Elisa Ferreira considera que alguns países, "na ânsia de apresentarem projetos" no PRR, optaram por uns que "não modificam nada, só poupam ao erário público ou aos mecanismos de investimento privado".
A nova Comissão Europeia vai ter no seu caderno de encargos a discussão dos fundos para o próximo quadro comunitário de apoio, o pós-2027. Há quem defenda que aos fundos de coesão se deveria aplicar a mesma lógica de atribuição da usada no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR): os governos negociarem com Bruxelas um conjunto de metas e reformas de cujo cumprimento está dependente o pagamento dos apoios. A comissária europeia da Coesão e Reformas cessante, Elisa Ferreira, alerta que esse caminho seria “fatal” para a Política de Coesão. Classifica a opção como “dar um cheque ao senhor primeiro-ministro” e defende que a solução passa por dar à Política de Coesão “uma dimensão muito mais estratégica”.
“É uma solução preconizada sobretudo por aqueles que também ocupam a posição de net contributours”, que consideram que contribuir com 1% do Rendimento Nacional Bruto para o orçamento da União Europeia “é pagar demais”. “Pessoalmente, com a experiência que já tenho, estou convencida que se recebermos um cheque em que o primeiro-ministro de Portugal, mas também o primeiro-ministro da Hungria ou o primeiro-ministro da Roménia, fica com uma mão um bocadinho livre para utilizar da maneira que quer, perdemos completamente o controlo e a transferência ocorre uma vez, não ocorre segunda vez”, diz Elisa Ferreira no ECO dos Fundos, o podcast quinzenal do ECO sobre fundos europeus.
Tendo o cuidado de sublinhar que não está contra o PRR, considera que “uma tentativa de assimilar, de comparar, esse apoio de emergência de curto prazo com a Política de Coesão, e de substituir uma pela outra”, é “absolutamente errado e muito perigoso”.
Elisa Ferreira reconhece que em Portugal falta uma estrutura entre o nível central e o dos 308 municípios, “excessivamente atomizado” para definir políticas de desenvolvimento, não para políticas de proximidade e admite que as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) têm potencial para assumir esse papel, mas “estão subjugadas debaixo de tarefas burocráticas e de gestão que de facto reduziram muita capacidade pensante”.
Já se começou a discutir o pós-2027 em termos de Política de Coesão, admitindo-se que os fundos de coesão passem a ser atribuídos numa lógica PRR e não como têm sido atribuídos até aqui. O que lhe parece essa alteração de lógica de atribuição destes fundos?
Parece-me fatal para a Política de Coesão. Se isso acontecer, acho que a Política de Coesão, enquanto tal, acaba. Sou uma grande apologista e estou muito orgulhosa, de ter feito parte de uma Comissão que quebrou um tabu: ir ao mercado emitir dívida. Foi importante porque estávamos com o orçamento esmagado e fizemos, como todos os outros grandes blocos fizeram, uma política anticíclica perante uma quebra da economia, emitiu-se e distribuiu-se para fins anticíclicos, para evitar uma rutura total da economia europeia. Acho que foi muito importante. Dito isso, uma tentativa de assimilar, de comparar esse apoio de emergência de curto prazo com a Política de Coesão e de substituir uma pela outra parece-me absolutamente errado e muito perigoso.
Porquê?
Porque a Política de Coesão tem por objetivo a coesão, é para reequilibrar a dinâmica dos territórios. E é isso que faz com que Portugal tenha recebido fundos.
A lógica PRR pode permitir que sejam projetos a mais longo prazo, em que se defina a verdadeira reforma estrutural que os países precisam de fazer e os grandes investimentos que precisam de fazer? Apostar em menos coisas, mas mais diferenciadoras?
Mas isso não se faz através de um PRR. Isso faz-se através de uma análise… Não estou contra o PRR, foi muito bom e anticíclico. Mas os projetos que estão prontos para serem executados num período muito curto são os que já estão praticamente prontos e que estavam para ser financiados ou pela Política de Coesão ou pelos recursos normais dos países. Quando se tem um instrumento anticíclico, ele por definição, tem de gerar transferências a muito curto prazo. Muitas vezes, o que acontece é que são chamados os frutos maduros, que são naturalmente localizados nos países mais fortes e nas regiões mais fortes. Em termos de coesão, alguns países conseguiram conciliar a política porque assumiram como prioridade nacional terem um território mais equilibrado. Outros países, simplesmente na ânsia de apresentarem projetos, foram fazer projetos que não modificam nada, apenas poupam ao erário público ou aos mecanismos de investimento privado. Portanto, substituem o investimento que já estava de algum modo previsto.
Acha que é isso que tem acontecido em Portugal?
Não vou avaliar o PRR porque não está na minha alçada e ainda é cedo. Mas quando se fizer a análise, ver-se-á. Mas isso não é uma crítica ao PRR.
Uma tentativa de assimilar, de comparar esse apoio de emergência de curto prazo com a Política de Coesão e de substituir uma pela outra parece-me absolutamente errado e muito perigoso.
Na própria Política de Coesão uma das críticas que muitas vezes se faz é de que muitas vezes os fundos são usados para substituir despesa que devia ser assegurada pelo Orçamento de Estado.
Sim. De cada vez que os países pedem para haver um cofinanciamento a 100% acontece isso exatamente. Pessoalmente não sou a favor disso. Sou a favor de que a seleção envolva também uma contribuição dos próprios beneficiários, precisamente para garantir que é uma escolha pensada, porque o dinheiro fácil tem aspetos negativos. No entanto, durante o Covid os 100% justificam-se porque era uma situação de emergência: era para comprar máscaras, ventiladores, dar dinheiro a empresas para se manterem vivas, para comprar computadores para escolas. O PRR, precisamente porque era um anticíclico, apresentou o valor de 100%.
O que está a dizer resolve-se de outra forma e atribuindo muito mais importância política, de policies, não política partidária, ao reequilíbrio territorial. É algo que, em Portugal, agora convém pensarmos também um bocadinho sobre isto. Muitos dos problemas da Área Metropolitana de Lisboa e do Porto e do litoral não se resolvem se de facto, não houver uma estratégia nacional que atribua prioridade à criação de polos alternativos noutros sítios. Lisboa tem de se especializar em alta tecnologia, em captar recursos humanos de altíssima qualidade e para fazer o tal papel de arrastamento que se espera. Se os fluxos de gente qualificada se concentram todos no litoral e se o litoral está com deseconomias de aglomeração brutais, sobretudo a Área Metropolitana de Lisboa, porque estamos a investir em metros, em habitação, em tecnologia básica para resolver um problema que não pára e há um descontentamento das pessoas que vêm das outras regiões, muitas vezes muito qualificadas e que muitos deles ficam dececionados porque o custo de vida, de alugar ou comprar uma casa, os custos da educação, dos transporte são tão brutais e as deseconomias tão grandes que as pessoas acabam por optar por ir para outros lados. Temos de investir em alta tecnologia, ciência e inovação. O facto de haver uma especialização que é muito interessante, em segmentos da economia de baixa qualificação, mesmo às vezes ocupando pessoas, nomeadamente imigrantes, que têm qualificações, mas os salários são tão baixos que os problemas sociais acabam por surgir. Há aí um desequilíbrio disfuncional.
Agora estava-me a falar de dar um cheque ao senhor primeiro-ministro. É uma solução preconizada sobretudo por aqueles que também ocupam a posição de net contributours. Isto é, estamos a pagar demais para o 1%. Pessoalmente, com a experiência que já tenho, estou convencida que se recebermos um cheque em que o primeiro-ministro de Portugal, mas também o primeiro-ministro da Hungria ou o primeiro-ministro da Roménia, fica com uma mão um bocadinho livre para utilizar da maneira que quer, perdemos completamente o controlo e a transferência ocorre uma vez, não ocorre segunda vez. Isto requer, por outro lado, e é uma linha que está neste momento na agenda da Política de Coesão, pôr a Política de Coesão com uma dimensão muito mais estratégica, com contratos que identifiquem os projetos. Mas esses projetos têm de ser adequados às características das regiões. O que o Algarve precisa, de longo prazo, por exemplo, para resolver o problema da água e da seca, não é a mesma coisa que precisa uma região das Beiras ou do Minho. Tem de se reforçar, mas não ao nível apenas municipal, mas ao nível supra municipal, como fizemos, Portugal optou por não ter regiões…
O empoderamento das CCDR poderia ser uma solução?
As CCDR surgiram quando se pensava que Portugal, como a maior parte dos países europeus, iria ter regiões e essas regiões iam fazer esse papel — ter algumas competências em áreas, por exemplo, como estradas de ligação entre municípios que são secundárias, mas são essenciais; na distribuição dos centros de saúde, etc. No fundo, que dessem uma certa racionalidade, mas que tivessem a legitimidade democrática para fazer essas escolhas, que tenham de prestar contas a alguém.
Portugal tem uma característica, que começa a ser um bocadinho sui generis, para países deste tamanho (médio) na União, que é ter o nível central e depois um nível de 308 municípios que é excessivamente atomizado não para políticas de proximidade, mas sim para políticas de desenvolvimento. Tem havido experiências positivas. O facto de haver propostas que têm em escala de algumas Comunidades intermunicipais (CIM) são dignas de nota, mas estas são voluntárias. O presidente da CIM não tem mais poder que os outros. É apenas um entre pares. Também não podem fazer grande coisa tendo a inteligência que está subjacente. Mas é muito difícil ao município aceitar que um município do lado, porque é mais central, vai ter mais equipamentos ou que vai ser o pólo de atração daquela região. E precisamos de pólos de atração.
Uma tentativa de assimilar, de comparar esse apoio de emergência de curto prazo com a Política de Coesão e de substituir uma pela outra parece-me absolutamente errado e muito perigoso.
Portugal está, frequentemente, a usar os fundos agora de uma forma em que o pensamento subjacente e a discussão sobre o que é que esta região precisa de facto para remover obstáculos e para fazer sair, desenvolver as dinâmicas que estão lá contidas e quais são os novos górdios que é preciso desatar? Esta discussão desapareceu um bocadinho e as CCDR tiveram e têm ainda esse potencial, mas estão subjugadas debaixo de tarefas burocráticas e de gestão que de facto reduziram muita capacidade pensante e a nível central, convenhamos, também com estas evoluções todas de redução, redução, redução das despesas, muitas vezes os centros de estudos desapareceram. O que falta é isto. Mas pensar em políticas de curto prazo em vez de longo prazo e em políticas que são de cima para baixo e não têm necessariamente subjacente uma qualidade e uma discussão com os territórios das suas estratégias é muito perigoso.
Na véspera de saída da Comissão, tive a última reunião com o Conselho, ou seja, com os ministros de todos os países, dos 27 países que têm a seu cargo a coesão e o consenso generalizado era de que o ADN da coesão tem de se manter. E esse ADN é uma contratualização com as regiões, um trabalho de baixo para cima, muito trabalho técnico sobre os planos e uma valorização e uma requalificação da Administração Pública, exatamente para dar escala às propostas.
Não posso deixar de lhe fazer uma última: esta etapa chegou ao fim. E agora? O que é que se segue?
Para já sou professora universitária. Vou regressar à Faculdade de Economia do Porto e depois ver-se-á o que posso fazer, sendo que as minhas características são um bocado especiais porque gosto muito de trabalhar no concreto e contribuir. Mas, funções executivas acho que já tive a minha dose, já dei a minha contribuição.
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Introduzir uma lógica PRR na Política de Coesão é “dar um cheque ao senhor primeiro-ministro”
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