JPP estreia poder regional no Parlamento e já admite processar o Estado para salvaguardar os madeirenses

Nem 15 mil votos foram precisos para o madeirense JPP chegar ao Parlamento. Primeiro resultado prático: Filipe Sousa promete processar o Estado central se não for cumprida a continuidade territorial.

Ainda a conhecer os cantos à casa da democracia, Filipe Sousa não quer perder tempo. Aqui, a comentar a lista da nova equipa governativaO Juntos Pelo Povo vai apresentar um projeto de resolução para obrigar à publicação da portaria que os madeirenses aguardam há mais de cinco anos, desde a publicação da Lei 105/2019, na qual se determina o atendimento a uma reivindicação antiga de quem vive e trabalha na região e pretende viajar para qualquer outro ponto de Portugal: pagar apenas o valor que lhes compete.

O subsídio de mobilidade implica um bilhete de 59 euros para estudantes e 79 euros para os demais na viagem entre a Madeira e o continente, mas os cidadãos são obrigados a avançar o valor total da passagem aérea, ficando depois credores do Estado.

A iniciativa será formalizada por Filipe Sousa, com quem o ECO/Local Online falou na Assembleia da República, enquanto o deputado aguardava pela sala do partido e pelo material a que terá direito, designadamente o computador onde vai preparar o seu primeiro projeto de resolução.

O madeirense e o porto-santense está a ser fiador do Estado. Estamos a emprestar dinheiro ao Estado. Isto é inconcebível, o Estado tem de assegurar o princípio da continuidade territorial“. E se não o fizer, o JPP irá avançar para os tribunais, obrigando a que seja cumprida a Lei 105/2019 e que, acusa o novo membro da AR, os deputados eleitos pela Madeira deixaram que caísse no esquecimento.

“É uma falha tremenda dos nossos representantes, porque baixam a guarda ao poder centralista, aos lobbies das companhias aéreas e das agências de viagens, que não querem que o madeirense pague subsídio de mobilidade”.

Filipe Sousa deixa uma promessa: “Vou inverter isso. Se for através da AR, desse projeto de resolução, muito bem, se não for, já reuni com grupo de advogados, e será com ação judicial, administrativa. Não é nada contra ninguém, é a favor dos madeirenses e porto santenses”.

Este é um novo parágrafo no livro de história da Assembleia da República, com o primeiro deputado de sempre eleito por uma força partidária de cariz regional. Nascido como movimento popular numa freguesia do concelho de Santa Cruz, o Juntos Pelo Povo (JPP) teve apenas 20.126 votos nas últimas legislativas, mas elegeu tantos deputados quanto o Bloco de Esquerda, que totalizou quase 120 mil.

Filipe Sousa, deputado eleito pelo JPP, em entrevista ao ECO/Local OnlineHugo Amaral/ECO

Para eleger Filipe Sousa bastaram os votos de 14.520 portugueses, todos com uma particularidade: estarem inscritos pelo círculo eleitoral da Madeira, aquele por onde se candidatou.

O exemplo do madeirense do JPP pode ser replicado em qualquer um dos 22 círculos eleitorais que elegem para o parlamento (18 distritos, duas regiões autónomas e dois círculos no estrangeiro), numa espécie de modelo alternativo de regionalização. O JPP formaliza, assim, um perfil de partido potencial em cada um dos círculos, em que, com menos de 30 mil votos, uma força partidária jovem e sem qualquer projeção nacional pode eleger um deputado para a Assembleia da República (AR). Certo é que, segundo a Constituição da República, não pode tratar apenas temas do eleitorado da sua região, como deixa claro o artigo 152.º: “Os Deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos”.

A regionalização será, precisamente, um dos cavalos de batalha do deputado madeirense, que na passada segunda-feira renunciou ao cargo de presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz. “Houve sempre um preconceito, várias vezes arma de arremesso político, dos representantes eleitos pela Madeira, de que as legislativas eram para eleger o primeiro-ministro. O madeirense interiorizou um pouco isso”, lamenta o deputado, instando: “Tem que se inverter esse preconceito”

É verdade que, nas particularidades dos círculos eleitorais e do Método de Hondt, as contas mudam ao longo do país, e a expressão popular necessária para eleger um deputado num distrito varia consoante o local onde os eleitores se apresentam perante as urnas.

Exemplos disso, os votos dos 15.488 eleitores de Portalegre que votaram na AD, ou o dos 15.415 lisboetas votantes no ADN, ou ainda o dos 22.192 portuenses votantes no Bloco de Esquerda, não deram boleia a qualquer deputado para São Bento.

Já a Filipe Sousa bastariam 14.520 votos na Madeira para que fosse eleito (nas legislativas de 2024, o JPP ficou a menos de 500 votos do objetivo de eleição), fasquia que o JPP até superou, ficando acima dos 17 mil votos. “Eu sou um deputado da nação eleito pelo círculo da Madeira, mas não vou defender só o círculo da Madeira, sou deputado nacional”, disse o co-fundador do JPP na conversa com o ECO/Local Online.

[Os deputados eleitos por forças partidárias nacionais na Madeira] são, infelizmente, comandados pelo centralismo dos partidos em Lisboa, e agacham-se nas questões de fundo que vão resolver problemas das insularidades, das autonomias. A nossa visão é totalmente diferente. Não somos um partido regional, porque infelizmente a Constituição da República, por enquanto, não permite partidos regionais.

Filipe Sousa

Cofundador e deputado eleito pelo Juntos pelo Povo para a Assembleia da República

Filipe, irmão do líder deste que é o segundo partido no Parlamento da Madeira, Élvio Sousa, promete que só estará na AR quando tal for estritamente necessário, passando o resto do seu mandato parlamentar a percorrer o país, a denunciar as “ilhas” de exclusão.

“As ilhas não são só aquelas do ponto de vista geográfico, Madeira e Açores, e constrangimentos associados. Há um conjunto de ilhas, idosos abandonados e marginalizados, classe média empobrecida, jovens que acabam a formação superior e não têm oportunidade de emprego, doentes que morrem à porta dos hospitais à espera de uma consulta anos e anos”, explica o deputado, que tem já visita marcada para meados deste mês ao Peso da Régua, para reunião com viticultores que vivem as dificuldades do escoamento da produção.

O até há dias presidente da Câmara de Santa Cruz diz-se “ansioso por sair do gabinete e ir conhecer o país real”.

O deputado revela já ter sido procurado por jovens que revelaram ligação ao partido Volt. “Recebi com algum agrado o fato de acompanharem trabalho do JPP. Transmitiram-me que viam no JPP a oportunidade de fazer algo diferente. Notei neles uma visão diferente. O país precisa de uma geração de políticos que tenha as ‘palas abertas’. Nós estamos numa sociedade de partidos fechados em si mesmos em que não conseguem perceber o país real”, considera o agora ex-autarca.

Ainda sobre os jovens que o procuraram logo no seu segundo dia no Parlamento, e que o deputado aceitou receber, diz que poderá haver já união de esforços nas autárquicas e que poderão estender-se até às europeias: “Eles têm implantação interessante, que nós não temos”.

Filipe Sousa deixa uma perspetiva sobre a orientação política do seu partido: “Os meus pais sempre me educaram a olhar para a direita e para a esquerda, sem barreiras. Na tropa aprendi, na carreira de tiro, que quando estou a apontar a mira consigo ver o que está à direita e à esquerda sem virar os olhos. Na política tenho essa visão”.

No dia 3, o deputado do Juntos Pelo Povo participou pela primeira vez nos trabalhos de uma sessão plenária da XVII Legislatura, na Assembleia da República, em Lisboa. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Sem disciplina de voto num partido nacional e sem ter de se “agachar”

Chegado a São Bento num partido de cariz regional, Filipe Sousa poderá negociar medidas a favor da sua região sem olhar à habitual disciplina de voto de deputados eleitos em forças partidárias de cariz nacional. Além do propósito de obrigar o Governo a regulamentar a Lei de 2019 relativa à continuidade territorial, o deputado madeirense, um dos seis eleitos pela região autónoma, quer também ver executado o lançamento do concurso público internacional para a linha de transporte marítimo de carga e passageiros entre a Madeira e o continente.

“Está no OE 2025. A dúvida está se esse concurso vai ser lançado ou não. Tenho de dar o benefício da dúvida. Tem que haver união dos seis, obrigar o Governo a lançar esse concurso. Meio caminho andado já está, porque está em sede de Orçamento do Estado, é bom”, nota.

De forma clara, uma força partidária germinada numa região e com força eleitoral apenas ali – dos cerca de 21 mil votos obtidos nos 22 círculos eleitorais, um só, o da Madeira, forneceu 17.115 – chega ao centro político nevrálgico da República, tornando mais vincado aquilo que se viveu neste mesmo Parlamento no início do século, quando um deputado eleito pelo CDS no círculo de Viana do Castelo, Daniel Campelo, se juntou, à revelia, aos 115 deputados do PS.

Com essa chave para o desempate foram aprovados dois Orçamentos do Estado (OE) do Governo de António Guterres, aos quais foram acrescentadas medidas benéficas para a região pela qual o deputado de Ponte de Lima foi eleito, entre as quais a manutenção de uma fábrica de queijos, dando origem à expressão de “orçamento limiano”.

Para já, como nota Filipe Sousa, a Constituição não permite partidos regionais, mas a intenção do JPP é alterar o documento fundamental da República, admitindo aproveitar a iniciativa tomada pelo Livre, de forma a “acabar com este centralismo. Nada contra Lisboa”, salienta.

Falando dos deputados eleitos pela Madeira, mas vinculados a forças políticas criadas no continente, Filipe Sousa diz que esses representantes da região “são, infelizmente, comandados pelo centralismo dos partidos em Lisboa, e agacham-se nas questões de fundo que vão resolver problemas das insularidades, das autonomias. A nossa visão é totalmente diferente. Não somos um partido regional, porque infelizmente a Constituição da República, por enquanto, não permite partidos regionais”.

Assim, mesmo com variação no número de votos mínimos para eleger um deputado em cada círculo eleitoral, o exemplo do JPP é claro: foi possível chegar à Assembleia da República a partir de um movimento de cidadãos criado numa freguesia com menos de 4.000 habitantes, pertencente a um concelho com 43 mil habitantes.

Este partido nasceu enquanto movimento popular na freguesia de Gaula, concelho de Santa Cruz, e em 2013 venceu as primeiras autárquicas com maioria absoluta, fazendo de Filipe Sousa presidente da câmara.

Um ano depois, a olhar para a candidatura às legislativas regionais, viu-se na obrigação de passar a partido – alteração contestada, à data, pelo agora deputado da República, mas que, como o próprio admite ao ECO/Local Online, provou ser uma decisão acertada –, passando no obrigatório crivo do Tribunal Constitucional.

Uma década depois, subiu a segundo partido mais votado nas eleições regionais de 23 de março último e, a 18 de maio, Filipe Sousa recebeu, pela vontade de menos de 20 mil madeirenses, bilhete para Lisboa.

A título de curiosidade, se cada um dos 230 deputados viajasse para São Bento com uma base de apoio tão reduzida, não seriam necessários sequer 3,5 milhões de portugueses para eleger todo o parlamento. Só que, na realidade dos números, houve mais de 6 milhões de pessoas a depositar o seu voto em urna.

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