Quem comete fraudes com fundos deve entrar numa lista negra e nunca mais ter apoios públicos

Ana Abrunhosa é um dos nomes apontados para disputar a Câmara de Coimbra pelo PS. "A minha decisão, neste momento, não tenho medo de o dizer, está pendente de uma decisão familiar", diz ao ECO.

Quem é apanhado em esquemas de fraude com fundos europeus devem “entrar numa lista negra a nível europeu e jamais ter acesso a fundos públicos — sejam europeus ou de outra natureza”, defende a ex-ministra da Coesão Territorial. “É quase uma pena de morte”, diz Ana Abrunhosa no ECO dos Fundos, o podcast do ECO dedicado aos fundos europeus.

“Quando se comprova que praticaram atos fraudulentos, independente do sítio ou da empresa onde estejam a trabalhar, nunca mais podem candidatar-se a fundos europeus. Não nos circunscrever à entidade jurídica, à empresa, porque assim vão constituir outra empresa. Mas as próprias pessoas ficarem marcadas para o resto da vida, porque não são de confiança“, defende a agora deputada socialista que teve a tutela dos programas operacionais regionais no anterior Governo.

Ana Abrunhosa admite que “o risco é grande” de que será necessário recorre ao Orçamento do Estado para devolver a Bruxelas os apoios pagos indevidamente a Manuel Serrão no âmbito da Operação Maestro — que investiga a atribuição indevida de 39 milhões de euros de fundos europeus ao longo de oito anos –, porque “quando estas pessoas fazem estes esquemas, também se protegem e o seu património”, reconhece. Mas alerta para o risco de se cair na tentação de adicionar ainda “mais camadas de controlo” que aumentarão a “carga burocrática”. “Não há sistemas completamente blindados à fraude”, recorda.

Totalmente adepta da simplificação alerta: “Quando simplificamos temos depois de monitorizar e fiscalizar. E não temos máquina para isso”.

A ex-ministra elogia a intenção do Governo de voltar a tentar simplificar a contratação pública, lamenta o facto de, no discurso político, se ter deixado de se falar do território e do interior e de haver “alguma oportunidade política” nas críticas do atua Executivo à execução dos fundos europeus. “Passados uns meses, verificamos que a execução se mantém quase igual”, frisa. “Nestes quatro meses a execução não deu um salto. Também não era expectável que desse. É a realidade dos factos”, concluiu.

 

Como vê as críticas sistemáticas do atual Executivo à má execução dos fundos europeus?

Vejo como preocupação, no entanto, quem está a frente da pasta atual dos fundos europeus é um conhecedor da realidade e sabe perfeitamente que é comum os quadros comunitários atrasarem-se, neste caso Portugal 2020 e, por isso também, atrasa o início do Portugal 2030. Adicionalmente, temos o PRR. Creio que a sua grande preocupação é o PRR. Preocupação que partilhamos, porque temos pouco tempo para o executar. Mas também acho que há alguma oportunidade política, porque, passados uns meses, verificamos que a execução se mantém quase igual. É prova de que, antes de vermos execução física, uma obra, antes de ter execução financeira tem, no mínimo, dois anos de trabalho, com tudo a correr bem, porque temos um conjunto de procedimentos. Aí quero deixar uma nota de congratulação ao esforço que está a ser feito para a simplificação, mas também deixando uma preocupação: quando simplificamos temos depois de monitorizar e fiscalizar. E não temos máquina para isso.

Há alguma oportunidade política [nas críticas à execução dos fundos europeus], porque, passados uns meses, verificamos que a execução se mantém quase igual.

Concluindo, nestes quatro meses a execução não deu um salto. Também não era expectável que desse. É a realidade dos factos. Temos o mercado da construção aquecido. Passámos por uma pandemia onde pararam, passámos por um período inflacionista onde houve algumas obras cujo preço duplicou. As próprias empresas que tinham ganhado obra desistiram de muitas das obras ao preço que tinham ganhado, porque diziam que era incomportável. Os preços mudavam de semana para semana. Aliás, os empreiteiros só davam orçamentos com o prazo de validade de uma semana. Um ano ou dois depois de passarmos a pandemia e este período inflacionista terrível, é fácil agora estar a criticar. Mas temos alguém à frente dos fundos que é conhecedor e que também não se deteve muito tempo na crítica. Também quero agradecer-lhe por isso, porque se preocupou mais na execução e em olear a máquina. A maior preocupação não é o Portugal 2030, mas o PRR, porque tem um prazo de execução muito curto. Estamos a falar de investimentos muito grandes e sobretudo de investimento na própria administração do Estado.

Vê com bons olhos a iniciativa do Executivo de voltar a rever as regras dos contratos públicos?

Essa foi sempre uma tentativa do Governo PS. Recordo que nós próprios fizemos alguma alterações: as obras só passam pelo visto prévio do Tribunal de Contas a partir dos 750 mil euros, adotámos algumas simplificações. Mas sempre que o fazemos temos o Tribunal de Contas a dar alertas: ai Jesus que estamos a mexer nas regras para permitir fazer contratos com amigos. De uma vez por todas, temos de encontrar um equilíbrio mesmo, também daquilo que é a visão política e pública destas questões, porque simplificar é, de facto, eliminar algumas regras. Exige depois monitorizar e fiscalizar e mão pesada para quem não cumpre e exige, sobretudo, uma grande relação de confiança. Nos contratos públicos, sabemos — é o caso de Espanha e de outros países — que adotaram regras de contratação públicas especiais para os projetos do PRR. Aqui já não vamos a tempo. Estamos a falar de flexibilizar ou de retirar algumas regras que pesam nos prazos, e sobretudo depois na execução. Mas estamos a falar de entidades que, em geral, são muito cumpridoras e têm muitos níveis de fiscalização, independentemente de terem ou não fundos europeus. No fundo, é algo equilibrado.

Falando de fraude nos fundos. Como foi possível, quando existem mais de dez entidades fiscalizadoras dos fundos europeus, um caso como o investigado pela Operação Maestro? Uma alegada fraude perpetrada ao longo de oito anos com fundos europeus.

Porque, por muitas regras que tenhamos, as autoridades de gestão não têm os meios que têm as autoridades judiciais. Quando há falsificação, quando há uma operação concertada, demora tempo. A verdade é que foi a própria autoridade de gestão que detetou, que teve a suspeita e que a transmitiu ao Ministério Público. A autoridade de gestão, neste caso o Compete, quando encontrou provas e indícios, alertou as autoridades judiciais. Não temos escutas, nem os meios para fazer a investigação judicial, temos muitos procedimentos que se cruzam entre si. E hoje, com os sistemas de informação que temos, é muito mais fácil. Mas não há sistemas completamente blindados à fraude. Não há. Não estou a falar deste caso concreto. Mas quando há várias entidades concertadas para ter aproveitamento, obviamente, são coisas já muito elaboradas. Ainda bem que foram apanhados, mas foram pela própria autoridade de gestão. Significa que os mecanismos de controlo funcionaram.

Nunca vamos conseguir ter um sistema blindado. Vamos aperfeiçoando. Mas, se depois de um caso destes começamos a pôr camadas de proteção e camadas de verificações, então voltamos à situação de penalizar quem vem por bem.

Estas situações fazem-nos refletir, mas depois voltamos a ter outro problema. Se depois desta situação pusermos mais camadas de controlo, significa que os que vêm por bem a seguir vão ter uma carga burocrática enorme. Andamos sempre neste dilema de confiar, de fiscalizar, mas nunca, a partir daqui, blindar e considerar que os próximos vêm com más intenções. Quem faz a gestão destes fundos sabe sempre que há um nível de risco, que tem de ser controlado. Por isso, temos os procedimentos e as auditorias. Uma autoridade de gestão tem uma entidade de controlo e auditoria, que é separada do resto da equipa, precisamente para fazer as suas auditorias com independência. Depois temos a Agência para o Desenvolvimento & Coesão, a Inspeção Geral de Finanças, o Tribunal de Contas e entidades europeias que fazem auditorias. Nunca vamos conseguir ter um sistema blindado. Vamos aperfeiçoando. Mas, se depois de um caso destes começamos a pôr camadas de proteção e camadas de verificações, então voltamos à situação de penalizar quem vem por bem.

A solução seria penalizar de modo mais pesado os prevaricadores, para desincentivar a fraude?

A solução é essa. Penalizar a entidade e os indivíduos. Quando se comprova que praticaram atos fraudulentos, independente do sítio ou da empresa onde estejam a trabalhar, nunca mais podem candidatar-se a fundos europeus. Não nos circunscrever à entidade jurídica, à empresa, porque assim vão constituir outra empresa. Mas as próprias pessoas ficarem marcadas para o resto da vida, porque não são de confiança. Em primeiro lugar, são os nossos impostos. Em segundo, as verbas desviadas indevidamente não foram aplicadas noutros projetos. Há aqui um custo de oportunidade elevado e um capital de confiança que se perde. O nosso país, no âmbito de ações que a própria Comissão Europeia faz, não tem tido más avaliações. Pelo contrário, temos tido boas. Mas estes casos mancham a nossa reputação. Agora vamos imaginar que as entidades apanhadas nas malhas do controlo e da Justiça não têm verbas para devolver. Estas verbas, a partir do momento em que são consideradas ilegalmente atribuídas, temos de as devolver à União Europeia. Se não o conseguirmos recuperar é o nosso Orçamento de Estado, que é utilizado para devolver os fundos à UE.

Neste caso específico, corremos esse risco?

Parece-me que o risco é grande. Uma parte destes fundos europeus não era a fundo perdido, mas reembolsáveis. Mas estas entidades, a partir do momento em que vão para a falência, não haverá lugar a reembolso. Terá de ser o tribunal a tentar encontrar meios de conseguir o reembolso destas verbas, nem que seja ir ao património destas pessoas. Mas também sabemos que quando estas pessoas fazem estes esquemas, também se protegem e o seu património. As pessoas quando são apanhadas nestes esquemas terão de entrar numa lista negra a nível europeu e jamais ter acesso a fundos públicos — sejam europeus ou de outra natureza. É quase uma pena de morte. Estas entidades e os indivíduos nunca mais deveriam de ter apoios com fundos públicos, seja com Orçamento de Estado, das autarquias ou fundos europeus.

As pessoas quando são apanhadas nestes esquemas terão de entrar numa lista negra a nível europeu e jamais ter acesso a fundos públicos — sejam europeus ou de outra natureza. É quase uma pena de morte.

Quanto olha para trás, teria feito alguma coisa de modo diferente para acelerar a execução dos fundos?

Tentei durante muito tempo alterar o Código da Contratação Pública. Mas, a própria Associação Nacional de Municípios, para para nosso espanto, foi contra a nossa proposta de alteração. Percebo porque foi contra, apesar da surpresa: não estavam para ser sujeitos a comentários permanentes, a uma suspeição pública permanente. Obviamente que, olhando para trás, haveria outras coisas, que teríamos feito diferente. Coloquei toda a minha força e energia quando tive estas funções e exerci-as sempre com grande gosto. Nunca nos afastamos, mas acho que a pasta está muito bem entregue e, mais uma vez, saberemos aproveitar bem estes fundos. Lamento profundamente não termos conseguido, até porque tínhamos maioria na Assembleia da República. O que é que nos travou? Ainda tentámos, ainda fizemos alterações, mas depois a própria Comissão Europeia notificou-nos e iria iniciar um procedimento contra nós se não tivéssemos voltado atrás. É muito difícil fazer alterações. No caso do PRR, ter-se-ia justificado, como outros países fizeram, porque abriram um precedente, fazer um Código da Contratação Pública especial para os projetos do PRR. Estamos sempre a aprender. É muito difícil fazer alterações quando estamos preocupados com a forma como vamos combater a inflação, tivemos de fazer a reprogramação do PRR… Se calhar é algo que também este Governo terá de fazer.

Já disse que o fará em 2025.

O PRR tem uma parte dos projetos paga com o fundo perdido e outra com empréstimos. Na última reprogramação o que fizemos foi passar para os empréstimos os projetos que achávamos que podiam derrapar no tempo, porque os empréstimos não são tão arriscados de perder. Passámos a ter só com financiamento a fundo perdido projetos em que o prazo estava mais ou menos controlado. Obviamente que agora, passado uns meses, é normalíssimo que quem esteja com a coordenação e com a responsabilidade do dossier tenha de rever todos os projetos. Estavam todos identificados na pasta de transição. As reuniões que agora terão tido já terão assinalado os projetos, de risco. Há coisas que não controlamos, como concursos desertos que obrigam a lançar novos. Terá de haver sempre um ajuste daquilo que é a nossa real possibilidade de execução e os projetos que conseguimos executar. Muitas as vezes perguntavam-nos: porque não puseram a ferrovia, por que não puseram hospitais? Não estavam hospitais no PRR, porque são projetos com prazos muito longos.

Um dos dossiês pelos quais também se bateu fortemente foi pela abolição das portagens nas ex-SCUT. Apesar da maioria do PS no Parlamento não conseguiu. Mas assim que chegou à oposição a medida foi aprovada. Como se sentiu?

Quando me sentei no Parlamento, as portagens já tinham sofrido uma redução de 5%. As portagens foram reduzidas em 2011, pela primeira vez, nas ex-SCUT. Reduzimos em 65%, portanto, era um esforço adicional, era uma promessa que tínhamos feito em campanha. Estava no nosso programa e senti-me bem. Compreendo que não é um dossiê fácil e que o interior justifique a descriminação. Não compreendo que se compare o incomparável. É algo que neste Governo nos está a preocupar. Entendo que estão há pouco tempo e há dossiers mais prementes, mas no discurso político, deixou de se falar do território e do interior. Muitas vezes comparamos o pagamento de portagens no interior com o pagamento de portagens em Lisboa. Como é possível comparar a vida e a mobilidade de alguém no interior, que não tem transportes públicos, com alguém que vive num território onde há uma diversidade de transportes públicos e onde sistematicamente estamos ainda a investir, nomeadamente no PRR? Fomos muito criticados, por exemplo, porque nos Metros fizemos grandes investimentos no âmbito do PRR, na área metropolitana de Lisboa e do Porto. Fizemos bem, precisamente para dar condições de mobilidade a estas pessoas.

Nalgumas áreas, investir no litoral também é fazer coesão, porque é estar a pôr os recursos onde temos os problemas. Coesão é isto: é ser medidas específicas para os problemas em concreto.

É uma crítica que se pode fazer que no PRR se investiu excessivamente no litoral em detrimento do interior?

O PRR tem muito investimento no interior, mas o PRR visava resolver problemas da pandemia. Enquanto ministra da Coesão, fiquei muito pacificada com a repartição do bolo para o litoral e interior, até porque muito desse apoio dependia de candidaturas, que era o caso das habitações. Os municípios do interior também estão hoje a fazer investimentos em habitação porque fizeram as suas estratégias locais de habitação e amadureceram os seus projetos. Agora não podia fechar os olhos a áreas onde se veio a revelar que problemas de mobilidade nos transportes eram terríveis e continuavam a ser. Temos de fazer face a esses problemas, porque é lá que temos as pessoas. Temos de melhorar a qualidade na mobilidade, habitação e também na área da saúde. Dedicámos na área metropolitana de Lisboa o PRR a equipamentos hospitalares — não para hospitais –, porque, se formos a ver, é talvez a área do país onde temos maior concentração de população, mas onde temos ainda hospitais ou unidades de saúde com grandes necessidades de investimento. E o PRR foi exato para isso. A minha perspetiva é sempre defensora do interior, mas também de colocar os recursos onde os problemas existem. Não podemos, simplesmente, pôr o litoral contra o interior ou o interior contra o litoral. Temos de perceber do que é que estamos a falar. Nalgumas áreas, investir no litoral também é fazer coesão, porque é estar a pôr os recursos onde temos os problemas. Coesão é isto: é ser medidas específicas para os problemas em concreto.

Não é segredo para ninguém que o PS já está a começar a preparar as próximas autárquicas e que o seu nome é falado como uma forte possibilidade para Coimbra. Como é que está a refletir? E para que lado começa a pesar a balança nessa equação?

Sinto-me muito honrada por o meu nome ser equacionado para uma cidade que amo muito. Uma cidade onde passei a maior parte da minha vida pública e onde tive a minha filha, onde tenho minha casa e uma base familiar. Neste momento, estou num período de reflexão porque abraçar uma missão dessas é uma missão de vida. Conheço-me e sei que se disser que sim, vou pôr toda a minha energia. Estou naquela fase da vida em que me está a saber muito bem, finalmente, ter fins de semana, ter um bocadinho de vida. Os últimos 20 anos foram muito duros, não os lamento. Fui sempre muito feliz. Em setembro terei de comunicar a minha decisão. Mas é uma decisão não só da Ana Abrunhosa, mas da família da Ana Abrunhosa. Estas decisões afetam toda a família e para mim, no topo das prioridades está a minha família. Já sou muito realizada profissionalmente. Sinto que não tenho nada a provar. A minha decisão, neste momento, não tenho medo de o dizer, está pendente de uma decisão familiar, porque a família, neste momento, é o mais importante. Embora me sinta muito realizada em projetos profissionais que abraço e por isso, em setembro tomarei a minha decisão.

  • Diogo Simões
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