
Arte contemporânea em transição: menos milhões, mais significado
O mercado da arte contemporânea muda de ritmo: caem as vendas milionárias, cresce a diversidade e o interesse por obras acessíveis. O colecionador atual procura sentido, não só retorno.
O mais recente relatório da Hiscox revela uma viragem no mercado da arte contemporânea: caem as vendas milionárias e os retornos do investimento, mas cresce a procura por obras mais acessíveis e por artistas fora do radar. A emoção dá lugar à ponderação e a arte reencontra, talvez, o seu tempo.
Nos bastidores do mercado de arte contemporânea, onde valores astronómicos e leilões hiper-concorridos têm pautado o ritmo da última década, 2024 trouxe uma mudança de tom — ou, para os mais atentos, um regresso a valores mais fundacionais. Segundo a edição de 2025 do relatório Hiscox Artist Top 100 (HAT 100), referência anual no setor, o segmento de obras produzidas depois do ano 2000 sofreu uma queda abrupta de 27% nas vendas em leilão, descendo de 840 milhões de euros em 2023 para 613 milhões em 2024. Mais do que uma contração financeira, este abrandamento parece traduzir um reajuste de prioridades e práticas no mundo do colecionismo.
A febre da arte enquanto ativo financeiro — potenciada por um misto de especulação, marketing agressivo e celebridade — parece estar a dar lugar a um novo paradigma: o da escolha consciente, criteriosa e, paradoxalmente, mais pessoal. Pela primeira vez em décadas, o retorno médio das obras revendidas caiu para valores negativos (-0,3%), em nítido contraste com os 9% positivos registados no ano anterior. Uma mudança que coloca em perspetiva o verdadeiro valor da arte: o simbólico, o cultural, o intangível.
Curiosamente, o arrefecimento das vendas coincidiu com um recorde de transações no segmento mais acessível — obras abaixo dos 50 mil dólares. Esta aparente contradição esconde uma verdade mais profunda: a arte continua a atrair colecionadores, mas agora sob um novo prisma. “Estamos a assistir a um regresso de uma forma mais ponderada de colecionar arte, em contraste com a especulação desenfreada dos últimos anos”, afirma Robert Read, Diretor de Arte e Clientes Privados da Hiscox. “O interesse na arte contemporânea mantém-se, mas com foco no segmento mais acessível.”
Este novo colecionador — menos impulsivo, mais informado — prefere descobrir do que seguir, prefere valor simbólico a fama de mercado. A sua escolha é curadoria, não apenas investimento. É, porventura, um sinal de maturidade do setor, mas também um reflexo do mundo atual: mais volátil, mais cético, mais atento à autenticidade do que ao ruído.
Mais vozes, novas narrativas
O relatório Hiscox traz também boas notícias no campo da diversidade artística. Apesar de uma quebra de 29% no valor das vendas de obras assinadas por mulheres, o número de artistas femininas no Top 100 aumentou para 32 — uma representação recorde. A liderança do ranking pertence, aliás, à veterana Yayoi Kusama, seguida de nomes como Cecily Brown (7ª posição), Lynette Yiadom-Boakye (9ª) e Claude Lalanne (10ª). Além disso, registou-se um aumento de 13% no número de mulheres com obras contemporâneas (pós-2000) levadas a leilão.
Estes números contam uma história de reequilíbrio e alargamento do cânone contemporâneo. À medida que o olhar dos colecionadores se torna mais criterioso e menos condicionado pelo efeito de “marca” de um nome, abrem-se novas possibilidades para artistas cuja presença foi, durante décadas, marginal.
O relatório da Hiscox reflete ainda uma outra transformação: a digitalização acelerada do mercado, marcada pela ascensão dos leilões on-line, pela introdução da inteligência artificial na avaliação de obras e pela multiplicação de plataformas digitais de compra, venda e fruição artística. Um novo ecossistema em construção, onde a arte circula com outra velocidade — mas onde, paradoxalmente, o tempo de escolha e de contemplação parece recuperar espaço.
Nesta nova fase do colecionismo, há algo de contracorrente. Enquanto o mundo insiste na pressa, a arte convida à demora. Enquanto a cultura dominante empurra para a acumulação, o colecionador de hoje parece procurar significado. Talvez este seja o traço mais marcante da mudança em curso: a arte volta a ser escolhida pelo que diz, não apenas pelo que vale.
A edição de 2025 do Hiscox Artist Top 100 não anuncia o fim de uma era dourada, mas sim o início de um tempo mais sereno, mais sofisticado, mais plural. A arte continua a ser um espelho dos nossos tempos — e neste espelho começa agora a vislumbrar-se um novo reflexo: menos euforia, mais exigência; menos gritaria, mais escuta. Talvez seja este o verdadeiro luxo: ter tempo — e critério — para escolher o que vale a pena guardar.
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