Luísa Salgueiro: “Não tivemos o ritmo por parte do Governo que nos permitisse concluir os dossiês”

Presidente em final de mandato na ANMP, Luísa Salgueiro lamenta o atraso em alguns dossiês. "O Governo aguardou pelas autárquicas" na Lei das Finanças Locais. "Foi mais um atraso desnecessário".

Luísa Salgueiro termina neste fim de semana o seu mandato de quatro anos à frente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP). No congresso eletivo que se realiza em Viana do Castelo, o social-democrata Pedro Pimpão está pronto a receber o testemunho.

Em entrevista ao ECO/Local Online, a socialista deixa críticas ao Governo de Luís Montenegro, ao qual aponta “falta de vontade política”, e assegura ter havido uma travagem na dinâmica que se verificava com o Executivo de António Costa, autor do processo de descentralização de competências do Estado central para as autarquias.

No caso da Lei das Finanças Locais, acusa, “o Governo aguardou pelas autárquicas. Foi mais um atraso desnecessário neste processo”.

Chega ao fim o seu mandato de quatro anos na liderança da ANMP. Sai com sentimento de dever cumprido?

Com a sensação de dever cumprido, embora não com os resultados que gostaria. Ficamos aquém daquilo que seria possível, não por falta de determinação política e de vontade da ANMP. Não tivemos o ritmo por parte do Governo que nos permitisse concluir os dossiês como gostaríamos.

Que balanço faz?

É um balanço positivo deste mandato, que foi irregular, dividido em duas partes. Na primeira metade do mandato [Governo PS] conseguimos muitos avanços: concretizar dossiês importantes para a vida dos municípios, e que estavam há muito pendentes, como a equiparação do regime da ADSE entre a Administração Local e a Administração Central, que estava há muito em estudo, e ficou rapidamente decidida com a intervenção do ministro [das Finanças] Fernando Medina.

Outro avanço diz respeito ao dossiê da descentralização de competências, principalmente nas áreas de educação, da ação social e da saúde.

Ficamos aquém daquilo que seria possível, não por falta de determinação política e de vontade da ANMP. Não tivemos o ritmo por parte do Governo que nos permitisse concluir os dossiês como gostaríamos.

Depois de várias rondas de negociação e controvérsias no meio político, o então primeiro-ministro António Costa chegou a admitiu que esta seria uma negociação “difícil”.

Sim. Foi uma negociação muito difícil, feita por um Governo do Partido Socialista, em que se demonstra que, apesar de a ANMP ter uma liderança do mesmo partido do Governo, não deixou de haver uma negociação duríssima, de grande exigência e que trouxe grandes resultados para os municípios.

Estas decisões tomadas em torno da descentralização requerem uma avaliação e uma monitorização regular e isso não aconteceu porque a comissão de acompanhamento da descentralização deixou de reunir, não continuou a funcionar. Portanto, há ajustes que são necessários fazer; há correções e atualizações aos valores que são necessários e não ocorreram.

Qual o impacto desta situação nas autarquias?

Neste momento, o processo está prejudicado pela inexistência desse acompanhamento e atualização. Há colegas meus que relatam desequilíbrios, designadamente em termos de transferências financeiras que deveriam estar a ser corrigidas.

Lamento que não tenhamos conseguido fechar alguns dossiês que eram muito importantes, como por exemplo a Lei das Finanças Locais.

Pelas suas palavras, posso concluir que a segunda metade do seu mandato, coincidente com o Governo de Luís Montenegro, não correu tão bem?

Na segunda metade do mandato da associação não houve verdadeiramente nenhum avanço significativo para a vida dos municípios. Lamento que não tenhamos conseguido fechar alguns dossiês que eram muito importantes, como por exemplo a Lei das Finanças Locais (LFL).

A revisão da Lei das Finanças Locais é uma reivindicação antiga.

O dossiê da LFL que foi desenvolvido pela ANMP — com discussão generalizada e alargada das propostas que os autarcas pretendiam ver acolhidas — foi remetido ao Governo e justificou a decisão de se aprovar uma nova lei. Apesar de haver um consenso entre a associação e o Governo acerca da necessidade de aprovar essa nova LFL, o processo não se desenvolveu e nem sequer foi constituído o grupo de trabalho para que pudesse avançar.

Considera que o Governo adiou propositadamente a nova lei para a desenvolver já com a nova direção?

O Governo não nos disse isso. O Governo foi adiando, dizendo que estava à procura de alguém para liderar o grupo de trabalho, que realizasse a proposta da nova LFL, mas nunca senti da parte do Governo nem do senhor ministro da Coesão nenhuma condição para negociar com a atual direção. Penso que foi mais um excesso de trabalho que impediu que este dossiê avançasse. Sobretudo depois de se juntarem os Ministérios da Coesão e da Economia, houve mais dificuldade no avanço dos dossiês. O Governo aguardou pelas autárquicas. Foi mais um atraso desnecessário neste processo.

Castro Almeida assumiu que a nova LFL deveria estar em vigor no dia 1 de janeiro de 2026, logo após a eleição deste novo mandato autárquico. E, portanto, os novos autarcas, eleitos em outubro de 2025, estariam em condições de ter uma nova Lei das Finanças Locais no dia 1 de janeiro de 2026. Mas isso não vai acontecer.

Na sua opinião, já deveria estar concluído?

O ministro Manuel Castro Almeida assumiu que a nova LFL deveria estar em vigor no dia 1 de janeiro de 2026, logo após a eleição deste novo mandato autárquico. E, portanto, os novos autarcas, eleitos em outubro de 2025, estariam em condições de ter uma nova Lei das Finanças Locais no dia 1 de janeiro de 2026. Mas isso não vai acontecer.

É assim tão vital essa alteração?

É essencial, porque permite atenuar as desigualdades que ainda se verificam no território entre os municípios, muitos deles com graves dificuldades por não conseguirem responder às suas obrigações básicas e garantir o investimento. Há municípios que esgotam as suas verbas nas despesas correntes e dependem das transferências do Estado.

Os autarcas pedem um nível de financiamento em linha com a média dos países europeus.

Queremos aproximar a participação dos municípios nas receitas totais do Estado para o nível da zona Euro. Em Portugal, está na ordem dos 12,4%, apesar de as autarquias serem responsáveis pela realização de 33% do investimento total no país.

Na obra feita, deixa o Observatório do Poder Local. O que espera que seja feito a partir de agora?

Temos o Observatório do Poder Local em preparação. Candidatámo-lo ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Espero que no próximo mandato fique a funcionar, ao serviço dos municípios e das pessoas. Vai disponibilizar, recolher e gerir toda a informação da vida dos municípios, algo que neste momento não existe em Portugal.

Ainda em relação ao processo de transferência de competências do Estado para as câmaras municipais, quais as principais dificuldades sentidas pelos municípios?

Destaco os valores das refeições escolares e as despesas com pessoal não docente. São áreas que foram estabilizadas com o pressuposto de que haveria depois um acompanhamento para verificar se as rubricas estavam suficientemente dotadas. À partida, nós fizemos cálculos de valores e, recordo, o acordo de descentralização previu transferência de competências para o pagamento das refeições escolares, das obras nos edifícios, de despesas de manutenção, e de custos com os assistentes operacionais, assistentes técnicos e pessoal não docente.

Isso exigia que se fizesse uma avaliação no final de cada ano para verificar se aqueles cálculos e os critérios que foram seguidos — para estabilizar o valor dessas verbas — efetivamente correspondiam ao real. Logo, era previsível que houvesse desvios e que eles fossem corrigidos. Só que não voltou a haver condições para o fazer, porque o espaço onde isto ia acontecer, que era a comissão de acompanhamento à descentralização, não voltou a funcionar.

Essa situação gerou problemas nos cofres municipais?

Não põe em risco porque são verbas residuais, mas nalguns municípios mais pequenos tem um impacto que pode ser relevante e que tem de ser avaliado e quantificado.

A ANMP tem esse trabalho feito, mas precisa de um interlocutor com o Governo para tomar decisões e que se façam as necessárias correções. A comissão de acompanhamento da descentralização é constituída por vários ministérios, a Direção-Geral das Autarquias Locais (DGAL) e a ANMP, para verificarmos falhas e estas serem corrigidas.

Lamento que não tenha havido mais reuniões da comissão de acompanhamento da descentralização. Não aconteceram porque o Governo, que é quem tem a responsabilidade de as convocar, nunca o fez

Por que razão deixou de haver reuniões?

Por falta de vontade política do Governo, que é a entidade responsável para convocar a comissão, que não foi mais convocada a partir do Governo do PSD. Lamento que não tenha havido mais reuniões da comissão de acompanhamento da descentralização. Não aconteceram porque o Governo, que é quem tem a responsabilidade de as convocar, nunca o fez.

Entre as várias áreas onde receberam novas incumbências está a educação. Houve um acordo histórico para financiamento de 1,7 mil milhões de euros. Em que ponto está essa parte do processo?

Esse acordo para reabilitação das 421 escolas, que depois passaram a mais de 500, é essencial. Foi decisivo para que os municípios aceitassem a transferência da gestão dos edifícios e pressupunha o pagamento integral de todas as verbas implicadas nessa reabilitação. O aviso para apresentação das candidaturas foi aberto em novembro, no mês passado, quando o acordo foi assinado em julho de 2023.

Porquê esse atraso superior a dois anos?

Por falta de vontade de avançar mais cedo. Primeiro, foi necessário garantir financiamento, que, segundo o acordo de transferência, é assegurado pelo Governo. O financiamento foi obtido junto do Banco Europeu de Investimentos (BEI) e a assinatura do contrato de financiamento com o BEI ocorreu em março de 2025. Os avisos só abriram em novembro, o que na nossa perspetiva foi demasiado tarde. Neste momento, está a decorrer o prazo de apresentação das candidaturas, que será até junho de 2026. Logo, já não haverá nenhuma obra em junho de 26. Só poderemos realizar obras nas escolas em 2027.

O que falta fazer ao nível da descentralização de competências?

Falta muito. Falta continuar o processo dos setores que já estão mais avançados: na área da saúde, falta definir regras que já estavam previstas desde o início, como os rácios das viaturas e dos assistentes operacionais, além de avançar com as obras nos edifícios que estavam mapeados. Mesmo nas áreas que mais avançaram, ainda há muito por cumprir para que o acordo esteja completamente respeitado.

[Saída da Câmara do Porto da ANMP] foi uma atitude pessoal do senhor presidente. Neste momento, a câmara e a Assembleia Municipal já deliberaram, nas suas primeiras reuniões, o regresso à ANMP. Foi a correção de um erro cometido pelo anterior executivo que só prejudicou o Porto, não a ANMP.

No seu mandato, a Câmara do Porto saiu da associação. Um revés?

Quando a Câmara Municipal do Porto saiu, surgiu o anúncio de que outros seguiriam o seu exemplo. Isso, naturalmente, seria um motivo de preocupação, porque é importante que sejamos a associação de todos os municípios. Acontece que o caso do Porto foi isolado e, como se viu, injustificado, porque a Câmara do Porto ficou sujeita às regras que todos os outros seguiram. O acordo que fizemos aplicou-se também à Câmara Municipal do Porto e não foi por isso que os resultados foram diferentes.

Foi uma atitude pessoal do senhor presidente [Rui Moreira], que como se viu, foi rapidamente corrigida. Neste momento, a câmara e a Assembleia Municipal já deliberaram, nas suas primeiras reuniões, o regresso à ANMP. Foi a correção de um erro cometido pelo anterior executivo que só prejudicou o Porto, não a ANMP.

A entrada de um presidente de Câmara do PSD num contexto de governação nacional do mesmo partido vai facilitar as negociações dos dossiês que ficam para discutir?

Haver uma presidente socialista da ANMP e um Governo do PS não impediu uma negociação exigente, rigorosa e ao serviço dos municípios. Espero que o meu colega e amigo Pedro Pimpão faça o mesmo agora na negociação com o Governo que apoia. Estou convicta que fará.

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