“Europa devia renovar a dívida que contraiu, em vez de a pagar totalmente”

O "exagero das discussões" sobre as contribuições para o orçamento da UE "faz esquecer aos cidadãos que é como fazer parte de um clube e ter de pagar uma quota", diz Elisa Ferreira.

“A Europa tem de encontrar meios para se financiar se quer acrescentar competências”, ao nível da Defesa, mas também fazer um alargamento e começar a pagar, a partir de 2027, as taxas de juro do empréstimo que fez para financiar a bazuca europeia. A constatação é de Elisa Ferreira, a comissária europeia para a Coesão e Reformas, que cessou funções a 30 de novembro. “Continuarmos a pensar que uma estrutura desta dimensão pode funcionar com um orçamento de 1% do Rendimento Nacional Bruto é ilógico”, sublinhou ao ECO dos Fundos, o podcast quinzenal do ECO sobre fundos europeus.

Numa sugestão pessoal, a responsável defende que “a Europa precisava de pensar também em renovar a dívida que contraiu, em vez de estar a pagar totalmente e acabar com toda a dívida”. Esta opção daria recursos adicionais ao Orçamento comunitário e seria um “fator de estabilização dos mercados financeiros” que “precisam de dívida segura, de longo prazo, estável e onde as pessoas possam ancorar as suas poupanças”.

Recorde-se que a própria presidente do Banco Central Europeu, Christie Lagarde, defende a criação de um “padrão europeu de poupança”, que ofereça produtos transparentes e acessíveis em toda a União Europeia e capte as poupanças das famílias europeias.

Elisa Ferreira cita os relatórios Draghi e Letta também, que alertam que “a Europa não pode ficar apática perante a concorrência quase desenfreada no âmbito das novas tecnologias, entre China, Estados Unidos, com subsídios, etc” para defender a “necessidade de mais recursos”, caso a UE queira mais competências.

O seu mandato chegou ao fim. Considera que foi o mais difícil em termos de Política de Coesão e Desenvolvimento Regional?

Foi difícil, mas resultou. E isso, no fim, é o que interessa. Numa política que às vezes é classificada como sendo pesada e rígida, etc, conseguimos rapidamente, em matéria de semanas, alterar a legislação e permitir que os países a utilizassem numa emergência do Covid ou da entrada de refugiados ucranianos, que estavam a fugir da invasão russa, ou na subida dos preços da energia.

Conseguimos ir adaptando a política às circunstâncias que estavam a acontecer. E isso foi um bocadinho único. Nunca na história da Europa isso tinha acontecido. Mas conseguimos fazer isso com uma grande colaboração do Parlamento Europeu, Comité das Regiões, Conselho, portanto, os Estados-membros.

Enquanto na crise de 2008 tivemos um período muito, muito longo, de mais de 11 anos para a recuperação das regiões e dos países mais frágeis, desta vez, na pandemia – com a possibilidade de utilizar os envelopes financeiros da Política de Coesão para manter as empresas vivas, manter os postos de trabalho de numa forma artificial durante o encerramento, o apoio aos miúdos na escola com os computadores, as máscaras – passados dois anos, em média, as regiões mais pobres, tinham voltado ao nível de rendimento que tinham em 2019, no ano anterior ao início da pandemia. É só um exemplo.

É uma flexibilidade que ficou para o futuro? A partir de agora a Comissão Europeia está mais apetrechada para combater crises?

Ficou, sobretudo, a metodologia, a filosofia de que, de facto, é verdade que a Política de Coesão tem de continuar a ser uma política de longo prazo. Por isso é que se pretende financiar não os projetos que estão já prontinhos e que são financiáveis pelos meios próprios das regiões, mas sim fazer coisas que não seriam possíveis de outra forma.

E Portugal fez isso. Portugal nunca teria conseguido criar um grande grupo, como é o Grupo das Águas de Portugal, ou fazer a rede de autoestradas que temos, porque não tinha meios próprios para o fazer. A Política de Coesão não pode deixar de ser uma política de crescimento, de desenvolvimento. Falamos das infraestruturas, porque é o mais óbvio, mas também poderíamos falar da ciência e da tecnologia, da investigação, da educação, da formação profissional.

Tem de ser uma política de médio longo prazo. No entanto, mesmo agora, no fim, sobretudo quando aconteceram mais dramas de caráter climático, por exemplo, tentámos deixar um texto – que se chama Restore (restaurar, recuperar) – que permite, de uma forma mais normal os países reservarem dentro dos seus envelopes financeiros um determinado montante, que pode ir até 10%, para financiar em catástrofes naturais, numa preocupação de anteciparmos o que ainda pode vir a acontecer.

Ainda não tinha acontecido o problema gravíssimo de Valência, mas, uns atrás dos outros, foram dramas horríveis: a Croácia teve dois tremores de terra terríveis; houve incêndios em Portugal e na Grécia; cheias no centro da Europa. Num espírito de utilizar os fundos para ter uma postura preventiva e nunca construir as coisas exatamente como estavam antes, que é a lógica do Fundo de Solidariedade que sempre apoiou em todos estes processos, mesmo no vulcão de La Palma.

E o Fundo de Solidariedade?

O Fundo de Solidariedade está muito esgotado. É um fundo que demora bastante tempo a ser ativado. Estamos a tentar que a Política de Coesão se prepare para estas eventualidades. São 10% a 12% nestas ações todas que referi de emergência de cada envelope para o que os países precisaram. Acho que resultou.

Agora, se queremos que a Europa se mantenha unida, não podemos ter regiões e países como meros fornecedores de mão-de-obra e depois uma acumulação de população, sobretudo de população qualificada nas zonas mais ricas da Europa. A Política de Coesão tem de continuar a ser uma política de fundo precisamente para reequilibrar as oportunidades de concorrência nos vários espaços europeus.

Se queremos que a Europa se mantenha unida, não podemos ter regiões e países como meros fornecedores de mão-de-obra e depois uma acumulação de população, sobretudo qualificada nas zonas mais ricas da Europa.

Como vê o risco de a Política de Coesão vir a ser chamada a financiar a defesa e a segurança da UE? Já começámos a assistir à Coesão a ser usada para os esforços de guerra na Ucrânia.

Não. A Política de Coesão não foi quem financiou os esforços de guerra na Ucrânia. A Política de Coesão foi reprogramada para ajudar as regiões, sobretudo polacas, romenas, que receberam, de repente, milhões de refugiados, a acolhê-los e a não falirem debaixo da pressão de toda essa gente a chegar, conseguir integrá-los, dar formação, educação aos miúdos, assistência médica, etc. Isso foi uma emergência.

De resto, a Política de Coesão tem de se manter enquanto política de desenvolvimento, porque senão o mercado interno também não pode funcionar. O mercado interno de concorrência só funciona se houver, de facto, algum equilíbrio entre as regiões nessa capacidade de concorrer.

Dizia-me um colega polaco, há muitos anos já, quando o convidei a falar para estudantes sobre como é que a Polónia via Portugal – cito isto muitas vezes porque achei que era uma imagem muito nítida do que é o mercado interno – que Portugal é um exemplo. Nós, portugueses, não estamos muito habituados a isto, mas sendo Portugal um país que não é próximo da Polónia, não é altamente reconhecido como muitíssimo competitivo, no entanto, a maior empresa de construção civil na Polónia é portuguesa, a maior distribuidora de produtos alimentares é portuguesa e o maior banco privado é português.

Isto é, o mercado interno a funcionar. Em termos europeus, é um bocadinho surpreendente que um país como Portugal beneficie deste alargamento do mercado. Isto só é possível precisamente porque o rendimento per capita dos polacos subiu brutalmente desde a adesão até agora. Foram construídas as tais infraestruturas, estruturas sociais, estrutura financeira, etc. A coesão e o mercado interno, são as duas faces da mesma moeda.

Dito isto, a sua pergunta tem implícito que a Europa tem de encontrar meios para se financiar se quer de facto acrescentar as suas competências para a área da defesa, quer fazer um alargamento, tem de começar a pagar as taxas de juro do empréstimo que fez, a partir de 2027. E tem de avançar.

Aí está o relatório do Draghi, e o relatório Letta também, a dizer a Europa não pode ficar apática perante a concorrência quase desenfreada no âmbito das novas tecnologias, entre China, EUA, com subsídios, etc. Precisamos de mais recursos se queremos mais competências.

Os Estados-membros vão ter de contribuir com mais do que 1% do Rendimento Nacional Bruto para o orçamento comunitário?

Continuarmos a pensar que uma estrutura desta dimensão funcionar com um orçamento de 1% do Rendimento Nacional Bruto é ilógico. E, sobretudo, as divisões que se geram de cada vez que se define a contribuição de cada país para o orçamento europeu para o tal 1% o que se diz, o exagero das discussões faz esquecer aos cidadãos que isso é como fazer parte de um clube e ter de pagar uma joia, uma quota para o mesmo.

E o clube não é meter no orçamento europeu o mesmo que se tira de lá. Se não, não era preciso orçamento. A contribuição o que permite é um acesso a um mercado excecional de 450 milhões de habitantes e termos as livre circulações de investimento, de pessoas, etc. É essa a discussão. Há outras fontes.

E, enquanto comissária, posso de facto dizer que me parece absolutamente essencial desenvolver aquelas áreas que ficaram latentes. Com todas estas emergências, com toda esta instabilidade, neste período não se avançou suficientemente.

Na minha opinião, e não é como comissária, é pessoal, a Europa precisava de pensar também em renovar a dívida que contraiu, em vez de estar a pagar totalmente e acabar com toda a dívida.

Como por exemplo?

Havia dossiers que estavam previstos avançar e que não avançaram o suficiente, como o dossier dos recursos próprios. Avançou um bocadinho a defesa em relação às importações que não cumprem as normas ambientais mínimas de produção.

Mas vamos ver como é que avança a inspirada proposta que nasceu da OCDE de que também as multinacionais e as grandes empresas, que operam em vários países, tenham uma taxa mínima de contribuição. E, na minha opinião, parte dessa contribuição do mínimo de 15%, depois como chave de repartição, deveria contribuir também para o orçamento europeu.

Estamos a falar de empresas que beneficiam imenso do mercado interno, mas depois não contribuem para os orçamentos nem dos países, nem da União, porque, no fundo, acabam por beneficiar desta falta de coordenação a nível dos impostos diretos sobre as empresas. Declaram tudo nos pseudo, custa-me chamar-lhes assim, paraísos fiscais que ainda existem dentro da Europa, jurisdições muito específicas que depois acabam por colocar isto nos paraísos fiscais do mundo.

Este é outro tema, mas há outros. O Parlamento Europeu tinha sido muito ativo e quase chegávamos a uma concretização no que diz respeito à taxa sobre os produtos financeiros – ficou conhecida como financial transaction tax. Quase chegou à luz do dia, porque as transações financeiras são muito excessivas, às vezes explosivas. E o argumento de que depois pagam o IVA quando chegam ao mercado da economia real, mas muitas delas não chegam a esse desiderato e, portanto, não se entende muito bem porque é que não haverá uma contribuição, até porque tenha alguns elementos de estabilidade.

Para além de todas estas fontes alternativas que, naturalmente, depois têm muitas dificuldades de ver a luz, porque cada Estado vai levantar problemas, na minha opinião, e não é como comissária, é pessoal, a Europa precisava de pensar também em renovar a dívida que contraiu, em vez de estar a pagar totalmente e acabar com toda a dívida.

E o mercado parece ter grande apetite para essa mesma dívida. Todas as emissões feitas para financiar a bazuca têm sempre uma procura muitíssimo superior à oferta. Seria uma forma também de captar as poupanças das famílias europeias?

É o fator de estabilização dos mercados financeiros. Os mercados precisam de dívida segura, de longo prazo, estável e onde as pessoas possam ancorar as suas poupanças.

Quando se sente, e sente-se muitas vezes, a falta desse tipo de produtos… Pessoalmente suspeito que grande parte do sobreaquecimento que se nota no mercado imobiliário de toda a Europa, resulta também de o imobiliário estar a funcionar como um safe asset, como uma reserva de valor que é garantida e vai gerando nos balanços uma revalorização automática através, exatamente, deste jogo de excesso de procura.

E muitas vezes este bem não chega a servir o desiderato para o qual é construído, na medida em que muitos destes investimentos ficam-se por um investimento e não chegam sequer a servir a função da habitação que normalmente os justifica.

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