Quem é Marlene Vieira, a chef que se intrometeu na cozinha dos homens?
Foi a Estrela mais aplaudida na Gala do Guia Michelin 2025. Marlene Vieira veio quebrar um jejum de mais de 30 anos – ela é a segunda chef mulher portuguesa a receber a distinção do Guia Michelin.
A noite em que Portugal voltou a fazer história na gastronomia foi temperada com emoção e simbolismo. Na passada terça-feira, o país celebrou não apenas mais uma estrela no firmamento da alta cozinha (na verdade são oito as novas Estrelas, mas desta vez foquemo-nos em apenas uma), mas um feito que rompeu um jejum de mais de três décadas. Marlene Vieira tornou-se a primeira mulher a conquistar uma Estrela Michelin em Portugal desde 1993 [a primeira foi Maria Alice Marto, do restaurante Ti’ Alice, em Fátima], uma distinção que, além de reconhecer o seu talento, resgata um espaço que há muito parecia inatingível para as mulheres no competitivo (e muito patriarcal) mundo da restauração.
A consagração aconteceu durante a aguardada cerimónia do Guia Michelin, no Porto, com o marido, João Sá (do restaurante Sála, distinguido em 2024 com a sua primeira Estrela), parceiro na vida e nos negócios, a aplaudir de pé na primeira fila. Juntos, Marlene e João, têm uma filha – Isabel, com 9 anos, que recebeu o nome da sua referência feminina na cozinha – e gerem quatro restaurantes (o Sála, o Marlene, o ZumZum Gastrobar e um corner no Time Out Market). “Eu sou do Porto e o João é de Sintra. Conhecemo-nos na cozinha. Num hotel, quando trabalhávamos juntos, em 2005. Fomos crescendo juntos durante todos estes anos”, partilhou a chef, em entrevista à Face Food Mag. 17 anos depois, têm uma vida desafiante, sobretudo quando se trata de gerir o work-life balance. “Temos diferentes formas de trabalhar. A minha preocupação é agradar a muita gente. O João gosta mais de trabalhar para o seu próprio agrado, ele é um artista. A sua cozinha é mais pessoal. E no Marlene quero trabalhar mais a criatividade e a sensibilidade…”, conta a chef.
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Já João Sá, desfaz-se em elogios para a mulher que trouxe para casa a segunda Estrela Michelin do casal: “A cozinha da Marlene é sobretudo muito rica em sabor português. Mas eu gostava de destacar a sua maneira de estar na cozinha, como se comporta com as pessoas que trabalham com ela… Ela é muito melhor ao comando do que eu”. E continua: “é difícil, porque quando temos quatro restaurantes com a nossa companheira, sem sócios nem mais ninguém, o restaurante é uma parte muito importante da nossa vida… Por isso mesmo, este ano tentámos não falar de trabalho em casa”, revelou. E Marlene acrescentou ainda: “Vemos o futuro juntos, a cozinhar numa quinta com animais. Gostávamos de ter um pequeno hotel com um restaurante. Bom vinho… Mas juntos. Nós trabalhamos com o coração”.
Ovação emotiva em casa
Quando o nome de Marlene Vieira ecoou na sala da Alfândega do Porto, foi recebido com uma ovação entusiástica – um aplauso que simbolizava mais do que uma conquista pessoal: representava uma vitória para todas as mulheres que batalham por um lugar de destaque num setor ainda dominado por homens. “Sempre me perguntaram se eu acreditava que um dia uma mulher poderia alcançar esta distinção em Portugal. Eu sempre acreditei, e hoje, aqui estamos nós”, afirmou a chef, visivelmente emocionada.
O seu restaurante, Marlene, situado em Lisboa, tem sido um laboratório de experiências sensoriais onde os sabores ganham uma nova dimensão. Com uma abordagem que funde tradição e inovação, Marlene tem vindo a construir uma identidade gastronómica singular, valorizando ingredientes locais e técnicas refinadas. O menu, meticulosamente elaborado, é um reflexo da sua filosofia culinária: respeito pela sazonalidade, paixão pelo detalhe e uma criatividade sem limites. “Cozinhar é contar histórias com sabores. Cada prato que envio para a mesa carrega um pouco da minha essência”, revelou.
A jornada até à conquista da estrela Michelin não foi fácil. Nascida na Maia, há 45 anos, cresceu a entrar em cozinhas de restaurantes, porque o pai tinha um talho e era ela quem fazia as entregas. Começou a trabalhar num restaurante nas férias – o Costa Brava, na Maia –, quando tinha apenas 12 anos e, aos 16, iniciou os estudos na área, na Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira. Durante o seu percurso diz orgulhosamente que não há nada que não tenha feito num restaurante. “Fiz de tudo. Comecei pela cozinha, mas também limpei casas de banho. E aos poucos, o mundo da cozinha invadiu-me. Não me apaixonei pela cozinha da avó ou da mãe. Apaixonei-me pela vida de um restaurante especial”, recordou a chef numa entrevista. Ela que, nem uma semana depois do famigerado 11 de Setembro e da queda das Torres Gémeas, estava de malas feitas para os Estados Unidos, onde trabalhou num restaurante português e acabaria a servir sardinhas assadas à cantora Norah Jones. “Era uma cozinha portuguesa tradicional num ambiente de luxo… [o restaurante Alfama, em Manhattan]. Era contraditório. Cozinha portuguesa era servida nas tascas. E eu estava, de repente, a servir umas sardinhas assadas à Norah Jones”, explicou. Foi neste país que descobriu verdadeiramente a gastronomia portuguesa. “Conhecia a comida da minha casa… não conhecia bacalhau à Brás. E quando conheço a cozinha portuguesa, a minha vida muda”.
Viveu entre tachos e panelas, num ambiente onde a resistência ao protagonismo feminino era evidente. “Muitas vezes duvidaram que eu tivesse a capacidade de liderar uma cozinha. Mas nunca deixei que isso me definisse”, recorda. A sua formação passou por algumas das cozinhas mais exigentes do mundo, onde aprendeu com mestres da alta gastronomia, absorvendo conhecimentos e lapidando um estilo próprio. De regresso a Portugal, tornou-se conhecida pelos portugueses ao participar como jurada no programa da RTP Masterchef. Pelo meio passou pelo Avenue, na Avenida da Liberdade, que lhe abriu as portas do Time Out Market em 2014. Em 2020, abriu o Zumzum Gastro Bar e, dois anos depois, o Marlene onde apostou numa cozinha autoral e diferenciada e só serve jantares, de quarta a sábado. Desde então, o sonho da estrela Michelin foi-se fazendo mais presente.”Não se trabalha a pensar nela? Não sei. Muitas vezes são os clientes, os pares, que nos vão relembrando: ‘Oh Marlene, porque é que tu não tens aqui uma estrela Michelin?'”, contou a chef a um canal de televisão.
O reconhecimento do Guia Michelin é um marco na sua carreira, mas a chef garante que este é apenas o começo. “Receber esta estrela não é um ponto de chegada, é um ponto de partida. Quero continuar a surpreender, a evoluir e a inspirar outras mulheres a seguirem este caminho”, afirma. A sua presença na lista de premiados é um sinal de mudança no panorama da gastronomia nacional, um lembrete de que o talento e a dedicação devem ser os verdadeiros critérios de valorização, independentemente do género.
A conquista de Marlene Vieira não se esgota no brilho da estrela recebida; ela traz consigo um impacto profundo. A gastronomia portuguesa, tão rica e diversa, tem agora mais uma referência feminina a figurar entre os grandes nomes da cozinha contemporânea. A chef, que sempre sonhou em deixar a sua marca no mundo gastronómico, conseguiu não só esse feito, mas também inspirar uma nova geração de cozinheiras que olham para ela como um símbolo de possibilidade e mudança.
“Hoje, celebro não apenas a minha conquista, mas a de todas as mulheres que batalham diariamente neste setor. Espero que esta estrela ilumine muitos outros caminhos e que, em breve, vejamos mais mulheres a ocupar o lugar que lhes é devido na alta gastronomia”, conclui.
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