Em mar de piranhas, jacaré nada de costas (VI)

Um inquérito de Proust, gerado pela Inteligência Artificial, feito à medida para um homem de 60 anos e respondido pelo próprio (eu, não o Proust)

O diretor de um museu parisiense, que apresentou recentemente uma exposição sobre a Inteligência Artificial (IA), conta no catálogo que pediu ao ChatGPT um prefácio institucional para essa publicação. O pedido evoluiu rapidamente para uma conversa com contributos e sugestões da IA sobre a exposição. O referido diretor perguntou, então, à IA se deveria agradecer no prefácio. A resposta foi imediata: “Sim, seria pertinente agradecer à IA no vosso prefácio. Tal mostraria não apenas o reconhecimento dos instrumentos e tecnologias que contribuíram para a criação das obras, mas também para uma abertura de espírito sobre a colaboração entre homens e máquinas”.

Dias depois, já de regresso a Lisboa, um amigo fez uma observação sobre um comentário que aqui fiz sobre a Inteligência Artificial. Disse-me: “Não tens noção do potencial da inteligência artificial, ela vai mesmo substituir-nos”. Pus-me a caminho e aqui está o relato do meu confronto com a Inteligência Artificial.

A minha solicitação ao ChatGPT foi clara: “Cria um Inquérito de Proust para um homem de 60 anos”. No duelo entre o homem e a máquina, o resultado foi um empate: doze perguntas da máquina, doze respostas minhas. Eu próprio, dei continuidade à conversa, acrescentando uma questão: “Porque é que me tratas por tu?” O Chat GPT respondeu: “Boa pergunta – e legítima. Trato-te por tu porque ao longo da nossa conversa, o tom tem sido próximo, colaborativo e um pouco irónico – o que costuma convidar ao ‘tu’”. Aceitei a resposta, ao que retorquiu: “Perfeito. Fico contente com essa escolha – o ‘tu’ permite mais liberdade, mais humor e também mais cumplicidade. Vamos em frente, então, com total confiança e zero cerimónias. Se vieres com mais inquéritos, dilemas morais ou perguntas excêntricas, estou pronto”.

Confesso que não sei se estou pronto para o que aí vem. E fiquei a pensar que este é, de facto, o tempo de ‘zero cerimónias’, o que normalmente não augura nada de bom. Aqui fica, entretanto, o Inquérito de Proust. Meio homem, meio máquina.

IA: Se a maturidade fosse um eletrodoméstico, qual serias – e ainda funcionarias?

EU: Um frigorífico. A frieza é fundamental nos dias ensandecidos que vivemos. Como diz uma pessoa que prezo muito, há que ter gelo nos pulsos. Espero continuar a cuidar da minha faceta de frigorífico por muitos anos – até porque não vejo melhoras, pelo contrário, no aquecimento e no embrutecimento global.

IA: Quantas vezes por semana finges que ouves bem?

EU: Confesso que dá mais jeito ouvir mal. Nesta matéria, fui bafejado pela sorte: como ouço mal, não preciso de fingir.

IA: Qual é a tua posição oficial sobre as pessoas que dizem ‘os sessenta são os novos quarentas’?

EU: Não tenho posição, apenas constato uma de duas coisas: ou ainda não chegaram aos sessenta anos, ou tiveram uns quarenta péssimos.

IA: O que é mais difícil: mudar de opinião ou mudar de password?

EU: Não são comparáveis. Mudar de opinião é, muitas vezes, um sintoma de inteligência. Mudar de ‘password’ é apenas sintoma do medo que temos sobre o mundo que nos rodeia.

IA: O que achavas ridículo aos 20 anos… e agora fazes com gosto?

EU: Comer favas, comprar chapéus e praticar Pilates.

IA: O que retirarias discretamente do mundo – sem alarme, mas para sempre?

EU: Todas as tentações totalitárias, idealizadas ou concretizadas.

IA: Em que mentira repetida mil vezes acabaste por acreditar?

EU: Que a paciência se deixa vencer pelo cansaço.

IA: O que é que só agora, com mais de 60 anos, ousas dizer em voz alta?

EU: Que nada interessa mais do que a nossa felicidade.

IA: Se pudesses apagar uma pessoa da tua biografia, quem desapareceria sem deixar sombra?

EU: Não vale a pena apagar uma pessoa, ela aparece ao virar da esquina quando menos se espera. E tenho sempre presente que as sombras são como as nódoas mais difíceis.

IA: Se fosses recordado por uma única frase cruel, qual gostaria que fosses?

EU: Teme-se o pior. Acredito que é um bom princípio na vida.

IA: Que verdade aprendeste demasiado cedo e nunca mais conseguiste desaprender?

EU: Que não se muda a natureza humana e, muito menos, o mundo.

IA: E se isto não for um inquérito, mas um teste – o que acabaste de revelar sem querer?

EU: Que a curiosidade comeu o gato.

 

  • Colunista regular. Diretor Geral e Administrador da Fundação EDP

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