora para a dinâmica dos fundos europeus, o que é que vê?

Deixe-me confessar-lhe uma coisa. Era um exercício que tentava amiúde fazer, mesmo quando estava do lado de lá da barreira, responsável pela gestão dos fundos aos mais diversos níveis. Tentava, muitas vezes, colocar-me do lado dos utilizadores, dos consultores, dos jornalistas, do lado também das pessoas em geral, que tinham expectativas de uma boa utilização dos fundos.

E, por boa utilização, entenda-se que pudessem ser úteis ao crescimento económico, à melhoria das condições de vida das pessoas. Afinal de contas, contribuir para que todos pudéssemos viver com qualidade, com mais rendimentos e aproximarmo-nos dos padrões europeus.

É esse o grande objetivo.

Dessa reflexão, muitas vezes tirava conclusões, porque era acompanhada sempre por uma permanente auscultação. Ouvir muito os stakeholders, as pessoas. Ambas as coisas permitiram fazer aquilo que sempre tentei: ajustar ou corrigir o tiro, quando muitas das medidas que ajudava a desenhar e desenhava não surtiam efeito.

No meu planeamento era claro como água: a prioridade, depois de continuar a executar o PT2020 até aos 100%, era arrancar primeiro com PRR e desfasar a entrada em vigor do PT2030. Agora estou à vontade para o dizer coisa que, politicamente, porventura não podia ser tão clara.

Mas está preocupado? Este Governo entrou com uma tónica muito centrada no problema dos atrasos. Estamos num contexto inédito: acabar de executar o PT2020, executar o PRR e o PT2030. Há um problema de falta de tempo para executar tanto dinheiro?

Atualmente, vivemos um período ímpar e único. Na prática, em vez de termos um quadro comunitário a fechar e outro a abrir – o período de sobreposição de dois quadros comunitários eram os períodos mais difíceis que tínhamos – neste caso, temos esses dois, mais o lançamento de um terceiro, que é o PRR.

É natural que as coisas se tornem difíceis, quer no arranque, quer na consolidação desse processo. É um desafio enorme. Aliás, não é enorme só para Portugal.

É para todos os Estados-membros.

Quando tivemos acesso a esta terceira fonte de financiamento, para mim foi muito claro o planeamento e as prioridades que tinha na cabeça. Tínhamos um Portugal 2020, que ainda era preciso fazer um esforço grande para criar as condições para que encerrasse a 100%.

A pandemia apanhou o Portugal 2020 num período crucial, que são o quarto e o quinto ano. Naturalmente, ressentiu-se de forma dramática. Tínhamos esse montante por executar. O ano já de 2021 tinha de ser de forte execução do Portugal 2020. E foi. Tenho ainda na cabeça os 18% de execução naquele ano de 2021 que ainda foi meio afetado pela pandemia.

Criámos as condições para que pudesse ser escutado a 100%. Naquela altura já dizia, com convicção, que, de certeza absoluta, que não vamos perder um único cêntimo do Portugal 2020, quando toda a gente dizia que iríamos perder mundos e fundos.

Tínhamos o PRR e o PT2030 para arrancar. O PRR tinha um prazo curto para execução e tinha uma metodologia diferente a que não estávamos habituados. No meu planeamento era claro como água: a prioridade, depois de continuar a executar o PT2020 até aos 100%, era arrancar primeiro com PRR e desfasar a entrada em vigor do PT2030.

Agora estou à vontade para o dizer, coisa que, politicamente, porventura, não podia ser tão clara. Sabemos que a componente regional dos quadros comunitários de apoio é sempre muito maior do que a componente do PRR. Quando digo que o PRR devia ter primazia e prioridade de arranque naqueles anos, isso foi no planeamento, nas prioridades, na atenção. Discutimos muito com a Comissão Europeia.

Até com a própria comissária Elisa Ferreira, que não tinha a tutela do PRR, eu devia-lhe uma explicação. E ela concordou e entendeu perfeitamente esta questão: PT2020 em primeiro lugar, arranque do PRR e, entretanto, vamos construindo o PT2030 para arrancar um bocado mais tarde. Portanto, dizer que está em atraso, neste momento, não é algo que acho que faça sentido.

O antigo ministro do Planeamento conta que no seu entender o PRR tinha de ser a prioridade, nos anos iniciais. “Discutimos muito com a Comissão Europeia. Até com a própria comissária Elisa Ferreira, que não tinha a tutela do PRR, eu devia-lhe uma explicação. E ela concordou e entendeu perfeitamente esta questão: PT2020 em primeiro lugar, arranque do PRR e, entretanto, vamos construindo o PT2030 para arrancar um bocado mais tarde. Portanto, dizer que está em atraso, neste momento, não é algo que acho que faça sentido”, contou no ECO dos Fundos Nelson de Souza.Aurore Martignoni/ EC - Audiovisual Service 9 Setembro, 2020

Quando olha para a quantidade de obras públicas, das quais depende a execução do PRR, não está preocupado?

Isso estou.

Quando há tantos concursos públicos que ficam desertos, quando não há mão-de-obra para as construtoras.

Isso estou.

Então, se calhar, a execução do PRR não é assim tão tranquila.

Isso estou, estou preocupado. Há declarações minhas, ainda como ministro, a avisar. Afastada a restrição financeira que tolhia muito o avanço do investimento público em Portugal – e tolheu muito nos primeiros anos do próprio Governo do Partido Socialista, porque manteve a política das contas certas –, aquilo que iria impedir ou obstaculizar o PRR era a capacidade de resposta da nossa engenharia, da nossa capacidade construtiva, no sentido da construção civil e obras públicas.

Até tive contactos ao mais alto nível com essas confederações, no sentido de que se deveria organizar, porque no mercado das obras públicas, tivemos sempre uma ajuda muito grande, já decorrente também do mercado comum e também do mercado interno, de construtoras, nomeadamente aqui da vizinha Espanha.

Também alertei naquela altura que Espanha também iria ter o mesmo problema, assim como a Itália. Na Europa iria haver escassez de disponibilidade construtiva para executar as obras do PRR.

Qual é a solução? Estamos a ano e meio do fim do PRR.

Isto não é simples. Tínhamos acabado de sair de um processo de ajustamento onde um dos setores mais afetados foi a construção civil, as obras públicas. Houve uma descida drástica do mercado. Houve desaparecimento e destruição da capacidade empresarial nessas áreas e arrancamos com o PRR num estado de situação destes. Tínhamos dificuldades nessa área. Não é só o dinheiro que conta, é também a capacidade.

Por outro lado, também alertei que com o Programa de Estabilidade Financeira, praticamente, se destruíram, nos grandes investidores públicos as equipas, que planeavam, orçamentavam, alimentavam a máquina de fazer projetos de investimento. Até pela idade dessas pessoas que se foram reformando e algumas reformas antecipadas que se fizeram nos grandes investidores. Estou a falar na ferrovia, nas estradas e muitas outras áreas.

Esse problema de falta de meios e de recursos humanos é transversal aos fundos europeus…

Isso é.

Há mais o PRR para executar e as pessoas são as mesmas. As equipas estão depauperadas.

Até diria menos. As pessoas são menos. Algumas reformaram-se.

E não houve renovação da Administração Pública.

Outras foram-se embora. É certo que hoje há uma maior disponibilidade de tecnologia que pode substituir, com alguma vantagem, a intensidade de mão-de-obra da gestão dos fundos. Mas isso não dá para compensar a drástica redução dos meios que, neste momento, a gestão dos fundos europeus contam, incluindo o PRR.

Alertei no passado que aquilo que iria impedir ou obstaculizar o PRR era a capacidade de resposta da nossa engenharia, da nossa capacidade construtiva, no sentido da construção civil e obras públicas.

O ministro da Coesão voltou a recuperar o modelo de utilizar análises externas às candidaturas. A opção foram as universidades e não consultoras. Essa solução já foi utilizada no passado. Funciona?

Não é uma nova solução. É uma solução quando a capacidade de resposta é aquela que é, quando se ouve dizer junto dos organismos responsáveis, preto no branco, aos beneficiários: “Olhe, a sua candidatura entrou aqui há oito, nove, dez meses. Mas nem sequer a abrimos ainda”.

Portanto, todos os recursos, todas as soluções serão boas. Como solução de recurso, como solução transitória de aumento rápido de capacidade de resposta, é uma boa solução. Já foi utilizada. Agora não é uma solução estrutural, até porque tem problemas. Portugal é um país relativamente pequeno também em termos de recursos. Uma das questões que se coloca, muitas vezes, é os conflitos de interesses que podem existir.

Era um dos problemas identificados no recurso às consultoras.

Nas consultoras, mas também nas universidades.

Também são beneficiárias de fundos europeus.

E as pessoas que nas universidades estão disponíveis e que têm know-how para avaliar candidaturas provavelmente também se dedicarão a consultoria individual. Isto não é nada fácil. Portugal é um país relativamente pequeno.

Sei a dificuldade que existe e que muitas vezes leva à formação de júris, por exemplo, na área da ciência e tecnologia, com individualidades estrangeiras a avaliar infraestruturas de ciência e tecnologia. Porquê? Porque são poucos e os poucos que há põem-se a avaliar as infraestruturas uns dos outros. Não é uma boa solução.

Há uma maior disponibilidade de tecnologia que pode substituir com alguma vantagem a intensidade de mão-de-obra da gestão dos fundos. Mas isso não dá para compensar a drástica redução dos meios.

Nos fundos estruturais é recorrente falar de excesso de burocracia. Todos reconhecem que existe, mas o outro lado da moeda é um aligeirar das regras que pode aumentar os riscos de fraude. Como encontrar uma solução de maior equilíbrio entre estas duas realidades?

Não há uma bala de prata para essa questão. Colocou bem a questão. Não há bela sem senão. Quando se aligeiram controlos a segurança diminui, é mesmo assim. É preciso encontrar soluções que no papel, na definição dos grandes temas, já se sabe qual é – o chamado modelo anglo-saxónico e que assenta numa confiança a priori, ex-ante, grande e depois num forte sistema ex-post do controlo que é duro, até no sentido de ser dissuasor de práticas futuras.

Esse sistema que funciona em países com sociedades avançadas. Funcionam assim globalmente, não é só nos fundos, mesmo relativamente a questões de natureza penal. Todo o sistema de Justiça está construído assim. Aqui não. Diria que a burocracia é a defesa dos sistemas mais pobres e mais indefesos. Julgo que a sociedade em geral, quando olha para esta questão, quer dos fundos quer de qualquer outra atribuição de benefícios públicos, quer mais controlo.

Só quer saber da complexidade e da burocracia quando lhes afeta diretamente o seu direito particular. Em termos gerais querem sistemas hiper seguros. Preferiam ter um polícia para si à porta de casa.

Portugal até é um dos países que compara bem relativamente aos restantes Estados-membros em termos de fraude nos fundos. Mas temos o caso Manuel Serrão, que parece ser a antítese de tudo isto. Estamos perante uma prática reiterada de uma fraude ao longo pelo menos de oito anos. Como é que se explica que, com tanto controlo de faturas, com tantas entidades que fiscalizam os fundos, uma situação como esta não tivesse, em algum momento, feito soar campainhas de alarme?

Tenho alguma dificuldade em opinar sobre um processo em concreto, porque estou muito longe de saber em concreto quais são as questões que estão em causa, para além daquilo vem na imprensa. Não estou a dizer que é este o caso, mas os sistemas, também eles próprios, vão aprendendo ao longo da sua execução. Estas são tipologias de projetos onde existe um intermediário dos dinheiros públicos.

Neste caso era uma associação que recebia dinheiro para apoiar as empresas em ações de internacionalização. Há aqui uma dificuldade acrescida, onde talvez tivesse havido menor eficiência e menor atenção na relação entre o intermediário e as empresas e o controlo só se tenha apenas focado na relação entre a administração e o intermediário. Depois não se quis saber muito da relação entre o intermediário e as empresas.

Isto, dito assim de uma forma abstrata, parece-me que é uma das questões que se tem de melhorar. Foi-se melhorando esta tipologia ao longo dos quadros, mas não o suficiente.

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