
O IFIC e a arte portuguesa do financiamento
O IFIC chegou como mais um teste à nossa capacidade de conciliar a pressa da execução com a clareza da visão.
O anúncio dos três primeiros avisos do IFIC – Instrumento Financeiro para a Inovação e Competitividade, deveria assinalar o momento em que a recuperação portuguesa se transfigura em ambição estratégica. Em vez de simplesmente gastar um orçamento, poderíamos investir num novo ADN económico. No entanto, ao analisar os seus contornos, deparamo-nos com um quebra-cabeças de intenções, onde as peças da intervenção pública e da lógica de mercado não casam de forma evidente.
Comecemos pelos teasers sucessivos que anunciavam algo em grande, até ao grande plot twist: a publicação dos tão aguardados avisos de concurso, que chegou de tal forma que ninguém sabia se devia correr ou esperar pelas legendas. Talvez as entidades gestoras tenham aprendido com a avalanche do aviso da Indústria 4.0 (aquele que abriu e fechou em poucas horas), mas, ao tentar evitar a multidão à porta, acabámos com um ecossistema suspenso, à espera de instruções que nunca mais chegavam.
E é aqui que reside o verdadeiro paradoxo dos instrumentos públicos de financiamento: se anunciam cedo, criam corridas; se anunciam tarde, geram incerteza; se dizem muito, complicam; se dizem pouco, obrigam-nos a uma arqueologia hermenêutica pelas entrelinhas, para, no fim, concluirmos que ‘depende’.
Mas voltemos aos avisos. O da Reindustrialização ilustra bem o dilema entre execução rápida e visão estratégica. Com prazos curtos e exigência de previsibilidade, favorece projetos seguros e de baixo risco técnico, afastando inovações verdadeiramente disruptivas e influenciando, ainda que involuntariamente, o perfil da nossa economia. Curiosa é também a leitura de fundo: depois de o Portugal 2030 ter afastado as Grandes Empresas dos apoios produtivos (a não ser quando rebocadas por consórcios com PME e investimentos avultados em I&D), esta linha parece uma resposta silenciosa e uma forma de repor o lugar das Grandes Empresas na política industrial – um gesto mais simbólico do que estrutural.
Já o modelo híbrido Inovação Produtiva + I&D recorda vagamente o espírito das miniagendas, mas introduz uma novidade: a validação científica passa a ser responsabilidade (e custo) da própria empresa, sem regras claras ou base de peritos acreditados. É uma iniciativa que liberta o sistema público de contratações demoradas, mas transfere entropia e incerteza para as empresas, além de abrir espaço para escolhas mais convenientes do que independentes.
O aviso da IA nas PME tropeça numa contradição de escala. Permite investimentos reduzidos, apoios de 75% e até despesas retroativas a janeiro. Uma boa notícia para quem quer dar o primeiro passo na transição digital, mas também um convite ao congestionamento. Ao replicar modelos de baixo valor e alta procura como os dos vouchers ou da Indústria 4.0, arrisca-se a gerar mais ruído do que impacto. As PME precisam de projetos ambiciosos e apoio técnico especializado, e não de um reembolso para uma subscrição de software. Na tentativa de chegar a todos, corre o risco de não servir profundamente ninguém, perpetuando uma cultura de digitalização superficial, com mais logins do que transformação.
Finalmente, o aviso da Economia da Defesa e Segurança, que surge como uma espécie de Reindustrializar fardado, quase com o mesmo figurino e critérios, apenas adaptado ao léxico das tecnologias dual-use, e com inspiração num mix de incentivos do Portugal 2030, que trata a Defesa como mais um setor, ignorando a sua singularidade. É o aviso que mais claramente expõe a tensão entre o risco do Estado e o risco de mercado. As empresas neste domínio enfrentam um cliente soberano, ciclos de I&D longos, requisitos de certificação críticos e processos incertos que antecedem a própria produção. Um instrumento verdadeiramente adaptado funcionaria menos como um banco e mais como um parceiro paciente de capital, focado nas desejadas capacidades de soberania.
O IFIC chegou como mais um teste à nossa capacidade de conciliar a pressa da execução com a clareza da visão. No fim, revela a nossa hesitação coletiva perante o futuro, onde o projeto de um país moderno e competitivo continua, por enquanto, a ser escrito a lápis, com um olho nos prazos e o outro nas legendas. Ainda assim, há clareiras no nevoeiro. Entre regulamentos e prazos, o IFIC apresenta instrumentos que recompensam quem planeia e decide com consciência estratégica, abrindo espaço a oportunidades reais de financiamento a empresas com projetos amadurecidos e visão clara sobre o seu papel na economia. Pode não ser um mapa linear, mas é precisamente nesse jogo entre regras e intenções que se revela a verdadeira arte portuguesa do financiamento.
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