Maior que a Madeira, freguesia de Alcácer prepara-se para repor as fronteiras que a “Lei Relvas” quebrou

Em Portugal, só há 13 presidentes de câmara com mais terra para gerir do que Arlindo Passos, o presidente de junta que nos traça o mapa do processo que criará 302 novas freguesias nas autárquicas.

O reconhecido afã do ex-primeiro-ministro António Costa na reversão de medidas do tempo da troika deixou uma última para ser concretizada num Governo suportado pelo PSD e CDS, os partidos que a aprovaram no tempo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. Das 1.168 freguesias agregadas há uma dúzia de anos, só 188 se candidataram a repor as antigas fronteiras. Destas, 135 conseguiram fazer vingar no Parlamento, em janeiro, a intenção de se livrarem das amarras dessa medida conhecida por “Lei Relvas”, originando 302 novas freguesias.

No rescaldo desta vitória dos pequenos territórios, viajamos até à maior freguesia do país, maior que o arquipélago da Madeira e, conforme mostra o mapa da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), só superada em área por 13 dos 308 concelhos do país, incluindo o de Alcácer do Sal, ao qual pertence este imenso território.

A perceção do que são os 916 km2 de área da União de Freguesias de Alcácer (Santa Maria do Castelo e Santiago) e Santa Susana é maior com as “botas no terreno”. Ao longo de uma manhã, com o presidente da junta ao volante, não chegamos a percorrer metade da distância que seria necessário calcorrear para visitar todas as aldeias da união. Não admira que Arlindo Passos nos diga que só de quinze em quinze dias consegue visitar o extremo leste do território por si gerido. “Há localidades a que raramente vou. Com as localidades que aqui temos, se formos ver todas as aldeias, fazemos 200 km”, explica, enquanto seguimos para nordeste ao longo da EN 253, tendo por ponto de partida o centro de Alcácer do Sal, onde um discreto marco junto à parede de uma casa nos indica que passámos de Santa Maria do Castelo para Santiago.

“Devíamos fazer uma união das duas freguesias da cidade, economizava-se muito dinheiro. Mas a lei não previa isso. Ou revertia as três, ou não revertia nenhuma”. Com quatro décadas de experiência nas freguesias do concelho, Arlindo Passos ficará na curta história de 12 anos desta união de freguesias como o único presidente, depois das vitórias eleitorais em 2013, 2017 e 2021. E será ele a liderar as duas comissões para a extinção da união e instalação das três novas freguesias.

Alcácer do Sal
Alcácer do Sal Hugo Amaral/ECO

“Comecei com a união [de freguesias] e vou fechar a união”, nota Arlindo Passos. Com quatro décadas de vida autárquica, de que se destacam 17 anos como presidente de junta – de 2009 a 2013 foi-o em Santa Maria do Castelo, depois de já ter presidido à Assembleia Municipal de Santiago – conhece bem o município onde nasceu e se empregou como desenhador da câmara após a formação académica feita a partir de 1975 na Hungria, com bolsa de estudos providenciada pela CGTP junto do sindicato dos metalúrgicos daquele país, então um satélite da União Soviética.

Apesar de ter atingido o limite de mandatos na união, Arlindo Passos, com a política no sangue há meio século – o pai, também Arlindo Passos, foi presidente da câmara de Alcácer do Sal de 1979 e 1985 – poderia agora candidatar-se para mais quatro anos de presidente em qualquer das três freguesias. Mas não parece disposto a tal: “Já chega. Tenho 68 anos. A idade também pesa”.

A experiência autárquica permitiu-lhe gerir a reorganização administrativa de 2013 numa área superior a qualquer concelho das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. A União de Freguesias de Alcácer (Santa Maria do Castelo e Santiago) e Santa Susana tem praticamente o dobro da área de Sesimbra e quase o triplo do concelho de Arouca, os mais extensos nas duas áreas metropolitanas.

A criação desta imensa freguesia surgiu de uma medição “a régua e esquadro”, acusa Arlindo Passos. E relembra o procedimento de 2013 da “Lei Relvas”: “Todas as sedes de freguesia situadas a menos de 15 km da sede do concelho eram para acabar. Fizeram uma linha reta no mapa até Santa Susana” e assim chegaram a uma distância de 15 km. Pela estrada – a forma como se circula, a menos que se use o ar para transporte – seriam 16 km, e Santa Susana já teria mantido a sua independência em 2013.

“Fomos sempre contra” a agregação, diz o edil comunista. A sua opinião coincide com a do PCP nacional, que defende a reversão de todas as uniões de freguesias, dando liberdade à agregação daquelas que se pretendam juntar. Nesse caso – perguntamos – haveria quem se quisesse unir, quando a medida tomada no decurso do programa de ajustamento gerou tanta contestação? “Com a experiência, já se percebeu que [o modelo de união] funciona”, dispara o autarca. Mas exige um olhar caso a caso, acentua.

Alcácer do Sal
As poucas alterações produzidas pelo Executivo do autarca comunista em 2013 permitirão agora uma transição suave na criação de três novas freguesias.Hugo Amaral/ECO

No caso desta união nas margens do Sado, o desejável, pelo critério da proximidade e perfil do território, seria juntar Santa Maria do Castelo e Santiago numa só e deixar Santa Susana independente. Mas não foi isso que, aquando do processo de reversão da “Lei Relvas”, determinou o Governo de António Costa, que exigiu a manutenção das uniões ou o regresso às fronteiras de 2013.

Entre os critérios para a candidatura à desagregação esteve um que quase inviabilizava o final feliz desejado por Arlindo Passos. “Por pouco não perdíamos a oportunidade [de apresentar o processo de desagregação]. Eram precisos 250 eleitores em cada freguesia. Em 2021, Santa Susana tinha 262”. O critério de eleitores limitou mais desagregações ao longo do país, designadamente no concelho vizinho de Grândola, onde Santa Margarida não atingia os 250 e por isso não foi a jogo, exemplifica.

Com o regresso ao passado fronteiriço, as mudanças exigidas variarão consoante os passos dados em 2013. Se o autarca tivesse cumprido o que foi decidido na altura, existiria hoje apenas uma sede da união. Contudo, tal como o ECO/Local Online confirmou, os três edifícios estão operacionais.

“A gente reclamou. A intenção deles era acabar com as [freguesias] urbanas. Estava esta aqui [Santiago] e a outra mais em baixo [Santa Maria do Castelo]. Como é perto da câmara, a intenção deles era que fechássemos uma destas e a junta de Santa Susana. Nós é que nunca o fizemos. As duas daqui e a de Santa Susana, está tudo aberto. Vai ser fácil revertermos isto”, assegura.

Distando apenas 500 metros entre si, os edifícios das antigas juntas em pleno centro de Alcácer do Sal têm diferentes usos. Um para atendimento à população, outro para serviços administrativos. Em Santa Susana, os serviços estão como dantes, com a diferença de não haver ali um presidente em permanência. “Se fechássemos Santa Susana, uma pessoa que quisesse tirar um atestado tinha que ir a Alcácer, andar 30 km. E transportes públicos só há uma vez por semana”, nota.

“Fechando a junta, fecha-se a identidade da aldeia”, considera o autarca. “A população nem se apercebeu” da criação da união, diz-nos, em Barrancão, aldeia mais a leste, a meras centenas de metros da linha divisória dos distritos de Setúbal e Évora. Percorremos 30 km desde a sede da união de freguesias, dentro de Alcácer do Sal. Se, na cidade, tivéssemos optado por rumar para o outro extremo da freguesia, teríamos percorrido outros tantos 30 km.

Alcácer do Sal

Em Barrancão, desponta a placa de Junta de Freguesia de Santa Susana, extinta em 2013 e renascida em 2025. Os 12 anos parecem não ter passado por ali. “Sempre disse às pessoas para que não se preocupassem, que ficaria tudo igual”.

Curiosamente, e ao contrário da crítica de alguns dos contestatários da “Lei Relvas”, que asseguram ter-se perdido serviços públicos em 2013, a desagregação irá retirar a Santa Susana o posto dos CTT ali existente. “Às vezes ganha-se, outras perde-se”, admite Arlindo Passos.

Sandra Carraça, funcionária da freguesia há 23 anos, já sabe que deixará aquele posto de correios, mas não tem perspetivas de mais alterações no quotidiano dos locais. “Na agregação não senti muita diferença”. E agora, prossegue, no regresso às três freguesias “vai ficar tudo na mesma”. A seu ver, “não fazia sentido” recuperar a freguesia de Santa Catarina, considerando a escassez de população, diz. “Mas pronto, é política. O que for, será”, diz ao ECO/Local Online.

A grande perda em 2013 foi a proximidade ao presidente da junta nos locais mais remotos, admite Arlindo Passos. Hoje, a população tem o presidente por ali umas duas vezes por mês, mas antes, a população cruzava-se com o seu autarca diariamente. “Estavam habituados, o presidente era daqui. Eles sabem que falando com o presidente, resolve-se”.

Mas é assim tão importante para um cidadão num território mais distante da sede do concelho ter a proximidade do autarca? “Para eles, é”, assegura Arlindo Passos.

Pataca a mim, pataca a ti (e a ti)

A lei aprovada no Parlamento em janeiro, com votos contra apenas da Iniciativa Liberal e a abstenção do Chega, estabelece regras para a transição que se consumará nas autárquicas deste ano, assim o Presidente da República aprove a decisão dos deputados e o faça atempadamente.

Antevendo o que terá de fazer enquanto líder das comissões de extinção e instalação, Arlindo Passos desenha uma lista de compras para as três novas freguesias: Santa Maria (de que foi presidente de 2009 a 2013) terá o maior território da união, cerca de 400 km2, pelo que voltará a ser ela a maior do país. Na divisão das verbas do Fundo de Financiamento das Freguesias, dotação anual proveniente do Orçamento do Estado, caber-lhe-á mais de 40%.

Ali ficarão cinco dos atuais funcionários administrativos da união. Para Santiago (onde Arlindo já presidiu à Assembleia Municipal) seguem dois trabalhadores e “em princípio será necessário contratar mais uma pessoa”, prevê. Cada freguesia implica um presidente, um secretário e um tesoureiro, explica Arlindo Passos. Quando era presidente em Santa Maria do Castelo, estava a meio tempo, mas agora está a tempo total para todo o território. Na nova configuração haverá três presidentes, mas não é aqui que estará o custo mais expressivo, afirma: “Em questão de pessoal é que se poupa muito” com o modelo de união, assegura.

Alcácer do Sal
Hugo Amaral/ECO

O Renault Zoe elétrico em que viajamos e o outro da frota ficarão para Santa Maria do Castelo e Santiago. Santa Susana, marcadamente rural, não necessita, diz o autarca. Com a reorganização, terão de ser adquiridas carrinhas de carga e alguma maquinaria. É já certo que a carrinha de transporte de cidadãos com mobilidade reduzida regressará à posse de Santa Maria, ficando as duas outras freguesias sem este serviço. A solução poderá passar pela cedência em empréstimo, como hoje já é feito pela união quando a câmara de Alcácer do Sal necessita desse serviço. Mas esta cedência entre freguesias não tem enquadramento legal. Para que tudo ficasse regular, teriam de ser adquiridas duas novas carrinhas capacitadas para transporte de cadeiras de rodas. A alternativa à aquisição é a partilha informal, assume, algo que hoje já é feito entre a união e a câmara, que não dispõe de um veículo preparado para cadeira de rodas.

Mas há mais: “atualmente, tirando Santa Susana, que tem uma equipa à parte – não quisemos juntar, porque é mais distante – temos uma só equipa para relvas e ervas em Santa Maria e Santiago, com quatro pessoas e uma carrinha. A partir de agora, vamos comprar mais uma carrinha e admitir mais pessoal. Temos uma equipa da construção civil, com quatro pessoas e uma carrinha, que fazem Santa Maria e Santiago, e às vezes vão a Santa Susana. Vamos ter que duplicar”.

Alcácer do Sal
Arlindo Passos na sede da união de freguesias, onde passará a ser a sede da junta de SantiagoHugo Amaral/ECO

Dependendo do acordo de cada junta com a câmara, a varredura de ruas, limpeza de ervas e valetas, e o tratamento de relvas caberão às freguesias ou à autarquia, e isso também influenciará, ao longo do país, a necessidade de compra de equipamento e contratação de pessoal.

“Em Santa Maria não tínhamos problemas financeiros. Era a que recebia mais do FFF. Mas também era a que tinha menos apoio da câmara”, recorda. “Em Santiago, poucas obras faziam. Eles recebiam a verba, mas quem fazia os trabalhos era a câmara, que era da mesma cor política, nos dois mandatos do PS. Enquanto Santiago tinha dois funcionários da câmara, Santa Maria não tinha nenhum. Agora já temos, na união”. Com a desagregação, esses trabalhadores cedidos pela câmara regressarão a Santiago, explica Arlindo Passos.

“Santa Susana tem meios próprios, tem pessoal, tem tudo. Nestas duas [Santa Maria do Castelo e Santiago] é que podia fazer isso [manter agregadas], mas a lei não deixava”, reforça o autarca.

Num território historicamente repartido entre PS e a coligação comunista (antes, APU, nas últimas duas décadas, CDU), Arlindo Passos prevê que as competências que chegarão a cada uma destas três freguesias dependerão do partido vigente na câmara municipal. Até 2013, São Tiago não tinha a incumbência da limpeza do espaço público, ao contrário de Santa Maria, apesar de a sede de ambas se localizar no centro de Alcácer do Sal. A manutenção de caminhos e sinalização é responsabilidade da junta, mas com a desagregação, os equipamentos atuais das uniões de freguesias poderão não ser suficientes. “Se não tivermos máquinas? Não se faz”.

Alcácer do Sal
Até à aldeia mais distante da sede da freguesia, na extrema dos distritos de Setúbal e de Évora, percorremos quase 30 km. Para chegar ao outro limite desta união de freguesias teríamos de viajar por mais de 50 kmHugo Amaral/ECO

Nesta relação entre os dois níveis da administração pública, a afinidade política entre os executivos das juntas e das câmaras influencia a ação das primeiras. Até 2009, na junta de Santa Maria do Castelo, o serviço de transporte da população era pago ao quilómetro pela câmara, constituindo receita extra, conta o autarca comunista. “O PS ganhou [as eleições na câmara] e tirou isso tudo”, recorda.

Apesar de todas as contas que se fazem à desagregação ao longo do país, falta ainda a validação por parte do Presidente da República. As novas freguesias só irão a eleições este ano se Marcelo Rebelo de Sousa validar até seis meses antes o diploma aprovado na Assembleia da República em janeiro. Há ainda um mês e meio para pôr a máquina autárquica em movimento.

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