Paula Franco: “Não estamos a ser ouvidos como deveríamos” pelo Governo

Reduzir IRC, eliminar a tributação autónoma e ajustar o calendário fiscal são algumas das medidas que Paula Franco, bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, quer ver aplicadas pelo Governo.

A Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) quer que a sua voz seja ouvida pelo Executivo, algo que considera que não aconteceu na legislatura anterior e que espera que venha a mudar com a nova equipa de Luís Montenegro. “O país sairia a ganhar se fôssemos mais ouvidos”, afirma Paula Franco, bastonária da OCC, defendendo o papel que os profissionais do setor podem ter em ajudar o Executivo a dar respostas mais adequadas às empresas portuguesas.

Em entrevista ao EContas, a representante dos contabilistas em Portugal diz que há várias mudanças que devem ser feitas para ajudar os contabilistas e, por conseguinte, o tecido empresarial. Alerta para o desafio do digital, com os vários problemas no portal da Autoridade Tributária (AT), mas também para os esclarecimentos tardios do Fisco e para os prazos para o pagamento dos impostos.

Paula Franco defende a necessidade de fazer-se um ajuste ao calendário fiscal para que os grandes prazos não se sobreponham, colocando em risco a tesouraria dos empresários, apontando ainda para uma redução do IRC que seja transversal a todas as empresas e para uma diminuição ou mesmo eliminação da tributação autónoma.

O que significa hoje ser contabilista?

Hoje em dia ser contabilista é, sem dúvida, trazer confiança às empresas. Hoje, um contabilista posiciona-se muito mais como um consultor que orienta, que esclarece, que traz a possibilidade de enquadramentos e definições diferentes para as empresas. É ser um orientador e um parceiro invisível do empresário e dos negócios.

Quais os principais desafios que os contabilistas encontram para exercer a sua profissão?

Ainda temos os desafios do digital. Uma das funções dos contabilistas certificados é assegurar o cumprimento das obrigações fiscais. O mau funcionamento dos portais condiciona muito o trabalho. É uma pena porque tem-se evoluído tanto, inclusivamente a própria AT e a Segurança Social, mas nunca há uma resposta eficaz e um reconhecimento da dificuldade que existe em trabalhar e aceder aos sites e conseguir cumprir as obrigações fiscais. Isso é o maior obstáculo neste momento que os contabilistas têm.

Com o apagão, houve vários constrangimentos no portal das Finanças. Já estão resolvidos?

Desde o apagão que o portal não funciona bem, numa altura em que há o grande cumprimento das obrigações fiscais anuais. Tem causado imensos problemas, imensos constrangimentos e tem um impacto enorme no trabalho dos contabilistas certificados. Não é aceitável que aconteça.

Continuaremos a trabalhar ativamente para criar um melhor calendário fiscal e, a par disso, também numa simplificação fiscal (…) que não acarrete custos e que permita que as empresas não estejam tão sobrecarregadas.

O que pode ser feito para se evitar que estes constrangimentos se repitam?

Acho que é muito importante não se sobreporem prazos e isso é uma coisa que pedimos há muito tempo. Por exemplo, maio é um mês muito sobrecarregado e não faz sentido o Modelo 22 cair nessa altura. Já há muito que pedimos que passe para junho. Agora pedimos um adiamento [que foi entretanto aceite pelo Governo], mas era bom que fosse [um adiamento] definitivo no calendário fiscal, que ficasse definitivamente separada da grande obrigação fiscal da entrega do IVA do primeiro trimestre, que depois condiciona muito as entradas e os acessos ao portal. São obrigações muito pesadas. Está a decorrer também o IRS, a IES, que é outra declaração anual, e tudo a sobrepor-se provoca estes constrangimentos.

Como têm evoluído os pedidos de ajuda dos profissionais junto da Ordem? O que está na base dos pedidos de ajuda?

As dúvidas são essencialmente com matérias fiscais e contabilísticas. São pareceres técnicos, contabilísticos e fiscais, que são o core dos contabilistas certificados, e que representam uma dificuldade no entendimento, na clarificação e, acima de tudo, saber qual é o esclarecimento ou o enquadramento que a própria AT faz de muitas matérias. A matéria fiscal muda bastantes vezes. Pelo menos uma vez por ano, com o Orçamento do Estado. Mas muda mais do que isso com muita legislação avulsa que vai saindo e o contabilista tem de a acompanhar e aplicar logo. E muitas vezes os esclarecimentos vêm fora do tempo ou já depois da sua aplicação e quando vêm são completamente contrários àquilo que se interpretou no primeiro momento.

Qual deveria ser o papel da AT nesse contexto?

Devia antecipar muito os entendimentos. Há muitas indefinições, as respostas vêm sempre tardias e quando vêm já muitas vezes se cumpriu de outra forma e depois gera, obviamente, substituições, coimas, incumprimentos e consequências para o contabilista e para o contribuinte.

Foi reeleita para liderar a Ordem. O que ainda falta fazer?

Ainda falta fazer muita coisa, mas eu diria que um dos grandes objetivos é o contabilista público. É realmente uma pena que neste país se exija tanto às empresas e o próprio Estado não exija que existam profissionais qualificados dentro do Estado e que só esses possam assinar as contas do Estado.

Paula Franco, bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), em entrevista ao ECOHugo Amaral/ECO

Que outros temas estarão em cima da mesa nas reuniões com o Governo?

Continuaremos a trabalhar ativamente para criar um melhor calendário fiscal e, a par disso, também numa simplificação fiscal, pelo menos em termos procedimentais que não acarrete custos e que permita que as empresas não estejam tão sobrecarregadas. Se o contabilista estiver sobrecarregado com essas questões não se pode dedicar a outras questões ou não pode ajudar tanto o empresário e, portanto, temos que simplificar também nessas matérias.

Que medidas de simplificação fiscal devem ser adotadas?

Há muito mais matérias que se sobrepõem e matérias que são muito mais complexas e que não podem ser. Por exemplo, o Modelo 22, que é a obrigação anual de liquidação de imposto e de apuramento do imposto das empresas, tem imensos campos preenchidos em que uns têm de se pôr zero e outros têm de ir vazios. Não trazem mais-valia a ninguém. Nem imaginam o tempo que se perde a preencher uma declaração dessas. Não podemos chamar de simplificação, não é um prazo, mas é uma coisa que é perfeitamente lógica.

Estes pontos já tinham sido abordados com o anterior Governo?

Estamos sempre a abordá-los, mas a verdade é que depois isto são soluções informáticas versus a própria AT versus o próprio Governo, Secretaria de Estado e Ministério das Finanças e estas solicitações não chegam muitas vezes a bom porto.

Como é que era a relação da Ordem com o anterior Governo?

Não foi uma relação muito próxima. Foi uma relação distante. Diria que é uma pena, porque de facto sentimos um distanciamento bastante grande. A Ordem tem imenso a dar para o país e a ajudar em muitas decisões e até em esclarecimentos sobre algumas situações que estão feitas. Sentimos que não estamos a ser ouvidos como gostaríamos e como deveríamos. O país sairia a ganhar se fôssemos mais ouvidos.

O que é que esperam deste novo Governo? Esperam uma mudança de postura?

Espero que mude, mesmo que os interlocutores sejam os mesmos, espero que mude, porque o país tem a ganhar com isso e, portanto, acredito que será uma mais-valia para todos se trabalharmos todos em conjunto.

Foi uma relação distante [com o anterior Governo]. Sentimos que não estamos a ser ouvidos como gostaríamos e como deveríamos. O país sairia a ganhar se fôssemos mais ouvidos.

Que outras dificuldades é que as empresas e os contabilistas enfrentam?

Temos a questão burocrática propriamente das medidas. Todos os anos, ou pelo menos nos Orçamentos de Estado, há sempre muita vontade de lançar medidas, por exemplo, benefícios fiscais para ajudar as empresas. E nós gostamos dessas medidas porque achamos que pode mudar comportamentos de empresas e normalmente os benefícios fiscais servem muito para isso. Mas a complexidade do próprio texto da lei e depois a interpretação da AT fazem-nos sentir que é um perigo e um risco enorme para as empresas aplicarem benefícios fiscais. Há muitos “ses” e esses “ses” têm interpretações diferentes em alturas diferentes da sua aplicação, o que gera muita reserva dos próprios contabilistas na aplicação de benefícios que serviriam para ajudar as empresas, para que as empresas fossem mais produtivas e, portanto, tivessem maior rentabilidade, o que era positivo para todos.

É preciso simplificar estas medidas?

Estas medidas têm de ser mais simples, mais eficazes, e, lá está, se há espaço para interpretação, que seja feita no mesmo momento da aplicação da lei. E que seja feito a olhar para as empresas, para a criação de riqueza. A maior parte dos benefícios que têm sido feitos para as empresas depois traduzem-se em quase nada, por via destas interpretações mais restritivas que existem.

Há críticas no sentido de que uma baixa de IRC irá apenas beneficiar as grandes empresas. Concorda?

Uma descida do IRC beneficia todas as empresas, portanto também vai beneficiar as grandes. As grandes pagam uma grande fatia de impostos, portanto claramente, se calhar em termos de valor absoluto, vão ficar elas com o maior pacote, mas a verdade é que também beneficia as pequenas e médias empresas. A redução do IRC pode ser feita de várias formas. Defendemos que seja transversal para todas. A acompanhar a redução do IRC deve haver também uma redução ou até uma eliminação e voltarmos ao método antigo nas questões relacionadas com a tributação autónoma, que é um imposto encapotado para as empresas. Se efetivamente há abusos nessas matérias deve ser por via da correção fiscal e não de uma tributação autónoma. De uma vez por todas era bom olhar-se para essa matéria e acabar, porque praticamente o IRC hoje vem das tributações autónomas.

  • Rita Atalaia
  • Editora do ECOntas

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