Queda do Governo preocupa presidentes de câmara em ano de autárquicas
Nas câmaras, a preparação para as autárquicas sofreu um revés com a queda do Governo. Execução de obras, cansaço dos eleitores e dureza dos discursos políticos são apenas algumas das preocupações.

Quando as peças do xadrez político se movimentavam sobre o tabuleiro autárquico, com cerimónias dos principais partidos a anunciar e apresentar candidatos às eleições de setembro ou outubro deste ano, centrando-se os discursos inflamados na defesa de projetos para as cidades e vilas, a crise política nacional ensombrou os ânimos autárquicos. Para lá da retirada de visibilidade ao poder local a apenas seis meses das eleições para freguesias e câmaras, teme-se um retrocesso em investimentos fundamentais para os municípios, e até naqueles estruturantes para o país, como o novo aeroporto Luís de Camões, uma preocupação manifestada por autarcas de norte a sul e dos quatro partidos autárquicos, ouvidos pelo ECO/Local Online.
Em Cascais, Carlos Carreiras considera que a crise política “afeta necessariamente, de forma muito negativa”, a gestão das câmaras e que “muitas decisões ficam suspensas à espera de novos protagonistas que não conhecem dossiês e processos que têm vindo a ser discutidos e prontos para decisão”. Já em Almada, Inês de Medeiros vê a gestão autárquica neste contexto político como “um desafio muito maior num ano que já de si era desafiante, ano de autárquicas, com uma série de projetos em curso”.
Para a socialista, “todos os autarcas estão de acordo, a própria associação de municípios expressou muito claramente a sua preocupação com mais um momento de instabilidade política, até apelando ao Governo para reconsiderar a moção de confiança. Sobretudo numa altura em que as coisas não estavam a funcionar muito bem, com o IHRU e o PRR da habitação, o mais gravoso que temos neste momento. Já para não falar das escolas e saúde”, diz a autarca de Almada. Em termos de grandes obras, não teme pela extensão do Metro do Sul do Tejo, que está contratualizada, mas tinha expectativa no lançamento do primeiro estudo para a travessia Algés-Trafaria em túnel.
“Em dois mandatos são quatro governos, uma pandemia, uma guerra, uma crise… se os autarcas não são heróis, o que serão? É bom que os portugueses tenham consciência do que seria do país sem as autarquias”, diz Medeiros.
E se Inês Medeiros terminará o segundo mandato com quatro governos, Pedro Lobo, no primeiro mandato em Sever do Vouga, não está muito melhor: “Para mim, autarca há três anos e meio, será o terceiro Governo. Sabemos que dois meses antes e dois meses depois, as coisas não funcionam”.
Carlos Moedas, líder da coligação Novos Tempos, que ganhou a eleição em Lisboa em 2021, aponta o dedo à classe política no geral e diz que “infelizmente, não foi possível” manter o Governo, pelo que “agora temos de ser pragmáticos, olhar para o papel das cidades”, que são, diz o presidente da câmara de Lisboa, “essenciais para marcar a estabilidade”.
Há uma matéria em que era importante todas as forças políticas pensarem, as indemnizações à CNE. Convinha clarificar o que, da parte da CNE, nos vai acontecer. Ficamos numa mega-campanha eleitoral sem conseguir comunicar, sem ser um mero exercício de denúncias sistemáticas
No par de meses anteriores às eleições, nota Inês de Medeiros, os autarcas têm uma dor de cabeça adicional, as obras que se podem ou não inaugurar, considerando a interpretação da Comissão Nacional de Eleições (CNE) de que a campanha se inicia a partir do momento em que se marcam eleições.
Ora, visto que até maio decorrerão as legislativas e que a marcação das autárquicas ocorrerá até 80 dias antes do ato de final de setembro ou início de outubro, aos Executivos camarários restam pouco mais de mês e meio sem campanhas. “Há uma matéria em que era importante todas as forças políticas pensarem, as indemnizações à CNE. Convinha clarificar o que, da parte da CNE, nos vai acontecer. Ficamos numa mega-campanha eleitoral sem conseguir comunicar, sem ser um mero exercício de denúncias sistemáticas”, questiona a autarca de Almada. “Rapidamente podemos ser considerados parciais, mediante o partido que está no Governo. Como se pode fazer campanha? Os municípios vão ficar mudos? O que é que podemos fazer? Qual a nossa ação?”
Investimento em perigo

E com a instabilidade política nacional, o investimento a nível local poderá ser afetado? “Muito provavelmente, sim”, admite Carlos Carreiras, de Cascais. “Tudo o que seja instabilidade política, reduz a previsibilidade, logo aumenta o risco e faz reponderar processo de investimento”.
O também social-democrata Jorge Vala, de Porto de Mós, assume, sem rodeios, que a crise nacional “afeta, naturalmente, as câmaras”, em especial as que têm investimentos e decisões dependentes de despachos do Governo. Durante dois meses, nota, haverá inação. No seu caso, aguarda despachos para registo de uma zona industrial e para aquisição de um imóvel do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social para fazer um parque, podendo ainda necessitar de um outro para expropriar um terreno necessário à avenida que servirá uma escola em obras. “A partir do momento em que o Governo caia, começo a ter algumas dúvidas. A situação é mesmo muito preocupante”.
Tudo o que seja instabilidade política, reduz a previsibilidade, logo aumenta o risco e faz reponderar processo de investimento
Igualmente apreensivo está o socialista Francisco Oliveira, de Coruche, que fala de uma “situação perturbadora”. “A estabilidade governativa impacta muito na gestão das autarquias. Há compromissos, não só internos, mas a quadros comunitários, PRR, PT2030, é preciso cumprir prazos que o país está a fazer perigar”.
Por seu turno, Jorge Vala assume que “é um ano também complexo para os autarcas, ano de eleições, em que as respostas deveriam ser mais naturais, sem estarmos agarrados a calendários que são da responsabilidade de terceiros, e não da nossa. Parece-nos que faltaram adultos na sala”.
No par de meses que distam das eleições, o tom da campanha também deixa os eleitos do poder local apreensivos.
“Em primeiro lugar, temos todos que fazer um esforço para fazer uma campanha digna. É todo o sistema político que está em risco se não o conseguimos fazer”, afirma Inês de Medeiros, que pede para se “repor alguma dignidade no combate político”.
A estabilidade governativa impacta muito na gestão das autarquias. Há compromissos, não só internos, mas a quadros comunitários, PRR, PT2030, é preciso cumprir prazos que o país está a fazer perigar
A ele soma-se a disponibilidade dos autarcas para ações de campanha dos seus partidos nas legislativas, tal como sinaliza o presidente da câmara de Porto de Mós: “Não podemos dizer que estamos fora do processo eleitoral nacional. Estamos sempre condicionados.”
Outro ponto em análise é a limitação de tempo para os candidatos autárquicos se dedicarem à sua própria campanha, como nota Frederico Rosa, presidente da câmara do Barreiro. “Temos junho e agosto como meses de férias, as pessoas menos disponíveis para a mensagem política. Abril e maio são fundamentais. É importante ter tempo para discutir as estratégias locais”, nota o socialista do Barreiro.
O modo como um autarca recandidato ou um novo desafiador à atual liderança municipal serão avaliados pela população também sofrerá alterações. A crise política nacional e o período eleitoral “beneficia os incumbentes e prejudica [quem] se quer afirmar como alternativa”, considera Carlos Carreiras, que este ano atinge o limite de mandatos em Cascais. E entre os últimos, aponta “em especial os candidatos socialistas que tinham esperança de se manterem como deputados” no Parlamento.
Os eleitores “podem ser levados pelas tricas nacionais”, admite o socialista Frederico Rosa. “Os eleitores conseguem fazer a destrinça do que se passa na freguesia e no concelho. O que não quer dizer que não estejam cansados”, salienta o autarca do Barreiro.
Ali próximo, a também presidente de uma câmara socialista, Inês de Medeiros, admite que “nos casos em que haja renovação, o impacto das legislativas pode ser maior”.
Vai ser fundamental a proximidade e contacto de rua, de que pessoalmente gosto muito. Os grandes meios de comunicação vão estar envolvidos até final de maio nas legislativas e a mensagem política vai ser totalmente dominada
A menor disponibilidade dos media para temas autárquicos no período até às legislativas também é avaliada. Frederico Rosa considera que as legislativas “vão canibalizar a mensagem local, porque as estruturas vão estar ao serviço das campanhas nacionais”. Com a comunicação social centrada no que se passa a nível nacional, “vai ter de haver adaptação” nas estruturas locais, diz o autarca do Barreio
“Vai ser fundamental a proximidade e contacto de rua, de que pessoalmente gosto muito. Os grandes meios de comunicação vão estar envolvidos até final de maio nas legislativas e a mensagem política vai ser totalmente dominada” por essas eleições. “No meio de toda esta agenda mediática e política nacional, vamos ter de saber encontrar espaço para a mensagem local. No meio desta agenda política intensa nos próximos dois meses, nós, autarcas e candidatos, vamos ter que colocar algumas mensagens locais no âmbito da mensagem regional e nacional”.
Num município mais pequeno, como Oliveira do Bairro, “as pessoas contam muito mais que os partidos. É natural que o foco da comunicação social não seja tão relevante. Nós aqui não estamos tão preocupados com as televisões e jornais, aqui vemo-nos muito de proximidade”.
No mesmo registo, João Palma, presidente da câmara de Serpa, considera que as legislativas “não vão ter grande influência” sobre as autárquicas. “Pelo menos a este nível, nas nossas povoações. Se calhar, a nível das grandes cidades poderá influenciar alguma coisa. Aqui, julgo que não, é um contacto muito mais direto, os candidatos são pessoas conhecidas, com alguma relação com os eleitores. Pela dimensão do território, julgo que não vai perturbar”.
Acumulação de atrasos

Os principais receios prendem-se com os fundos europeus destinados à saúde, educação e habitação. Entre os que aguardam uma chamada do Terreiro do Paço está Fernando Ferreira, presidente da câmara de Vila Franca de Xira. O socialista explica que, “a pedido do Ministério da Saúde”, avançou com o projeto de um novo centro de saúde, obra estimada em seis milhões de euros, mas o Governo ainda não abriu o aviso necessário para pagar esta obra que cabe ao Estado central. “Precisamos que o Governo se chegue à frente, porque a câmara está a trabalhar sob indicação do Estado central. Não tínhamos resposta até agora e temo que o Governo não vá responder”.
O edil de Vila Franca de Xira acusa o Governo de estar “paralisado há muitos meses. Os autarcas colocavam questões e não tinham resposta. Os autarcas são muito resilientes e estão todos apostados nos seus próprios programas. Continuaremos a fazer, com ou sem Governo. Nos últimos meses, o Governo era como se não existisse”, acusa, apontando o primeiro-ministro como “o único responsável” pela instabilidade política. “O PS não tem responsabilidade nenhuma nesta matéria. O próprio PSD enquanto partido não terá.”
Os autarcas são muito resilientes e estão todos apostados nos seus próprios programas. Continuaremos a fazer, com ou sem Governo. Nos últimos meses, o Governo era como se não existisse.
Na habitação, os constrangimentos abarcam municípios maiores, como Vila Franca de Xira e Almada, onde ambos os autarcas apontam o dedo à inércia do IHRU, e também os mais pequenos, como Sever do Vouga. Ali, a estratégia local de habitação, para a qual já só falta o lançamento do concurso público de construção, vai ficar em pausa: “Íamos avançar, mas sem ter certeza do que aí vem, não vamos sequer arriscar, diz o autarca Pedro Lobo.
Os receios prendem-se com obras marcadamente locais, ou regionais, mas também com as mais estruturantes. No Barreiro, Francisco Rosa aponta a terceira travessia do Tejo e o aeroporto de Alcochete como exemplos. Aos quais adiciona a extensão do Metro Sul do Tejo até ao seu município, o hospital esperado para a cidade e o projeto do Arco Ribeirinho Sul. “Tem de haver responsabilidade de Estado, que acho que vai haver. Estas questões são demasiado estruturantes para serem abandonadas. Conforme muda o Governo, não pode ser mudam os ventos, mudam as vontades”. O autarca do Barreiro exige “previsibilidade” e que “se possa construir sobre o que está feito, não se fazer folha branca conforme cada eleição”.
Obra de grande volume é também o túnel de drenagem em Lisboa. Numa declaração aos jornalistas durante a BTL, Carlos Moedas disse esperar ainda por dinheiro europeu para “ajudar a pagar” o investimento, questionando mesmo “o que vai acontecer com o plano geral de drenagem”.
Francisco Oliveira, autarca de Coruche, assume que “este incidente impacta com as autarquias. Espero que não traga alterações profundas, no sentido de o próximo Governo vir a alterar programas, estratégias definidas e alinhadas com investimento dos municípios. Espero que tudo isto não concorra, até à nomeação do novo Governo, para estagnação ou paragem das decisões. O que preocupa os autarcas é que não haja, neste hiato, uma suspensão de decisões prioritárias para os municípios”
Este incidente impacta com as autarquias. Espero que não traga alterações profundas, no sentido de o próximo Governo vir a alterar programas, estratégias definidas e alinhadas com investimento dos municípios. Espero que tudo isto não concorra, até à nomeação do novo Governo, para estagnação ou paragem das decisões.
Também na execução das obras, nota o centrista Duarte Novo, de Oliveira do Bairro, “é natural que a instabilidade política traga instabilidade emocional, indisponibilidade de empreiteiros, situações que ficam na corda bamba”. O autarca do CDS faz um paralelo com o efeito de contágio da instabilidade de um país na bolsa de valores. “A economia, naturalmente, vai ser afetada. Algumas expectativas poderão acalmar esta efervescência que estamos a sentir em todo o país. Espero eu, e sou economista de formação, que não tenha consequência para a nossa economia”. Em termos de infraestruturas, o presidente de Oliveira do Bairro teme novo atraso na abertura de um nó de ligação à autoestrada do Norte, A1, o qual servirá também os concelhos de Anadia e Águeda.
A estagnação de projetos é antevista em vários pontos do país, mas em alguns casos admite-se consequências significativas. Em Sever do Vouga, bastante afetado pelos incêndios de setembro, já entraram na câmara 3,5 milhões de euros para colmatar prejuízos, mas as empresas, que tiveram até 28 de fevereiro para apresentar lista de danos, e as coletividades, cuja candidatura a fundos abriu esta semana, vão ficar na incerteza, nota o presidente da autarquia. Perante prejuízos de 10 milhões de euros nos negócios do concelho, o autarca Pedro Lobo espera que o dinheiro não fique retido em Lisboa, “sob pena de as empresas fecharem as portas”. A eventual alteração à prioridade do IC35, anunciada esta semana no Conselho de Ministros, é outro ponto que o deixa receoso.
O Governo, ao ficar em gestão, cria alguma instabilidade, mesmo em termos de contactos, de trabalho conjunto, que nos deixa alguma preocupação com abertura avisos, decisões de projetos que podem depender do poder central. Vai trazer alguma instabilidade, embora, esperamos nós, que não seja muito grave.
A sul, em Serpa, bastião comunista, João Efigénio Palma considera que “o Governo, ao ficar em gestão, cria alguma instabilidade, mesmo em termos de contactos, de trabalho conjunto, que nos deixa alguma preocupação com abertura avisos, decisões de projetos que podem depender do poder central. Vai trazer alguma instabilidade, embora, esperamos nós, que não seja muito grave”.
Vários autarcas olham para o calendário e temem o que veem. É o caso de Serpa: “neste momento, estamos a ultimar o projeto da escola secundária, em breve haverá a apresentação, sendo um investimento grande que depende de uma negociação com interlocutor válido da parte do Governo”.
Em Sever do Vouga, Pedro Lobo sinaliza o risco de se desperdiçar financiamento europeu. “O empréstimo do Banco Europeu de Investimento poderá estar em causa”, admite. “Temos candidaturas para reconstrução de umas dezenas de casas e estávamos à espera há bastante tempo da linha do BEI para avançar com essa candidatura”.
Por outro lado, com o PT2030 “já tão atrasado”, somam-se pelo menos mais três a quatro meses de espera por um novo Governo. “Devíamos estar a falar sobre programas, estratégias, as pessoas, e o que vai ser feito é um referendo a se, efetivamente, quem se candidata a estes lugares pode ter tido uma vida ou pode ter uma vida posterior, ou não”.
O presidente da autarquia do distrito de Aveiro lamenta o tom vigente no Parlamento na passada terça-feira, onde, acusa, “perdeu-se o respeito. Dizem-se coisas que não são verdade e não lhes acontece nada. Chamam-se mentirosos uns aos outros na Assembleia da República, põe-se em causa a reputação”. E, questiona: se ali “são as entidades máximas que o fazem, depois espera-se que nas autárquicas as coisas sejam melhores?”
Devíamos estar a falar sobre programas, estratégias, as pessoas, e o que vai ser feito é um referendo a se, efetivamente, quem se candidata a estes lugares pode ter tido uma vida ou pode ter uma vida posterior, ou não.
Francisco Oliveira admite que “as pessoas estão cansadas deste processo de escrutínio”, e embora as autárquicas tenham um foco maior no candidato, considera que pode haver desgaste político decorrente da crise política. “se este período que medeia até às eleições for de muito desgaste individualizado dos representantes dos dois maiores partidos, se forem muito direcionadas, pode concorrer para que haja abstenção muito grande da população”, considera o socialista de Coruche.
Autarca do PCP no Alentejo interior, João Palma é mais otimista: “Julgo que Portugal, o país, está habituado a viver em democracia e a decidir quando tem de decidir. Tenho esperança de que as coisas não se compliquem demasiado”.
A autarca almadense, por seu lado, pede responsabilidade: “O primeiro desafio é o de todos fazermos um grande esforço para repor a dignidade política. Sabemos o que a chegada da extrema-direita trouxe de desprestígio para as instituições. Todos os democratas têm a responsabilidade de repor dignidade no debate político”.
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