“Atraso na linha da Beira Alta está claramente a prejudicar a nossa economia”

A Guarda soma empresas internacionais e quer chegar aos mil hectares de terrenos industriais, mesmo sem comboio e com um Estado que de pouco serve longe do litoral, lamenta o autarca Sérgio Costa.

Com quatro empresas destacadas na indústria automóvel, a venda de 23 lotes assinada para uma futura fábrica de panificação, investimento de 25 milhões de euros de capitais brasileiros, e um novo hospital privado prestes a começar em obra, a autarquia da Guarda tem a ambição de quadruplicar a área para empresas até perto dos mil hectares.

A falhar estão o porto seco, dependente de um financiamento de quatro milhões de euros, e repor o serviço ferroviário na linha que liga aos portos marítimos do centro e norte do país, assinala, em entrevista ao ECO/Local Online, o presidente da Câmara Municipal da Guarda, Sérgio Costa.

O Estado central tem um papel fundamental”, mas “até hoje, não colocou uma única empresa nestes territórios. Acabam por tender sempre pela beira-mar”, assinala o autarca que termina este ano o seu primeiro mandato como independente, após abandonar as fileiras PSD, partido pelo qual foi vereador na autarquia desde 2013.

Assumindo que existe “canibalismo” entre municípios para atrair investidores, afirma-se como alguém que gosta do trabalho de “gestor de cliente” pela câmara que dirige, na aproximação aos empresários que, nestes três anos, trouxeram 1.500 novos postos de trabalho ao concelho, segundo as suas contas.

Reportagem na Guarda - 21MAR25
Sérgio Costa, presidente da Câmara Municipal da GuardaHugo Amaral/ECO

A Guarda fez parte do primeiro grande cluster automóvel do país, criado com o projeto Renault no final da década de 1970. Tem duas autoestradas e duas linhas férreas, está junto a Espanha, a menos de 200 quilómetros do porto de Aveiro, do aeroporto do Porto. Uma cidade destas, daquilo que convencionamos chamar como interior, pode ambicionar atrair a grande indústria no século XXI?

Pode e deve. As Indústrias Renault instalaram-se na Guarda nos anos 60, com o então presidente de câmara, Joaquim Pina Gomes, que conseguiu junto do Estado central de então captar esse investimento, que foi muito importante enquanto Indústrias Renault, mas depois na transformação do espaço para outro tipo de indústria.

A Guarda tem neste momento um cluster importante na indústria automóvel. Nós temos quatro empresas na Guarda que significam qualquer coisa como 1.500 a 2.000 postos de trabalho. É a Coficab, a maior e mais importante, ligada à cablagem automóvel, a Sodecia, a ACI, empresa de capitais espanhóis, e a Dura Automotive no vale do Mondego.

O trabalho que temos vindo a fazer para atrair cada vez mais investimento para o nosso território levou a que, nos últimos três anos, tivéssemos conseguido, seja com empresas da logística, da metalomecânica, seja dos polimentos, um conjunto diversificado de investimentos que conseguimos captar, para que pudéssemos afirmar, com algum regozijo, a criação de 1.500 novos postos de trabalho, graças a este investimento privado e algum investimento público que aconteceu ao longo destes três anos.

O posicionamento próximo de Espanha é relevante?

A Guarda está cada vez mais no radar, tem condições que poucos pontos no país terão. A começar pelo cruzamento das autoestradas com A23, com a A25 que nos liga a Espanha, com o IP2 a norte, no futuro com o IC7 para Coimbra, mas também as duas vias férreas, a linha da Beira Baixa a Linha da Beira Alta, que irá reabrir em breve, com ligação a Espanha.

Estamos neste momento a concluir o processo de revisão do PDM, que tem já mais de 30 anos. Pelas mais diversas razões, nunca se conseguiu alterar ao longo deste tempo, mas está na recta final para a sua aprovação e o novo PDM, aquilo que dita, é que quadruplicamos os terrenos disponíveis para áreas empresariais. Estamos a falar em cerca de mil hectares, espalhados à volta da cidade, mas também alguns polos mais pequenos espalhados pelo território.

A nossa ambição é de criar condições para que as empresas no futuro se possam cada vez mais instalar. Mas aqui o Estado central tem um papel fundamental. Até hoje, o Estado central não colocou uma única empresa nestes mesmos territórios, nesta região por essa via. Acabam por tender sempre pela beira-mar.

O país não tem interior, isso é um estigma que nós, portugueses, fomos criando ao longo dos últimos 60 anos, talvez mais. Em Espanha, há interior, a capital espanhola, aí sim, está no interior, Paris, exatamente a mesma coisa, já para não falar na Europa Central ou no Norte da Europa.

Reportagem na Guarda - 21MAR25
A 19 de abril passam três anos desde que a linha da Beira Alta foi encerrada. Na altura, prometeu-se a reabertura para nove meses depois e o fim das obras de requalificação para 2023Hugo Amaral/ECO

Seja como presidente nos últimos quatro anos, seja nas suas funções em executivos anteriores desde 2013, fez algo para combater o estigma, designadamente na atração de empresas?

Cada vez que estou com algum membro do Governo, responsável pela área, naturalmente, e pela própria Aicep, eu digo exatamente isto. Exatamente.

E o que lhe respondem?

“Pois, nós estamos a trabalhar para que isso possa acontecer. Mas as empresas não se querem fixar”… o Estado central tem de ter aqui a mão no investimento e colocar investimento nestes territórios.

Uma multinacional mundial que nós conhecemos, a Air Liquide, decidiu, há cerca de dois anos, fixar na Guarda o seu escritório para fazer toda a contabilidade do grupo para a Europa, África, Índia e Médio Oriente. É a partir da Guarda, em instalações cedidas pelo município, que está a fazer tudo isto. Não é produção, é o backoffice, que é muito importante. São dezenas de milhões de euros e é a partir da Guarda que se fazem essas transações.

Isto aconteceu porque houve uma vontade férrea da empresa de se fixar aqui, e do município, que criou as condições.

Que condições?

No caso concreto dessa empresa, e de outras que já se fixaram cá também, em primeiro lugar tem que haver aqui as duas vontades. Criámos as condições necessárias, adquirimos um edifício, fizemos um investimento de 400 mil euros no nosso centro histórico para criar este espaço tecnológico, onde neste momento estão cerca de 150 pessoas a trabalhar, nesta e outras empresas tecnológicas que estão a trabalhar.

Criámos esse espaço e oferecemos às empresas com uma renda de baixo custo. Interessadas que as empresas estavam em captar cada vez mais talento para poderem trabalhar para os mercados nacionais e internacionais, as vontades conjugaram-se todas.

E, naturalmente, com muita aproximação, muito trabalho de gestor de cliente, porque os políticos têm de fazer – e eu gosto desse trabalho – de gestor de cliente, aproximação aos empresários. Nas diversas conversas, ao telefone e presenciais, nas viagens que fiz a Lisboa e vice-versa, conseguimos chegar ao ponto de entendimento para se poderem fixar na Guarda.

Considerando a concorrência espanhola aqui tão perto, designadamente em Salamanca, e Lisboa tão longe nas mentalidades do centralismo, que estratégia segue para captar investimento?

Nós temos que andar a bater às portas. Nos grandes centros do país, podem estar sentados e os investimentos aparecem. Nos nossos territórios não, temos que ir à procura deles.

Nós temos que andar a bater às portas. Nos grandes centros do país, podem estar sentados e os investimentos aparecem. Nos nossos territórios não, temos que ir à procura deles.

Sérgio Costa

Presidente da Câmara Municipal da Guarda

E face aos demais municípios portugueses, há competição entre os autarcas?

Há cada vez mais competição. Há o canibalismo entre os autarcas, canibalismo no bom sentido. Canibalismo que é normal, na atração de investimento e na atração de pessoas.

No lugar de haver 308 autarquias a tentarem captar investimento cada um para si, não deveria haver uma estratégia centralizada, por exemplo, a nível das Comunidades Intermunicipais (CIM)?

Os autarcas em cada uma das CIM trabalham cada vez mais para atrair investimento para o território. Se conseguimos atrair investimento para um concelho ao lado, o concelho ao lado fica melhor e nós também. Acontece cada vez mais as sinergias dentro das comunidades intermunicipais para atrair investimento. Mas temos de ir muito mais além do que isso, e o Estado central tem de ter aqui um papel mais musculado na descentralização da nossa economia.

O Estado central que decidiu encerrar a linha ferroviária da Beira Alta para obras, prometendo que seria por apenas alguns meses, mas já lá vão três anos nesta situação. Os municípios são agentes passivos nesta realidade?

Alguém terá que responder um dia o porquê destes atrasos. Não é normal. Vamos a caminho de três anos com via encerrada e a obra não está pronta.

Ora se diz que é mão-de-obra, ora se diz que durante a noite roubaram catenária. Alguém vai ter que, verdadeiramente, um dia, responder e escrever sobre os motivos do atraso imenso desta obra. E este atraso na linha da Beira Alta está claramente a prejudicar a nossa economia.

Sérgio Costa

Presidente da Câmara Municipal da Guarda

Mas sendo presidente de câmara há quatro anos, fica de braços cruzados?

Já fiz imensas perguntas, ninguém me sabe responder. Ora se diz que é mão-de-obra, ora se diz que durante a noite roubaram catenária. Alguém vai ter que, verdadeiramente, um dia, responder e escrever sobre os motivos do atraso imenso desta obra. E este atraso na linha da Beira Alta está claramente a prejudicar a nossa economia.

Consegue dizê-lo com certeza?

Claro que está! A economia e o ambiente. O que está a acontecer neste momento? Os comboios de mercadorias estão a ser desviados para sul – os que ainda se fazem – com custos imensos para o Estado português, que tem que compensar de certa forma as empresas privadas, tendo em conta este percurso maior.

Mas aquilo que está a acontecer também é que houve um desvio (entre aspas) das cargas ferroviárias para cargas rodoviárias, contrariando aquilo que é tendência europeia e mundial. Esperemos que quando a linha reabrir haja rapidamente o trabalho de voltar a captar essas cargas para a ferrovia. Mas também aqui devemos falar nos comboios de passageiros.

Aquilo que está a acontecer para assegurar o serviço é [usar o] autocarro, mas a seguir vai ter que haver o trabalho muito musculado para que as pessoas voltem ao comboio. Eu sou um cidadão que adora andar de comboio. Tivesse oportunidade de andar de comboio mais vezes. Mas temos que ter uma oferta adequada para ir ao encontro daquilo que são as nossas necessidades nos dias de hoje.

Reportagem na Guarda - 21MAR25
A autarquia da Guarda prevê arrancar em breve com uma quarta fase na sua plataforma logísticaHugo Amaral/ECO

Nas conversas com empresários, o que lhe dizem eles?

A ferrovia, para além da diminuição da nossa pegada ambiental, prevê que se reduza os custos para as empresas. As empresas da logística neste momento não têm outra solução a não ser a rodovia. Conjugando com o porto seco da Guarda, que já devia estar construído, mas está ainda pendurado por uma qualquer decisão de Bruxelas que nem o governo anterior nem o governo atual conseguiram resolver.

Se o Estado português não tiver cerca de quatro milhões de euros para fazer um porto seco na Guarda… funciona exatamente da mesma forma com um porto de mar só que aqui não há navios, há comboios e há camiões. As empresas que dependem do comércio externo, precisam cada vez mais da ferrovia, para poder aumentar os seus negócios e diminuir os custos de contexto.

Nos contentores que estejam nos portos de mar à espera, o aluguer ao dia ou à hora é uma brutalidade, e a partir de Guarda esse custo poderá tender para zero. Isto é muito importante, interligando a ferrovia com o porto seco – haverá sempre “last mile” [ligação dos quilómetros finais até ao destino e desde a remessa] de camião, naturalmente, porque a ferrovia não pode ir à porta de cada um.

As nossas empresas precisam cada vez mais deste serviço operacional e a funcionar bem, para a redução destes custos, aumentando a competitividade no mercado internacional.

As empresas que dependem do comércio externo, precisam cada vez mais da ferrovia, para poder aumentar os seus negócios e diminuir os custos de contexto. Nos contentores que estejam nos portos de mar à espera, o aluguer ao dia ou à hora é uma brutalidade, e a partir de Guarda esse custo poderá tender para zero. Isto é muito importante, interligando a ferrovia com o porto seco.

Sérgio Costa

Presidente da Câmara Municipal da Guarda

As respostas que teve deste Governo evoluem algo face ao anterior?

São iguais. Estão à espera da decisão de Bruxelas. Porquê? Por uma razão meramente técnica. A APDL não podia avançar com a obra – apesar de estar pronta a adjudicar, já fez o concurso – porque a APDL não estava prevista como entidade beneficiária no POCentro, programa operacional Centro 2030.

Aguarda-se que a todo o tempo isso possa ser balizado, e possa ser autorizado também, para que a CCDR autorize a candidatura e possa avançar com a obra. Uma obra de quatro milhões de euros.

Apesar disso, inaugurou a terceira fase da plataforma logística em outubro e o presidente já prometeu a quarta e quinta fases. Há assim tanta procura, ou é só um desejo?

A terceira fase da plataforma logística está praticamente ocupada. Lançámos na última reunião de câmara a alienação dos últimos seis lotes. Há cerca de três meses assinámos as escrituras, com 14 empresas da Guarda e fora dela, de 30 lotes, para a criação de 200 postos de trabalho, na presença de senhor ministro da Economia.

Mais recentemente, já alienámos 23 lotes na quarta fase. Ainda as infraestruturas não estão feitas e já alienámos lotes na quarta fase, a uma empresa de capitais brasileiros ligada à indústria de panificação, para aqui construir a sua unidade de produção para consumo interno e para exportação, nomeadamente para a Europa, com criação de 160 postos de trabalho.

E, por isso, à medida que a terceira fase se está a esgotar, já estamos a alienar lotes na quarta fase. O projeto para as infraestruturas da quarta fase já está a ser feito. Já começamos a pensar na quinta fase, em termos de plano, para onde a plataforma logística deve aumentar.

Que empresa brasileira é essa? Como veio parar à Guarda?

Aho Foods, ligada ao grupo Benjamim, de pastelarias e padarias. Com contactos aqui, contactos ali, e acabámos por chegar a entendimento. O grupo tinha a intenção de se instalar em Portugal, havia pessoas que conheciam o grupo e que acabaram por se apresentar. Falámos, andámos alguns meses a negociar e chegámos a entendimento.

O Estado central ajudou em algo?

Até agora, zero. Esperemos que ajudem a seguir, até porque a previsão de investimento da empresa são cerca de 25 milhões de euros, já será um projeto nacional, PIN, e esperamos que ajude desta vez. Não ajudou a captar investimento, mas que ajude a cimentá-lo.

Para quando essa inauguração?

Estão a fazer os projetos e as candidaturas aos fundos. Eles querem fazer o investimento muito rapidamente. O projeto da quarta fase [da plataforma logística] está a ser desenvolvido, para que possamos ainda este ano lançar a obra da quarta fase. Mas eles não precisam das infraestruturas da obra para começar a laborar, porque os lotes que eles adquiriram encostam a uma via já existente. Tivemos que encontrar a melhor solução.

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